domingo, 29 de novembro de 2009

minha religião

Logo, será mais um dia. Logo, foi só uma madrugada.
(Sim, eu falo de uma suposta história de amor. Agora que eu me retome na entrelinha.)
Esta noite (após a despedida), vi um filme de Bergman sobre o silêncio de deus. Também: conversei com amigos queridos, treinei a verdade, estou bem. Consigo deixar fluir as imagens de todos os tempos com o olhar fixo nas pequenas coisas. Acho que medito até quando não quero. Acanho-me de dizer isso aos religiosos, mas estou feliz. Tudo cai bem. Até um adeus tem seu lugar certo.
Nem bem magoo, já perdoo. Será que soarei arrogante se disser que a compaixão agora me move sem esforço? Tem sido bom demais olhar nos olhos das pessoas sem exigir-lhes amor e dando-lhes, se é pedida, a alegria que eu possa ter recolhido no instante do encontro. Não sei se é bonito, mas é livre. Livre no sentido de caber-me em meu coração, mesmo ao refletir, no encontro, o estado emocional do outro para não ser mais que um espelho de face simples, seja esta cruel ou benevolente.
Mistérios à parte, ainda há muito caminho para todos nós. Eu gostaria de explicar isso para as crianças que me rodeiam, mas elas não querem explicações, principalmente as abstratas e calculadas, ainda que espontâneas. Querem a paixão da carne quando o que lhes falta é imaginação. Não são crianças. E quem sou eu para pedir-lhes paciência? Não adianta contar nossa própria história para os egoístas.
Sim, a vida pode ser engraçada em todos os momentos, pois na tristeza temos ainda o jogo da crítica. Mas não falemos de crítica, pois esta volta e meia é sequestrada para as bocas dos ferinos. O certo é que, na base, até o medo pode ser risonho. A dor então, coitada, não passa de uma noite mal dormida, de uma respiração forçada, de um pensamento obsessivo.
Minha tristeza agora não é uma despedida, e já não é há um bom tempo. Minha tristeza agora é mais universal, perdoem-me a palavra soberba. Minha tristeza é de ver as pessoas apegarem-se a seus ressentimentos para extrair dali alguma suposta força vital. Na falta de controle de si, buscam o controle do outro. Mas também já não é tristeza o que sinto pensando assim, é revolta que me põe de acordo com os ventos.
O que quero dizer é: estão a brincar com a morte. E seria tão mais simples viver. Para estar presente, livre, sem ser presa do passado calculado ou das esperanças desesperadas, não precisamos de muitos deuses e palavras, basta achar bonitas as coisas e suas cores, basta perceber que nenhum som se repete e que, sobretudo, tediosas e uniformes são nossas inquietações paralisantes.
Dito isto em linhas gerais, digo mais no particular: não sou bonzinho, sou humano. Luto contra o riso torto dos enfeitiçados, não tenho lealdade com os que se deixam atormentar. Minha compaixão não é caridade. Sou pouco demais para ajudar quem não se ajuda. Atravessei eras de sofrimento para ser feliz. Sei que é possível chegar vivo na praia e sobreviver no deserto que a continua. Sinto uma espécie tola de pureza que se formou no limite da malícia. Compreendo os pecados o suficiente para desacreditá-los.
Não tenho saudades de nada, mas me lembro de tudo. Cada vez menos saudades, cada vez mais a memória livre. Também não me sinto mais só, estou pronto para amar. Isto quer dizer mais um "cuidado comigo" que um "vinde a mim as criancinhas".
(Sou invisível pois sei que neste texto qualquer um poderia me valer de qualquer adjetivo. Esta é a prova de minha liberdade.)
Uma coisa é certa: tenho um tesão que não morre mais. Já fiquei louco o suficiente para sensualizar até os momentos mais constritos. E ai de quem tentar controlar meu sorriso. Viro assassino em auto-defesa.
Não me julgariam de egocêntrico por defender-me com essas palavras se soubessem que cada um delas me foi inspirada por um rosto diferente. Como eu poderia crer-me irmão das palavras sem ser irmão dos homens, até dos que não quero me lembrar?
Não tenho talento para simulacros. Não que eu tenha certezas, tenho mais é uma fé que não vem do desespero, mas de uma alegria que faz sua manutenção em paz. Antes, eu até me sentia culpado de ver as pessoas sofrerem e sentir-me feliz mesmo na dor compartilhada. Agora, vi que tudo passa, até o orgulho de minha felicidade constante.
Estamos na estação das chuvas de verão. É preciso aproveitar. É preciso dizer palavras mágicas e silenciar sem expectativas. O som da água é maior. O trovão é minha voz. O relâmpago, a cor de meus olhos.
É tempo de crescer com a natureza. Esta é minha religião. Para quem não entendeu, outro dia eu escrevo uma história de sexo fácil. E que isto lhes sirva de mantra.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

o livro do mundo

Para mim, tudo agora é um grande livro, como sonhava o bibliotecário de Babel, em Borges.
Porque tudo virou ficção. Não que eu me tenha perdido do real. Eu só deixei para trás, por cima dos rastros e dos ratos, a ilusão da realidade, mãe de todas as ilusões. Veja bem: eu não disse abandonar, mas deixar...
Tudo e agora cabem neste livro. Cada história se concatena a outra e o livro acaba por não contar história alguma. O livro é, quem sabe, só uma antena. Acaba sem contar nada talvez porque eu ainda não tenha morrido - só entre um capítulo e outro - ou mesmo porque o livro me ultrapasse e não tenha fim.
São essas metáforas bobas que me vêm numa manhã de sexta-feira. Eu dizia: penso em todas as ilusões e em sua verdade, penso na verdade e suas ilusões. Por exemplo: eu começo a acreditar que amo - algo, alguém -  logo amo por mentira e, no oposto desta experiência, também passo a acreditar mais no amor do que em meus amores. Assim, clareia o dia enquanto me compadeço dos erros de quem acredito amar e, quando canso disto, parto para um amor maior, qualquer, besta, amando quem meus amores ainda não foram capazes de se tornar. Tenho percebido que mover as contradições, ao invés de ser movido por elas, ensina a respirar melhor que ioga. E olha que eu "amo" de "verdade" as índias...
Antes, eu até achava que essa paz fosse conformismo, agora rio das paixões não com o sarcasmo de quem força um sorriso de vitória forjada na cara do inimigo, mas como quem ri de uma criança, com uma criança, como uma criança, surpreso de quedar-se numa coisa pequena.
Também é bom para a manutenção dessa paz que eu me queixe um pouco das noites que a tiram de mim, quando sou obrigado, pela força da guerra que traz essa mesma paz, a ir cada vez mais fundo em meus ressentimentos - que são sempre da carne, há que se dizer; e até isso é bom, pois no cerne da carne solitária e jovem eu admito que envelhecer é uma arte que me rejuvenesce, enquanto eu era só a chatice da velhice, e por isso a temia.
Tudo faz tanto sentido em minha comédia humana que até meus parágrafos ficaram mais circulares, fechando os pontos em que se abriram, volteando no labirinto maior, essa folha branca de caminhos que se refazem mais rápido que a luz. Esse labirinto, maior, absurdo, ri de mim. Por isso inscrevo-me neste livro total e presente, de que falei no início, para rir do labirinto também.
Pronto, voltei ao começo.
Então, o fim.
Mas com palavras. Com palavras de silêncio, de mistério. Crio ganchos para os próximos capítulos, pois para que servem as conclusões senão para nos revelarem nossos estados de êxtase, quando tudo fica parado no apego de uma emoção que se deixa dominar por um nome fixo? Mas devo dizer que também já não temo o êxtase, apenas passei a viver no êxtase de desacreditá-lo. Nada como usar a própria arma para desarmá-la.
Exteriormente nem tudo vai bem, mas estou tão feliz que calarei a boca com um sorriso discreto e convidativo. E seja lá quem você for, sim, você mesmo, seja bem vindo - se lhe aprazer ser leitor, é claro, pois já cansei de quem se embriaga com as próprias palavras (tem gente que lê um livro e acrescenta a este outros tantos livros de comentários egocêntricos, enquanto me vejo cada vez mais lendo vinte livros para extrair um frase). Enfim, se você se reconhece nessa minha tentativa de explicar-me explicando qualquer um que eu não conheça, bem vindo, bem vindo ao livro do mundo.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

clariciano

Eu procuro algum traço de sentimento com que possa me contar, mas não encontro nada. Nem frieza, nem indiferença. Antes, quando tinha preguiça de escrever-me, de inventar-me, procurava nas paixões juvenis alguma raiva que me energizasse para, enfim, vencer a dureza do papel, da caneta, da tela reluzente e do teclado. É que eu acreditava que a matéria das coisas era contra a fluidez do ser, como se o ser fosse coisa vácua, só de palavras. Agora, nem isso sinto ou faço. Talvez no fundo eu escreva para me afirmar, mas para dar voz a um instinto de bicho, uma verdade subrreptícia, e não essas verdades de palavras, essas vaidades.
E eis que, neste instante, tendo-me improvisado em um parágrafo satisfeito de si, não me vejo ainda pronto para tudo o que haja, embora me sinta a partir do coração - este mito que agora também me bate satisfeito e insatisfeito, apaixonado e subaquático. Claro que alguma lucidez me comanda também, mas esta luz não é de palavras, mas de observar, como bicho, se o ar que entra e o que sai é proporcional ao corpo que minha alma veio construindo.
Penso que se eu me identificar demais com minhas palavras, julgando-as tão minhas, estarei cansado de mim, e isto não quero nunca. Não por me amar egocentricamente, mas para amar a vida que possa desabrochar de mim. Todo mundo tem suas palavras e delas se arroga, fixando-se em imagens passadas, mortas; e percebo milagrosamente que, conforme me assoma o conhecimento da morte, prefiro cada vez mais a vida. No limite, qualquer palavra já dita é coisa morta, que só vale reavaliada, reapropriada, ainda que haja palavras vivas de homens mortos capazes de mostrar-me na atualidade do ser, de mostrar-me este "quem sou" que é apenas um "ninguém que cabe em qualquer um."
Tenho receio de palavras movidas por paixões. Pensemos. Um beijo deve durar o tempo justo do confronto. Alongar o desejo é matar o amor, desconfiar de seu poder e tentar extraí-lo no bagaço da carne, e não na carne intumescida de amor. E quero ser sempre jovem para convencer-me na busca desta inominável palavra. Para ser jovem e amar com a renovada inocência de jogos infantis, sem alongar os desejos de uma juventude sempre em fuga, tenho de me fazer de velho, e assim o faço desde criança, obstinado em vencer as idades, sem a covardia de não enfrentar o espelho, este espaço infinito onde cada ruga, ao invés de me envelhecer, me renova, mostra o novo insuspeitado, me rejuvenesce de tanta curiosidade com minhas coisas ínfimas. Talvez eu só esteja querendo dizer que tenho respirado melhor no enfrentamento da morte. Sim, não me culpo mais em temer a morte, é assim com todo bicho e me alegro cada vez mais de ser bicho antes de ser homem. Sim, não me culpo mais em aceitar a morte: existe uma indiferença de pedra em todo ser, e bicho veio da pedra também.
Talvez seja isto o que quis dizer quando quis dizer que para escrever-me, para inventar-me, não posso e nem consigo mais me agarrar desesperadamente a um "sentimento", a um logos qualquer, a uma razão que vem do fundo de uma taquicardia a que chamamos paixão, uma ansiedade sem propósito e cuja origem duvido que parta de mim, mas de nossos modernos costumes sobre o que seja o feliz. Como diria Rimbaud, o êxtase não é mais meu amigo.
Tenho o vício do cigarro, decerto. E se for possível explicar o vício como um desvio do ser em relação a seu ambiente, sim, digo que estou demasiadamente saciado desta cidade, embora nela tenha tanto me divertido, diariamente, religiosamente. É que não gosto muito de seguir uma única religião, por isso preciso partir. Não porque a cidade seja pequena de pequenez, mas porque o mundo é grande de mistérios. E quando não tenho meu mistério, que adoro encontrar nos olhos de um cão de rua, acendo meu cigarro. Mais não quero justificar. As justificativas nascem do medo não assumido, e prefiro ser inseguro com coragem. Dói menos. Já disse isso, sim. Estou tão contentamente vazio que me preencho e me atravesso até por repetições bem vindas. Às vezes repetir é necessário para aprender a sofrer menos, para aprender a aprender, para dar nomes melhores às coisas piores.
Se tem algo que me interessa de fato, que me engaja na realidade suposta, é a manhã transparente, cheia de possíveis, esta que nasce agora lá fora, no ar, no azul mutando mais rápido que a minha atenção sobre ela, no azul mutando mais devagar que esta minha aberrante transformação.
Antes eu escrevia com fome no estômago vazio, duro de certezas. Para aprender a chorar. Agora escrevo de barriga cheia, sim senhor, pois o pão deve me nutrir antes que a palavra. Sem bicho não há homem, e antes eu só queria ser homem, sem assumir o bicho. Quanta inversão de valores! Sim, sobrevivo com pão e palavra, nesta ordem. Não é para glamurizar a pobreza, estamos acostumados demais com a pobreza, e quero que esta sempre me entristeça. Até já houve um tempo sem uma coisa nem outra, sem pão e sem palavra, só de escuridão e um inseto de esperança, mas nunca fui bobo de arrogâncias, como os mendigos que impõem sua dor com ódio. Quis mais é saber-me mínimo, fazer um experimento contra minha soberba, e também porque tenho um corpo que não pega nem gripe - salve! - mas agora gosto de trabalhar simplesmente para ingerir e expelir coisas, seguindo a natureza de minha espécie, evoluindo-a, depurando-a no amor ao trabalho e no trabalho do amor, invejoso apenas das árvores, que tocam os extremos da terra e do céu com absoluta paciência.
Veja como minha escrita é perniciosa mesmo, e se a desdigo não é por charme de poeta que não pretendo ser: escrevendo aqui, pouco a pouco, bateu-me um sentimento sim, bateu-me um sim. Um amor pela minha mãe, pelo meu pai, pelos amigos e irmãos, pelos mortos e vivos, até pelos inimigos, se estes eu tiver. Está certo: foi um amor quieto, disfarçado, fugaz mas quase tátil enquanto durou, e que paro de proclamar aqui e agora. Mas que é sentimento ou ato mais valioso que as palavras que me chamaram daquele vazio com que comecei, com que tudo começa. E agora sim, posso retirar-me em paz e voltar a ser ninguém e nada. E é feliz assim, dizem meus olhos para o espelho transparente da manhã.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

para começo de festa



I don't wanna talk; a noite é para ser vivida. Sim, refrões baratos. Um caco qualquer de pensamento não vale o compasso grave dessa música. Qualquer batida do coração só vale o movimento livre desses braços e pernas. Mas, escondo o jogo, ainda. Mantenho o fogo nos olhos como se estivesse de óculos escuros. Disfarço o desejo da boca mascando um chiclete com refrescância no fundo. Sou polar, sou mistério. Faço as rodas do carro girar: leve-me para qualquer lugar. Não tenho pressa, não escolherei por desespero, mas pelo instinto, por isto deixo o desejo ruminar, tranquilo como se a noite não fosse acabar, e não vai mesmo; todas as noites são a mesma, serão sempre. Não estou aqui para um orgasmo, mas pela fantasia, permita-me colocar este ponto.
Estou pronto. Deixo a velocidade riscar as luzes da cidade em meus olhos, por falta das ondas de um mar. A camisa branca pode parecer dura demais, principalmente o colarinho no pescoço frágil, nas veias latentes. Pois a escolhi pela textura fria, acre como um cigarro. E mais: não me fantasio de palhaço à toa, sou mais é soldado da beleza, por isto o linho ancestral, de revestir múmias apegadas à ilusão do viver. Na calça, uma braguilha solta, cheia, porque me sinto livre, macho não. Macho é boca dura, e meus vermelhos são rosas esta noite. Sentiria-me vaidoso se gostasse de poses, mas pose fecha peito em estátua de pedra morta, e prefiro dançar minha dor, entregá-la ao movimento do vento que vier. Nada como a brisa de uma noite quente, de uma noite-útero a confundir os cabelos, a desfazer as marcas do estilo.
Quem vem comigo? Quem sorrir corajosamente a própria insegurança. Passem reto os que sabem das coisas, os servos da malícia. Quero mais é uma noite de encanto, porque sei que não haverá encanto algum, desses de sufocar. Noite boa é noite que se fantasia antes de acontecer. Entrando na festa, a festa acabou.
Por que sair então? Porque piso firme quando sonho alto. Por isso o tênis multicor. Cheiro fundo quando enfrento o medo. Por isso o perfume francês. Para dar coragem. Não é luxo, é o conhecimento do meu lixo, do que me é duro e fixo. Só pareço elegante quando encaro minha tristeza com dignidade. E se eu parecer belo esta noite, sorry, sou só um coração que passa batido, batendo só. Como você. Seja belo também para não sucumbir à esta sedução gratuita. A beleza não vem ao caso para quem se dança ao acaso. Sim, a beleza está em quem dança conforme a música. A beleza não está num belo nariz, mas num belo ouvido. Vai me deixar entrar por este vão?
Não, não me deixe entrar. Prefiro ver você acontecer sozinho, no meio da pista. Só assim seremos iguais. Ambos prontos para a solidão. Ambos esquecidos de que a noite é escura. Não é deslumbre, já aprendi a sofrer e agora posso brincar de ser feliz porque a felicidade não existe, é só jogo de tentar - e o melhor amor é o da manhã.
Esta noite eu vou à pista só, só para despistar.

domingo, 13 de setembro de 2009

fim de festa

um conto de qualquer década

Braços se alavancam para cruzar as serpentinas no ar. Os vinténs de confete, uma vez depostos na terra de cimento queimado, fazem sua lama triste sob o patinar de pés suados, verde e rósea como carne apodrecida.
Carolina procurava seu brinco de prata, uma peça rara, cara, recebida das mãos zelosas de sua avó já morta. Avó agora esquecida, enquanto a moça sorria seus dentes arroxeados de vinho no esgarçar parturiente de lábios que haviam perdido, já há algumas horas, a oportunidade de um beijo cauteloso. Agora só lhe restava aguardar, no recanto dos sonhos e promessas vãs, alguém que lhe extraísse da carne esgotada o sumo do sangue, o carmesim desmedido que mal se sinalizava aos olhos dos quase cegos na pista grande. Mas aconteceu. Ou quase isto.
Desistia já do brinco quando uns dedos longos, morenos, de grandes nós, resgataram-na do provável pisoteio dos pés engajados nos ritos de acasalamento. Com olhos de brilho temperados por olheiras fartas o rapaz sorriu-lhe sem grandes promessas, consciente ele próprio de que sua indiscrição, seu olhar-lhe no dentro, podia ser qualquer, como o de qualquer um ali. Ou assim ele acreditou descrente, despropositado, fora de lugar. Sua magreza, embrutecida pelo carnaval, virava também macheza, ainda que de uma brutalidade quase ressentida de si. Talvez fosse um desses tipos sensíveis; tímido não, pois mantinha umas pupilas firmes frente à indecisão ébria de Carolina, desalinhada debaixo do emaranhado dos próprios cachos. Com aquele desalinho ele podia - pensou - já  não seria o caso se ela estivesse a flutuar por uma grande avenida num final de tarde. Fosse como fosse, estavam ali, um para o outro, fundos.
Um terceiro, um tipo bem nutrido, bem tratado, bem exercitado em esportes que dispensam o juízo, um tipo que tudo podia com seu nariz de boneca virgem, pronto a romper-se o peito em desgraças nunca confessadas, tal o afã de seu êxtase sem destino, assustou-se talvez, parado que estacou defronte ao silêncio suspeito que se formara entre Carolina e o rapaz moreno, ambos jogando uma partida incômoda à obviedade caótica daquela pista de dança. O fato é que o três-tripas, o barriga-bufa, encheu-se chistoso para desdizer, ou estrebuchar, o que no fundo devia lhe maravilhar e invejar, e avançou o meio passo que bastou na direção do casal que ainda nem era tal ou tanto.
- Na boca! Na boca! – alguém gritou como quis Manuel Bandeira num poema.
Foi a deixa. Com gestos largos, o forte de delícias de diários bordados puxou a camisa do corpo fraco do moreno, pronto para qualquer estrangulamento, ainda que alguém depois comentasse que ele não teria mesmo coragem para tanto. Os olhos do magro encheram-se de todos os assassinatos, mas ele nada podia com seu peito murcho e sequer arfante, visão tal que concedeu o escárnio nos cantos dos lábios do outro, insatisfeito das mil bocas que beijara esta noite. Carolina, deslocada, com uma pena titubeante pregada na sobrancelha, querendo escorrer, mas não podendo tal era o suor, quase não teve tempo de puxar o ar em sinal de alerta. Na eclosão da tempestade, a pobre permanecia intemporal, buscando tecer a fina luz de sua alma em meio aos brilhos todos que giravam em sua cabeça, em seus braços lassos, em suas pernas impotentes.
O moreno tinha que pensar rápido, se é que o pensar resolveria a contenda a que fora impingido. A força de seu corpo não se media pela do outro, de músculos tesos, mesmo derretidos em suor alcoólico, mesmo perdidos na noite de todas as noites. A música da marchinha, bombando libido pelas artérias todas dos pescoços muitos, não deixava vez para uma palavra de fé, para uma palavra sequer.
Foi então que o defensor improvisado de Carolina teve a idéia, executando-a já enquanto eclodia entre certezas e hesitações. Brusco, no ritmo da festa, ofereceu primeiro a mão amiga ao fulano de tal, pedindo trégua muda antes da guerra declarada. E aproveitou quando o pilastra-para-ombros desentendeu tanta humildade para, assim sem mais, tascar-lhe um beijo na boca perplexa, passiva durante dois segundos diante de incoerência mais brutal que o ato que ofereceu primeiro.
Enquanto durou a aberração, a pista toda foi submergindo nas ondas de um mar noturno, surdo, lentamente mortal. Foi o tempo que bastou para que o moreno, sem emplumar-se na vanglória, retirasse dali Carolina, rasgando o primeiro desvio que lhe ocorreu entre a multidão agora conciliada numa mesma incompreensão.
Para onde foi o casal, não sabemos ao certo, só que devem ter alcançado o ar livre, serenoso, saltando, aqui e ali, sobre uns pares curvados por um orgasmo breve. Quanto ao beijado, foi acolhido por braços de músculos tais os seus, agora tesos por algo mais preciso, uma motivação pela qual rastejara a noite inteira e por fim, conquistara, ainda que a custa disso, daquilo, desse ato sem nome. Juntos, para desabafar, os amigos compartilharam os mesmos rancores guturais, disfarçados de riso, a que chamam de pilhéria solidária.
No mais, a festa continuou e, logo depois - pois não se brinca com a eternidade - a festa acabou. Não contarei sobre o salão vazio, a música fanando, as luzes já idas, refestelando no fundo da retina do último dos moicanos. Ninguém merece um fim de festa. Nem o vilão da história.

sábado, 12 de setembro de 2009

As Cidades Invisíveis de Italo Calvino

Terminei de ler AS CIDADES INVISÍVEIS de Italo Calvino (1923-85), considerado o maior escritor italiano do século XX, mas que é cubano. Nacionalidades à parte, é grande decerto. Para defender valores novos ou ancestrais para uma humanidade corrompida, ele não se apóia em intelectualismos arrogantes, mas faz da base de sua literatura tudo aquilo que é popularesco, pitoresco, burlesco. Isso é italiano sim, como o cinema de Fellini ou Pasolini, mas latino em geral, na essência, tendo como paradigma o Quixote. Talvez seja preciso uma imagem para ilustrar seu truque genial: todos sabem que não é fácil engolir uma alga marinha, ainda que mesclada em alguma iguaria da culinária japonesa. No mar, entretanto, sendo uma vez levado pelas ondas fáceis, recebendo o sol compensador, tolera-se e mesmo ama-se a estranheza de ter as pernas batidas e alisadas pelas algas em seu estado natural e vivo. Pois bem: vejamos o mar como o infinito compêndio de mitos que preenchem de graça nossas histórias, e as algas como as difíceis verdades que entrementes se anunciam. Assim é a literatura "fácil" de  Calvino.
Com muitos sorrisos agradecidos cheguei ao fim desta leitura que não se quer esgotar, só para recair no núcleo de tensão que me acomete há anos exigindo-me coragem; Calvino, generoso, coroa sua obra, ou dela dá cabo, deixando um conselho óbvio - pois nada é óbvio - a quem busque a coragem da expressão:
O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.
Que o céu exista e Italo Calvino traga-lhe algum riso e lhe amplie o horizonte imaginário.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

a pobres garotos que buscam um estilo muy rico

Para Voltaire e Oscar Wilde
Olhou-se no espelho da manhã, mediu os ângulos para verificar se a ponta do nariz permanecia levemente acima do horizonte, se cada sobrancelha erguia-se na incredulidade exata, fez biquinho para disfarçar a boca murcha de uma ressaca de anos. Oras, no mundo contemporâneo a vaidade masculina é artigo de revista, é coisa natural. Ele adorava falar do mundo contemporâneo como se fosse coisa muito natural.
O celular toca. Ele atende andando firme pela casa, de uma parede a outra, pois mesmo emerso de sonhos duvidosos que a noite lhe deixara, é sempre bom demonstrar uma paixão incontestável pelas ocupações cotidianas, ainda que expressa com certo ar entorpecido, para não parecer efusivo demais. Ele chamaria esta atitude de "equilíbrio", se já não tivesse abolido de seu vocabulário qualquer palavra que parecesse hippie demais.
- Olá! (preciso mostrar que estou contente em falar com ela) Estou bem... (um pouco de autocomplacência sempre chama a atenção). Sei...(vou mostrar que compartilho as preocupações da empresa como se ganhasse a mesma grana que ela)  Entendo... (cala a boca e me fala logo que vou substituir aquele imbecil) Que pena que ele agiu assim. (Coitado, deu uma de revoltado) Não se preocupe, eu posso fazer isso também. (eu sou bom, eu sou bom, eu sou bom) HAHAHA (não estou rindo da sua piada, mas da sua idiotice).
Sim, alguém caiu e agora ele poderia se levantar em seu lugar. É uma lei natural, e sou livre, livre, livre. Mas é melhor não dizer essas coisas em voz alta, ainda que muy justas, pois se deve ser humilde, simples, educado como os jovens de vinte anos que parecem saídos de uma piscina quente mesmo no pior dos eventos. Garotos que ele invejava, embora dissesse que "admirava", afinal existe certo charme em reclamar displiscentemente do próprio envelhecimento. Tudo é uma questão de conhecer um novo creme e de ser esperto o suficiente para não se divertir nem um pouco na balada mais recente, onde seria por isso mesmo invejado e vingado. Claro que não basta frequentar só casas noturnas, mas também aplaudir um "evento cultural" incompreensível com certa condescendência de quem sabe das coisas. O equilíbrio está, enfim, em espetar bem o cabelo para compensar a cara caída.
Já fazia um certo tempo que ele tinha medo de ser curioso, pois isto faz o peito bater e é melhor não demonstrar muito entusiasmo, emoção esta que faz o corpo parecer tenso demais. Ele perdia a inocência acreditando que perdia a burrice. E se alguém lhe dissesse que estava perdido, ok, pois está na moda ser "bem louco", seguindo pelos mesmos novos velhos circuitos, pelas mesmas novas velhas caixas de concreto superpopuladas. É bom estar na multidão, desde que não encostem nele. É bom cultivar uma dor infértil que ele acredita ser rebeldia, que faz querer ser parte de tudo um pouco, mas sem se aprofundar em nada, pois nada vale o engajamento de sua alma, só de seu corpo. E quando não consegue fazer parte de nada, quando não consegue ver a solidão como algo natural tais seus cabelos camufladamente planejados, repete com voz letárgica o mantra dinheiro, único valor concreto, realista, inteligente. Mas não dizia para os outros seu justo furor, pois não é de bom tom; ninguém dá emprego a um desesperado que pode soar como um revolucionariozinho de merda. O negócio é ser desesperadamente criativo, pró-ativo, ser melhor que os pais jamais foram, pois mais veloz - sim, ele acredita que ser inteligente é ser rápido. No fundo, aguarda ansioso o sucesso visível, não esse só de sua bela alma que se conhece. Quer um sucesso que tem a cara dos ambientes feericamente iluminados e perfumados que fazem a noite valer a pena. O sol é demais e faz suar.
Está tudo bem, pois quando está tudo mal resta ser sedutor, competir pelo melhor sorriso, passar batido por um choro de morte pois a morte não vale pena nem choro. É deselegante ser vulnerável, alguém pode ver. Há que ser forte, ou seja, duro.
Ao menos ele sabe glamurizar suas lamúrias. Ele não vê porque clamar aos céus como besta-fera inútil até para o sexo. A culpa é da cidade, mas há parques belos para percorrer. E ainda bem que tem parques com gente bonita e astral e saudável; as árvores não lhe bastariam com seu silêncio vivo.
Tudo é muito sofisticado e engraçado e interessante para que se perca tempo, para que se perca tempo em devaneios, para que se perca tempo em pensar, em pensar sobre si. Quem pensa demais parece muito egocêntrico e arrogante. E além do mais a palavra "hedonista" é mais sonora que a palavra "pensar", sem contar que uma droguinha transforma mais rápido que um livro. Livros são bons apenas para ter assunto. Para se enxergar, basta o espelho da juventude. Isto não é ser fútil, é ser antenado.
Mas, às vezes, por uma fração de segundo, o espelho lhe dói, e nem mijar com seu belo e potente pinto lhe alivia quando não suporta ver seu rosto por ângulo algum e só restam os olhos, os malditos olhos. Porque às vezes, às vezes, não dá mesmo para iludir o quão difícil é a tarefa de amar-se. Mas ele não sabe disso. Tolos somos nós que sabemos, que choramos, que somos "deprimidos". 

in between days

Hoje eu me sinto musical. Andei no ritmo certo, falei com o timbre necessário, respirei igual diante do desejo e da dor. Até cantei.
Senti saudades, revivi a infância com esperança e nostalgia para equilibrar meus mortos e os amores que ainda não sei.
Hoje eu agitei antes de usar, sacodi a poeira e dei a volta por baixo, e desdisse as instruções de uso e os adágios populares.
Tive raiva e compaixão. Pelas mesmas pessoas ilusoriamente próximas e pelos mesmos desconhecidos de coração. Acenei de leve para os compromissos e para os impulsos. Rendi-me e ergui-me. Trepei com a rua e vomitei em seu colo.
Falei com os amigos como se fosse sem querer e acariciei um cão qualquer como se ele fosse a origem do infinito.
Consegui ser cada um e ninguém, sem que ao menos tentasse algum ser. Soube quem sou e me ceguei.
Combato o tédio de amanhã, renovando algum grão de curiosidade, e não me encanto na ansiedade da incerteza do bom e do mau que enfrentarei certamente.
Por ora é só.  Por ora é tudo.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

a mais casta das cidades

Para quem não tem tem livros publicados e um fornido network, não cabe bem arrogar alguma sabedoria de próprio punho. Mas, para estes, existe um velho truque, que é o de citar, citar, citar.
Esta semana estou lendo As Cidades Invisíveis, do grande escritor italiano Italo Calvino. Aqui ele jocosamente reconta as supostas descrições que Marco Polo faz do império fantástico de Kublai Khan. As descrições de suas cidades são absurdas e por isso mesmo sábias. E se não fossem, oras, Italo Calvino já tinha bem umas boas décadas de estrada para escrever apenas a partir de uma inocência incontestável, de seu retorno ao fluxo da infância.
Pois bem, numa de suas cidades, a de Cloé, ele desenvolve uma idéia que sempre me vem à boca nas conversas informais, para sempre ser julgado de moralista, conservador, reprimido, ou coisa que o valha. Lá ele mostra como a contrição é necessária à plena expressão do desejo, que de outra forma, pela promiscuidade, retira dos homens qualquer aura de encanto, de real sensualidade. Nada de olhos famintos e explícitos.
Transcrevo este pequeno texto aos olhos de quem sabe ser o tempo precioso demais para julgar este ínfimo escrivão que vos fala.
Lá vai: 

"Em Cloé, cidade grande, as pessoas que passam pelas ruas não se reconhecem. Quando se vêem, imaginam mil coisas a respeito umas das outras, os encontros que poderiam ocorrer entre elas, as conversas, as surpresas, as carícias, as mordidas. Mas ninguém se cumprimenta, os olhares se cruzam por um segundo e depois se desviam, procuram outros olhares, não se fixam.
Passa uma moça balançando uma sombrinha apoiada no ombro, e um pouco das ancas, também. Passa uma mulher vestida de preto que demonstra toda a sua idade, com os olhos inquietos debaixo do véu e os lábios tremulantes. Passa um gigante tatuado; um homem jovem com os cabelos brancos; uma anã; duas gêmeas vestidas de coral. Corre alguma coisa entre eles, uma troca de olhares como se fossem linhas que ligam uma figura à outra e desenham flechas, estrelas, triângulos, até esgotar num instante todas as combinações possíveis, e outras personagens entram em cena: um cego com um guepardo na coleira, uma cortesã com um leque de penas de avestruz, um efebo, uma mulher-canhão. Assim, entre aqueles que por acaso procuram abrigo da chuva sob o pórtico, ou aglomeram-se sob uma tenda do bazar, ou param para ouvir a banda na praça, consumam-se encontros, seduções, abraços, orgias, sem que se troque uma palavra, sem que se toque um dedo, quase sem levantar os olhos.
Existe uma contínua vibração luxuriosa em Cloé, a mais casta das cidades. Se os homens e as mulheres começassem a viver os seus sonhos efêmeros, todos os fantasmas se tornariam reais e começaria uma história de perseguições, de ficções, de desentendimentos, de choques, de opressões, e o carrossel das fantasias teria fim."

MAKHTUB!

Oração da Manhã

Uma oração às pressas é o que me concede o tempo. Para resistir.
Quem sabe assim essas mãos já não minhas me abençoem na invenção de um deus mais puro, nunca antes pronunciado e nem por isto só meu, que "eu" é coisa que me parte.
Uma oração assim, com ponto e vírgula em lugar certo, mágico. Mas sem mistérios, que hoje quero a sabedoria da manhã de pássaros.
A árvore cresce sem pensar e assim me ouço e distendo sem vaidade, sem querer, quase no impulso que sexo nenhum pode conhecer.
Um amor. Universal, maior, que me perca em direções várias, na mesma delicadeza de uma ponta de dedo.
Para saber-me só eu choro a tristeza de quem não soube me querer. Para saber tamanho, para sentir saudade, para tomar meu banho.
Rezo sempre: amanhã talvez. A esperança é tênue, sim, e se não fosse, seria força, mas força é coisa de trilhos e trens, e quero ser fraco como lago, contido, constrito, apegado à terra, se esta for céu também. Quero aprender a ser pequeno.
As coisas todas acontecem tanto que só me cabe dormir e sonhá-las uma por vez, sem querer bater mais que o compasso de um sorriso discreto - esta chama de uma oração de tamanho ideal, fulguroso e trêmulo.
Feito isto, adeus mares, adeus olhos. A chama que me desperta é também a que me consome. Isto seria ambíguo se fosse civilizado, mas aqui quem fala é bicho que mal se põe de pé, que mal entende porque se trabalha, porque se conforta, porque se apodera. Eu vou abolir o poder tão naturalmente como um bicho a quem não se pode chamar rebelde, a quem o tempo não conta, a quem o universo perdoa e esquece.
Adeus, amor. Tua face é outra em qualquer canto. Sou livre para doer e por isto não me cabe exaltar. Meu amor não é um gozo. Meu amor não é uma história, um nome. Meu bonde é de outra era. Minha nostalgia é fraqueza dos ossos. Guardo-me assim. Assim. Assim. Que esta palavra caiba em qualquer beijo cuidadoso. A mim amém.

sábado, 13 de junho de 2009

Cinzas

'Será que vou conseguir parar de fumar?' Prometi aos deuses ser aquele um o meu último. A dor do vício já é grande demais. Pois é símbolo do "vício em outras mofadas formas de sentir e experimentar que fazem com que eu permaneça com a sensação eterna de que sou velho enquanto vejo o tempo levar a juventude de qualquer jeito".

Ufa. Eis que respiro melhor agora. Mas tenho lágrimas nos olhos. Não vou defender suas causas agora. Agora meus olhos estão vazios. Ou assim desejo. Sim, só um desejo substitui outro. Tá, tá. Mas cansei de viver desse jeito. Esta noite.
Esta noite eu fui ridículo. Assim me disseram até. Não achei bom, pois tive de morrer para. Sim, estou morto, digo por dizer. Enquanto que em minha cabeça gira uma feliz canção de ontem, anteontem. Sempre foi assim, o desespero numa canção.

Talvez sem o cigarro eu aprenda a morrer de verdade, e não aos poucos, e não aos porcos. Quero dizer: viver, deixar um sonho de infância chocar-se com a insatisfação do momento presente.

(Sofro sozinho, pois estou contaminado por este medo geral que recai sobre aqueles que não conseguem entender o outro.)

(Se eu praguejasse, seria um velho cansado ou um adolescente revoltado. Sou ambos. Não esta noite em que estou morto, anotando as horas na tumba. Será que quero morrer? Ou terei força para me divertir com a 'aventura de um sonho maior'?)

Tenho que parar de fumar. Não é só paranóia. Respirarei melhor. Serei mais forte. Comportarei sempre o sorriso certo a cada ambiente. Inspirarei um caminho inaudito de amor.

Mas esta noite precisei ser egoista, precisei deixar a curiosidade de lado e passar a sentir tédio. Precisei chorar sozinho para chegar no sentimento mais puro, isto é, sem destinatário.

Agora? Sinto a mesma frustração que senti em quase todas as aventuras para as quais me convidam, prometendo-me delícias que nunca se cumprem. Mas a pergunta é: será que da próxima vez darei uma nova chance com inocência, esperança e fé?

Quero aprender a pedir passagem cantando. De uma frase a outra, sempre. Como só um homem ridículo poderia fazer. Deixo a seriedade para a juventude que ainda precisa se afirmar entre o desejo e a razão, cativos de ambos. Quero mais é aprender a ver na luz de cada idéia a sombra de um desejo, e na sombra de cada desejo, a luz de uma idéia. Queria que aprendessem comigo, sem disputas, sem vacilações. Mas não foi possível de novo - quero dizer: esta noite.

Quando chegará o século em que todos seremos eternamente jovens e velhos? Guardo o segredo deste tempo em meu peito, em minha vida não contada. Só não sei do futuro, nunca é demais repetir. E claro, a sentença-mor: sei que vou morrer definitivamente, e não sei se é melhor se lembrar ou esquecer desta única certeza que nos salva e condena.

Que outra boca terá coragem de revelar a minha sua sede eterna, como num jogo de crianças sob o sol da praia?

Preciso mudar.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Norwegian Wood - Haruki Murakami e Beatles

Levei quatro anos para terminar de ler Norwegian Wood, romance aclamado por crítica e público, obra do escritor japonês Haruki Murakami. Tinha parado num trecho que refletia minha próprias angústias com a juventude. A leitura e fácil e fluída. A complexidade das relações é que embrutece ou faz viver.

A história é narrada por Toru Watanabe, dos dezessete anos aos vinte e poucos, desde 1968, quando chega em Tóquio para estudar teatro numa universidade. Mas o que dá base à história de experimentação numa megalópole nos anos sessenta são as relações prévias que Toru tinha com seu melhor amigo suicida e a namorada deste, Naoko, que entra em processo de degeneração constante desde a morte de seu amor adolescente, e com quem Toru vai desenvolver um laço tenso entre o carnal - a busca de um desejo possível no instante presente - e o espiritual - a busca de identidade e alteridade.

Publicado originalmente em 1987, este livro é uma interessante reverberação das pulsões beatniks, com seus ambientes jazzísticos, a presença dos silêncios orientais pontuando as conversas sobre música, arte, amor, as cartas para pessoas distantes, além de expressar a universalidade do despertar, este "estar atento e ter de escolher" entre tantos caminhos de corpo e alma - a escolha difícil entre o prazer inédito, atual, e o que a lucidez ordena com pitadas de lembranças.

Os detalhes sexuais, mais que descrições cruas, são envolventes e imprimem ao texto uma densidade plausível, que dosa bem o turbilhão de angústias, dúvidas, medos, festas, sonhos, lugares e pessoas de mundos desconhecidos e vagamente familiares.

Este livro tem cheiro daqueles clássicos de voz única. A quase estúpida placidez de Toru, bem como sua resignada melancolia, servem de apoio para que transitemos como pluma pelo belo e trágico final da década de sessenta. Sem morrer em nenhuma praia, nenhuma tribo.

Um momento luminoso se passa quando Toru sai para jantar com Nagasawa, seu amigo rico e garanhão, e com Hatsumi, namorada deste amigo e uma das muitas personagens fugazes que fazem sua aparição, brilham e fenecem, marcando para sempre Toru, que expressa uma boa frase para resumir a história: [o sentimento que ela me provocava] era algo como uma aspiração infantil que nunca havia sido saciada, e que jamais o seria.

***

Aqui tem o vídeo da música dos Beatles que dá nome ao livro. Abaixo do vídeo, a letra. Preste atenção na mistura de rock e cítara, uma das primeiras sínteses entre oriente e ocidente na cultura pop, resultado do encontro entre George Harrison e Ravi Shankar.

Norwegian Wood é do álbum Rubber Soul, de 1965, cheio de canções de amor quase desencantadas, mais sombrias, em comparação a sucessos anteriores dos Beatles, como Love me do e I want to hold your hand.


I once had a girl, or should I say, she once had me...
She showed me her room, isn't it good, norwegian wood?*
She asked me to stay and she told me to sit anywhere,
So I looked around and I noticed there wasn't a chair.
I sat on a rug, biding my time, drinking her wine,
We talked until two and then she said, "It's time for bed"
She told me she worked in the morning and started to laugh.
I told her I didn't and crawled off to sleep in the bath
And when I awoke, I was alone, this bird had flown
So I lit a fire, isn't it good, norwegian wood.
__________________
*Norwegian Wood é um tipo de madeira nobre para fazer móveis, artigo de luxo estrangeiro desejado pelos pobres com móvei de pinho.


...a trip...

Foto de Jack Kerouac, "quem quero ser agora",
tirada pelo Allen Ginsberg, em 1953,
época de grandes trips para essa turma

Meço o que há de errado em minha vida pelos pensamentos errados que tenho sobre o amor. Entenda-se errado como autodestrutivo.

Sou um palhaço torto e careca ou um galã sempre pronto para o sexo? Desejo estar no fio da meada.

Ando assumindo que sei menos sobre mim do que sabia. Não me enxergo com a mesma frequência de antes e quando o faço, sou cruel. Ou era. Mas ainda me acho feio e magro e branquelo e velho e pesado. E viciado em cigarros.

A juventude me anima e depois me cansa. A velhice dá esperança e depois o mesmo. Ando muito cansado de quem tentei ser e não consegui.

E lembro de todas as paixões recusadas por algum trauma oculto, digno do cu; paixões platônicas dessas de idealizar no outro aquilo que não se tem coragem de viver. E me sinto fraco e preciso treinar meu corpo para treinar a mente. "Corpo são e mente sã". Novamente o ideal grego da felicidade. Falta a praia.

Numa dessas noites, numa dessas pessoas vejo a juventude despreocupada, repleta de possibilidades, aberta e livre. Vejo a beleza da naturalidade. Vejo o ingênuo jogo de esconde-esconde onde sou eu quem mais se esconde e é o outro quem mais revela.

Queria chorar por nunca ter tido vinte anos de fato. Porque sei que conquistarei o que me faltou, mas com lucidez e cansaço. Sorrio entretanto - sei que é difícil para todo mundo que eu gosto.

Tem noites como esta que eu queria morrer só um pouquinho, durante alguns meses, só para me tornar mais forte, em conexão com os sonhos, em desconfiança com a realidade, no esquecimento do que me atormenta hoje. Porque "há sempre alguma coisa de ausente que atormenta." (Camille Claudel) O outro não me amará com desejo. Ou seria descrença minha? "Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças." (Fernando Pessoa)

Penso nesse outro com pele morena, plexo solar aberto, sorriso ingênuo e olhar caloroso, pronto para a vida, sem julgamentos, dando-se ao prazer com arte e perícia, amando cada vez mais e melhor. Esquecendo-me em meu canto escuro, em meu limbo ilusório. Queria que o outro me olhasse de fato. Talvez olhe e me veja feio como me sinto na metade do tempo. Queria ser alegre o suficiente para amar. Eu queria me amar para ser alegre o suficiente. Não quero amar este Alexandre. Tenho que mudar! Tenho que partir para o desconhecido, para a revolução de costumes, para a graça lisongeira da beleza natural. Prefiro sentir esta angústia do que o tédio.

(De uma certa forma me contenta saber que cheguei aqui sozinho, na paciência de depurar no tempo as coisas sem nome, mas óbvias. Escrever verdadeiramente vem da força de querer enfrentar uma angústia noturna. Escrevo também para absolver-me de alguma culpa.)

O outro é a árvore de frente para varanda de casa: abaixo da altura de meus olhos, mas, ainda assim, de um mistéio inacessível. Quando o outro ri de mim é a natureza que ri de mim. Quando rio na cara do outro é a sociedade rindo da natureza. Preciso fazer mais gostoso... Não digo que eu queira viver a vida de pau duro, nem na ilusão do êxtase, mas tenho direito, ao menos, a um estado de proeminência de todas as aventuras.

Agora caço dinheiro, amor, estudo, aprendizado, paz, abertura, sexo despreocupado e intenso. Sou mais um. Mas sou muitos, e quero cada uma de minhas vidas como uma possibilidade quase palpável nos horizontes. Sim, sou mais um.

Quero saber fazer novamente belos versos de amor, desses que só sorriem.

Voa pássaro mutante da praça central. Leva o meu canto. Adormeça antes do sol raiar. Se aqueça nos cantos seus e dos galhos, enquanto a noite resfria.
Um duro caminhão passa pelo cruzamento, três andares abaixo, cachoalhando ferro. Foi-se. Novamente o milagre do pássaro a cantar. Acho que estou conseguindo. Digo: ser feliz. Besta e prontamente. Estar vivo no prazer de fluir, sem acomodar-se a nenhum pensamento, nenhuma ruga, respirando para libertar-se de tantos estado de alerta. Flutuar. Dormir. Acordar. Dançar. Cutucar o instante. Aprontar, agir, desarmar, esquecer. Esquecer-se no outro, no corpo amante, suficiente, equilibrado. Lembrar-me de mim o tempo todo para conquistar o direito de não ser mais ninguém.

sábado, 9 de maio de 2009

Lixo na Virada Cultural

Pior que sentir o lixo e o caos durante a última Virada Cultural, é ver pacotes inteiros de folhetos de divulgação do evento abandonados num canto qualquer da praça da República.


Parceria

Há dez anos ou mais, eu e a Cláudia (http://inkuts.blogspot.com/), amiga de alma e arte, brincamos seriamente de fazer uns trabalhos em conjunto, um mix de desenho e poesia. Ela começou desenhando; usou algumas de suas múltiplas armas expressivas para dar luz a certas urgências do inconsciente, e eu tentei registrar as palavras que as musas sugeriram a partir dos desenhos. Até deu orgulho ver o que fizemos aos 19, 20 anos.... Ei-los:


Eu, que fui tão somente um giro de sol.....
de talões desnudos, transpus campos de coroas de cristo;
e um passo adiante, pisoteando bolas de algodão em flor,
criei barbas ruivas nas solas sangrentas....
no meio das mil dunas, tomei da ampulheta apenas,
tornando-me também um senhor do tempo ao fiar linha arenosa
por minha laringe tal couro esticada.... trespassei fantasmas moluscais com lâminas de prata,
incandescentes. Passantes, amantes; todos eles....
alentei, em mãos molhadas de oceano, meu umbigo febril,
convulsionado. Linhas frígidas sobre as lesmas de dor....
emaranhei os cachos da sereia, e vi que teia ainda é seda.
Nas caudas limbosas dos tritões, esfreguei o breu,
até que o atrito se fizesse um sustenido....
nos olhos fui gotejado de saliva cancerosa. Espessa,
rompendo camadas do céu. Sempre fui um cego....
enroscando nas próprias lãs, cocei o queixo num pêssego caído.
As manchas da queda eram úmidas como olhos vazados....
sufoquei a fome com asas de borboleta. tantas quantas pude encontrar....
tive o rosto a borbulhar, passivo a ventos devassos;
e, escondendo-me sete palmos abaixo das águas,
vi o sol correr de novo de um fim a outro enquanto esperava.
Eu, que soube de cada cicatriz da Natureza,
até a chegada da noite, com as falanges trêmulas,
vesti de pergaminhos as mamilas de alguém.


Se há de haver uma gota, se for uma gota,
que role então - acanhada pêra às pressas colhida -
de pêlo a pêlo rastreando tatos em abandono.
De pêlo a pêlo a alegoria de mineiros caindo em séquito.
- Que caia negra.Que seja negra e negros sejamos nós.
Se há de haver o artista da multidão,
que crie então - deliberado e conciso, de olhos trêmulos -
de nuca a nuca edifique um frontispício.
De fronte a fronte - as frescas, as cansadas, as machucadas, as aureoladas.
Que crie e tão somente crie. Criar ainda é movimento.
E frágeis de veias a estourar, que sejamos nós
sua obra de arestas mal polidas, inacabadas.
Ainda se arde na terra - calvário luxuoso de nossas torres.
Ainda a terra arde, e com ela nossos tendões - seda dos pés-calcário.
A sombra ainda alenta e tão lenta passa erigindo novos mapas
sobre nós, sobre os convites entregues, sobre o dia. Sobre a terra.
E no fim , refaz sua paz com a lua, seja esta a meretriz.
À noite, a sombra faz as pazes com a lua - fazem seu entoar
de ninar sobre a pele que dissimula os olhares da seda.
Que sejamos para o sol só o que se vê. Só o que se vê.
Como sempre, que sejamos mineiros caídos em diamantes de arestas e brilho primatas -
Feito o sol para a antiguidade.
Para os sequazes os olhos do dia, que sejamos apenas um detalhe.
E para o resto do tempo, que sejamos o resto de nós.

domingo, 12 de abril de 2009

um gato preto

As amoras estavam frescas, o creme de baunilha era quase natural; só a calda não era de açúcar mesmo, mas de outra coisa melosa, perigosa no mínimo. Meus dedos suportam menos o pegado do doce que a língua salivada. Limpo-me como gato.
Passa um gato. De verdade e preto. Dos olhos verdes de pescar tua maior fraqueza. Você se defende e respira fundo. Não demonstra medo, tão pouco come o doce. O gato avança um metro, para de novo e fixa o olhar. Eu digo, fixa o olhar, o mesmo... Antes, enquanto ele caminhava como um assassino ou mensageiro do pior, deixei de ver um gato e vi ali uma besta primordial, gostaria que fosse de uma terra quente no Egito, mas era coisa até então mais deconhecida que noite trevosa, impressão que só se dissolveu quando o gato voltou a ser gato, e me olhou. Então, decidi que, eu também, eu também deveria voltar a ser gente, a levar jeito para a coisa. Pus a mão no queixo, a pensar ante os olhos do ser. Não demorou muito para que eu fraquejasse e suspirasse fundo. O gato só mexeu alguns bigodes, quase insinuando um sorriso de sarcasmo, mas não se dignando a tanto. Decidi ser gente olhando com o olhar cansado de quem finge ser essa coisa pessoa. Fingia para disfarçar que eu e o bicho éramos o mesmo ser, parados na expectativa daquele instante, sem desejo, sem posse, igualmente indiferentes, amorosos e prontos para o silêncio.
Cansamo-nos após alguns segundos. O gato virou e eu também, sem competição, uma trégua perpetrada pelo reconhecimento mútuo de uma irmandade de solidão.
Como eu queria que ele falasse... Cheguei a crer que sabia dizer ao menos o essencial, mas o guardava sob o olhar para torturar-me na dúvida cruel. Por que eles tem de ser tão constantes, ainda que permeáveis? Se ele praticava esta magia oculta, eu havia de apelar para alguma invenção de telepatia. Em suma, em minha gana de conquistar o mistério daquele gato, eu fantasiei, com a fé de um louco, que seria capaz de ler seus pensamentos. E assim o fiz.
Mas, antes de reproduzir o que lhe descobri, se assim for necessário, devo confessar que conheço o motivo íntimo da existência dessa minha fé cega em alucinações comunicativas: eu tinha que sair o quanto logo daquela padaria. As putas já tomaram conta do pedaço e o pecado do doce passara da hora de morrer. A boca salva só mais uma fruta, a última amora. Mas a urgência, a urgência era uma só: você matara alguém. Sim, você matou alguém - ainda bem que revelou num certo ato falho, num movimento inconsciente da glote.
Há um minuto, sentia-me capaz de equilibrar o golpe duro do machado com a suavidade do creme de baunilha e calda púrpura. Um luxo inexplicável que não me colocaria numa situação mais vil que a de ter a consciência obcecada por uma total falta de escrúpulos.
Certamente, você obedeceu algum senso de justiça bem argumentado. Entretanto, fez-se o senhor do silêncio, de mãos limpas, só os dedos pegajosos, tintos de um vinho inesquecível. Agora você é mais um, pode ser esquecido.
Você empunha o garfo sentindo-se uma miniatura de Poseidon, certo e obsoleto. Arma as pontas afiadas contra o doce, disposto a aceitar a realidade concreta do prazer possível. Mais urgente que sua mão, o ser emite um estridente rancor que enche seu peito de pavor e letárgica melancolia. Ao redor do bicho arrepiado, o mundo do balcão da padaria e das mesas na esquina da avenida parou de falar, em respeito à sentença decisiva e poderosa daquele gato preto. E quando você olha, num piscar, num hesitar da inspiração, o bicho, claro, havia desaparecido. Sorte, azar ou acaso, você agradece e respira melhor. Que se vá com seus segredos! E eu? Conto os meus? Contei a história do gato preto, ao menos.
E tem a segunda história, mais terrível, mais absurda, mais atroz, se se quiser. O que me cabe é registrá-la. Julguem por si mesmos se este é o melhor lugar para relatar este estranho evento, pois, ao que me parece, e é horrível admitir, esta segunda história revela a primeira, a do grito do gato, tão bem como se as duas estivessem misteriosamente enredadas por uma lógica tão arbitrária quanto evidente.
O fato é que, quando cravei o garfo no doce, finalmente, tão próximo da normalidade quando poderia estar, esquecido até mesmo de que eu jogara no lixo da esquina, minutos atrás, embrulhado em papel de jornal como se fosse nada, o dedo anelar de minha vítima. (Não usei o machado para outra finalidade - cabe-me acalmar alguns nervos. Envenenei-o e pronto.) Agora, eu dava com um coisa acomodada debaixo do creme de baunilha, da calda sanguínea: sim, lá estava ele, o dedo anelar de meu opositor.
Por ora, não sei se devo acreditar que já me perseguem, que fui flagrado e torturar-me-ão até o fim, ou se devo atribuir este joguete maldito a algum ser invisível capaz de dominar os gatos e os mortos. Minha angústia é constante - minha âncora de sobrevivência. Pensei, por um momento, em reclamar com o padeiro, em pedir meu dinheiro de volta, para distrair-me, como se aquele dedo não fosse comigo. Mas, saí sem correr riscos. Não paguei o doce, e deste crime arrependo-me eternamente.
Na rua, não tive mais que um minuto dessa vida: à minha frente, um táxi refreia brusco, emite o agudo som de auge dramático numa derrapada e passa por cima de um volume pesado. O gato. Que não se mexe. Que antes mesmo - assim meus sentidos quiseram ver - estava duro como se fosse morto.
- Já estava morto - confirma uma contundente profissional, enquanto, por baixo da mini-saia, alivia o elástico da calcinha na virilha.
Você pensa: será que um primeiro veículo o teria matado antes? Neste caso, porque não houve nenhum burburinho, um último esganiçar de agonia, um lamento de mulher?
Era melhor não pensar mais.
Você toma o táxi assassino.
- Para onde? - o taxista sintetiza com cumplicidade de propaganda de pasta de dente.
Você só é capaz de responder:
- Tem algum lugar em que não exista gatos?
O homem sorri felino. Você se acomoda no banco, reencontrando a anatomia apropriada, funga quase descontente mas com a preguiça de quem pede paz. Concede a vida ao homem, e por incrível que pareça, adormece todos os ódios. Sim. Dorme e tem o mais belo dos sonhos. Que é melhor não contar. Ninguém daria crédito a um assassino. Ninguém dormiria de noite.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

A Invenção de Morel e Marienbad

Finalmente! Li A Invenção de Morel , de Adolfo Bioy Casares, escritor argentino, parceiro entranhado de Borges. Este livro me rondava há meses, recomendado por uma amiga, enquanto falávamos de Jorge Luis. Já o filme Ano Passado em Marienbad, de Alain Resnais, também me fora altamente indicado na mesma época, por outro amigo. Mas, eu não sabia que o filme vinha do livro e só o soube depois de assistí-lo, semana passada, quando decidi encarar a obra original, que li ontem numa sentada. Feliz coincidência, lapso de tempo, fruto do acaso ou sábia sincronicidade, ainda mais por essas obras refletirem tão profundamente essas temáticas temporais.

Do livro, tenho uma edição em espanhol, mais barata que a tradução. Até me emprestaram a tradução, mas devolvi sem ler. Não queria me aventurar ainda. Dava medo a afirmação de Borges de que "não parece uma imprecisão ou uma hipérbole qualificá-la [a obra] de perfeita." Seu julgamento apoia-se no fato de Adolfo Bioy produzir uma história intricada com enredo mínimo, e assim temos as descrições mais ou menos fragmentadas segundo a acuridade de visão do narrador-personagem, o "fugitivo da lei".

Outro atributo ressaltado por Borges é a capacidade de seu amigo em sintetizar de forma harmômica as querelas eternas entre clássicos e modernos. O narrador caótico reencontra a civilização na ilha em que se refugia, sobretudo encontra um enorme museu, ou hotel, onde vários franceses snobs desfilam sua frieza intencional uns para os outros numa grande encenação. A trama foi construída como num romance policial (como os muitos que escreveria com Borges, ambos sob o pseudônimo de H. Bustos Domecq); um estilo já clássico, e neste caso as peripécias são dadas pelas nuances interiores do narrador. Com sentido de urgência e surpresa, seguimos atentos suas paranóias, como a de ser descoberto, seu amor nunca suficientemente declarado, ao que presume, pela bela e fria Faustine, e acima de tudo, suas descobertas em torno da invenção de Morel, o "tenista barbudo". Este segredo máximo, limite do mistério nesta narrativa, é o que nos simboliza, afinal, o propósito do sutil jogo de realidades repetidas, sóis duplos, estações do ano sobrepostas, fusão entre memória e desejo, fenômenos que tornam cada vez mais movediça a realidade. Basta dizer que a resolução antecipa cinquenta anos de história... Talvez porque Buoy Casares também seja um desses autores preocupados com a eternidade. E o que seria de nós vivendo numa eternidade apenas imaginada pelo homem? Responde Morel: "eu poderia ter-lhes dito, ao chegar: viveremos para a eternidade. Talvez tivéssemos arruinado tudo forçando-nos a manter uma contínua alegria. Pensei: Qualquer semana que passemos juntos, se não sofrermos a obrigação de ocupar bem o tempo, será agradável."

Fazendo humor da angústia, construindo uma eternidade possível e comovente, esta obra nos leva a buscar por Morel, o gênio louco cuja lógica é tão insana quanto perfeita, e por Faustine, seu pólo oposto, a pura e silenciosa voz do mistério, com sua frieza sorridente, estabelecida à força entre prazeres cansativos e tédios inevitáveis. E nossa busca é a do narrador, que constrói a história enquanto a inventa ou tenta explicar, entender, amar, sobreviver, escolhendo memórias, projetando desejos.

O filme de Alain Resnais foi feito quase vinte anos depois da publicação do livro, e é a própria obra-prima idealizada por Morel em sua invenção. Na tela, acompanhamos a repetição da perfeição calculada, vemos dissolverem os limites entre memória, desejo, realidade, sonho, ilusão, alucinação, lucidez, perdidos entre o que de fato teria acontecido ano passado em Marienbad, o que se passa agora, a gente parada em desejos do que é possível e impossível de ser feito, planejando uma eternidade enquanto se teme a morte.

No livro, temos ainda a vantagem de ver a história pela perspectiva do fugitivo da lei, observando à distância este palácio encantado, tentando até se envolver, mas preso à sobrevivência, obrigado a revelar sua própria história e identidade ocultas no exercício de desvendar a invenção de Morel/Resnais. Sua descoberta da eternidade sonhada torna-se cada vez mais claramente um aprendizado da morte.

O filme é mais sombrio, seu labirinto não tem ponto de fuga, nem após os créditos finais. No livro, a jornada é mais esperançosa, como, por exemplo, quando o narrador conclui, para fazer calar suas angústias: "Está ese camino: vivir, ser el más feliz mortal."

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Pequena Ficção / One Landing Morning

Evening at the window - Chagall

Dois experimentos a partir do mesmo motivo...

Pequena Ficção


Começou com uma palavra, não mais. Ela disse “simples” na ponta da língua, eu disse “sempre” na ponta do lápis. Se você quer ter tudo, tem que trabalhar muito. Artigos de luxo e dor nas costas. “Ó pobre burguês a reclamar”, eu disse já para quebrar a possibilidade dela me chamar de “auto-indulgente”, esta palavra fina que ambos acataram de suas formações cristãs, o pai dele católico, o dela espírita. “Amanhã haverá talvez um concurso de miss na televisão”, ela diz. “E o que tenho a ver com isso?”, você responde. “Você não acha engraçado?”, ela ri.
Mas ele não pôde responder, pois logo entrou pela janela um saco de lixo preto, amarfanhado. Era coisa do acaso, do vento ou de ambos. Dentro havia um pássaro gritando, pedindo por socorro, preto no sangue, bico para cima, cores ao vivo.
Entreti-me em seu olhar antes da atitude de salvá-lo. Ela, atrás da cama, esperou com suas chinelas verdes de pano, nem um passo a frente, nem um passo atrás. O que faríamos? O que eu faria? Olhei o bicho no saco, seu estado, e nada. Não se mexia mais. “Não sei como se ouve coração de pássaro”, eu disse. Ela disse: “Não preciso do seu cinismo agora.”
“Ela não me quer mais”, você pensa, e deixa o pássaro quieto. Amanhã será talvez. Mas a preguiça fez com que ficássemos ali. Era melhor do que brigarem com os pais. Era melhor que beijar na boca. Ela se senta na cama, as mãos pensas sobre o colo, um sorriso no rosto, um ar de aleluia.
Ele tirou os sapatos pretos, deixou-os lustrando ao lado do ninho de plástico, arrastou-se de fininho até a cama e deixou de existir, sem dó nem piedade.
Dormiram.Viveram juntos.

One Landing Morning
One day, when days was crowded ones
An the roses was sold around the corners,
A small and smart boy came slowly from the road.
Pissed the grass, laid down all over the rest
And dreamt about a dream under the rain.

The train was coming fast,
The food was at its best,
My baby just don’t care,
Lying like a cat,
Just for fare… But –
I see a fly in my wine,
And the winter is wide in the air.
The wings spreads fractions of vibrations on the red surface.

She’s not decided to live or die.
She does not think in anything.
She’s drunk for the three of us or she just tries.
She talks to me in a language I can breath.
I want to say ‘I’m fine for today’,
But she stops playing.
‘I know I’m gonna be sleeping soon”,
I said before wake up.

terça-feira, 31 de março de 2009

lapsos da eternidade


Assim que sintonizo um pensamento certo, só espero adormecer o mais rápido possível e cair na irrealidade profunda dos sonhos. Não porque considere que o inconsciente seja mais nobre que a consciência, mas porque detesto me embriagar de mim mesmo. Porque sei que a certeza me vence onde o medo me usurpa. Assim, espero contradizer meus pensamentos com sonhos de origem desconhecida.

Mas, quando sonho bem, também desejo voltar a pensar adequadamente o quanto logo. Não chega a ser um propósito, pois também não me agrada esta ansiedade de sempre preferir estar um passo à frente de mim mesmo; sei e sinto que é bom contentar-se no instante presente, perfeito e imperfeito, completo e ausente. O que me agrada é assumir uma contradição. Mas isto também, nem sempre. Tenho medo de mim na maior parte do tempo, por isso me movo para frente, mas é justamente aí, no movimento progressivo, que a contradição reaparece, contraditoriamente. Já quando confio-me demais, sinto uma preguiça quase eterna, sem vontade de expandir ainda mais o universo.

Quero, sobretudo, aprender a nascer e morrer sem perder tempo, embora saiba que quando me perco no tempo dos homens, torno-me, ainda assim, alguma coisa que cabe neste mundo, meu e nosso.

Enfim, a paz é uma guerra constante; o riso, um choro; cada banalidade, uma sabedoria; cada significado, um espanto mudo e sem sentido. E pronto. Agora sim podemos jogar este texto no lixo e fingir que foi apenas sonho difícil de lembrar. Isto não é conselho nem presente de grego. Entenda assim: a compaixão me move onde a raiva me falha. E vice-versa. E viva o verso.

Diálogo incompleto entre um jovem de 20 e outro de 30


"Não sou jovem o suficiente para saber tudo"
Oscar Wilde


20 - Se estou na idade da liberdade, isto é, aberto à realização de qualquer sonho, por que o passado me prende, aliando-se ao medo de experimentar? Por que devo escolher o que sou, baseado no que fui?

30 - Você diz que é livre, mas para você a liberdade apenas começa. É um ideal ainda. Vai escolher a liberdade no ato de responsabilizar-se pelas próprias escolhas. Vai acreditar, justamente, que é livre para escolher. Aos poucos, a maior parte dos sonhos possíveis parecerão ilusões, por conta da necessidade de aplacar uma fome cada vez mais material. O espírito parecerá pobreza. Embora eu próprio tenha de assumir que volto a buscar o espírito, e o resto do invisível, nos despojos da carne.

20 - Você é tão dramático quanto eu. Corre atrás de certezas duvidosas, enquanto sondo por dúvidas certeiras.

30 - As certezas são atalhos. E se você não quer ser mais um servo da matéria, precisará de uma urgência que só as verdades proclamadas podem trazer. Você ainda tem o benefício de viver no tempo da poesia, espontaneamente. Eu luto para não esquecer o que sonhava aos vinte anos, por não conseguir ser espontâneo naquela época. Sei que, como antes, continuo desejando o tempo todo. Mas agora tenho menos medo de agir, o que torna as transgressões de outrora menos excitantes hoje. Cada vez faço um esforço maior para me interessar por coisas e pessoas, embora tenha menos preconceitos. Ao mesmo tempo, luto para me desapegar de coisas e pessoas às quais me acomodei.

20 - Você e eu somos iguais: continuamos a desejar um grande amor e a cartada certa. E isto não tem idade.

(janeiro/09)

quinta-feira, 26 de março de 2009

A BIBLIOTECA DE BABEL - Jorge Luis Borges

By this art you may contemplate the variation of the 23 letters...
The Anathomy of Melancholy,part. 2, sec. ii, mem. iv
***
O universo (que outros chamam a Biblioteca) se compõe de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no meio, cercados por varandas baixíssimas. De qualquer hexágono se vêem os pisos inferiores e superiores: interminavelmente.
A distribuição das galerias é invariável. Vinte prateleiras, sendo largas cinco por parede, cobrem todos os lados menos dois; sua altura, que é a dos andares, excede apenas a de um bibliotecário normal. Uma das faces livres dá para um apertado saguão, que desemboca em outra galeria, idêntica à primeira e a todas. À esquerda e à direita do saguão há dois gabinetes minúsculos.
Um permite dormir de pé; outro, satisfazer as necessidades finais. Por aí passa a escada espiral, que se abisma e se eleva até o remoto. No saguão há um espelho, que fielmente duplica as aparências. Os homens pretendem inferir deste espelho que a Biblioteca não é infinita (se fosse realmente, para quê esta duplicação ilusória?); eu prefiro sonhar que as superfícies polidas figuram e prometem o infinito... A luz procede de umas frutas esféricas que levam o nome de lâmpadas. Há duas em cada hexágono: transversais. A luz que emitem é insuficiente, incessante.
Como todos os homens da Biblioteca, viajei em minha juventude, peregrinei em busca de um livro, acaso o catálogo dos catálogos; agora que meus olhos quase não podem decifrar o que escrevo, me preparo para morrer a umas poucas léguas do hexágono em que nasci. Morto, não faltarão mãos piedosas que me atirem pela varanda; minha sepultura será o ar insondável; meu corpo submergirá profundamente e se corromperá e dissolverá no vento engendrado pela queda, que é infinita.
Afirmo que a Biblioteca é interminável. Os idealistas argumentam que as salas hexagonais são uma forma necessária do espaço absoluto ou, pelo menos, de nossa intuição do espaço. Raciocinam que é inconcebível uma sala triangular ou pentagonal. (Os místicos pretendem que o êxtase lhes revela uma câmera circular com um grande livro circular de lombada contínua, que dá toda a volta das paredes, porém seu testemunho é suspeito; suas palavras, obscuras. Este livro cíclico é Deus.) Basta-me, por ora, repetir o ditado clássico: A Biblioteca é uma esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono, cuja circunferência é inacessível.
A cada um dos muros de cada hexágono correspondem a cinco prateleiras; cada prateleira encerra trinta e dois livros de formato uniforme; cada livro é de quatrocentas e dez páginas; cada página quarenta linhas, cada linha umas oitenta letras de cor negra. Também há letras no dorso de cada livro. Essas letras não indicam ou prefiguram o que dirão as páginas. Sei que esta inconexão, algumas vezes, pareceu misteriosa. Antes de resumir a solução (cujo descobrimento, apesar de suas trágicas projeções, é quiçá o fato capital da história) quero rememorar alguns axiomas.
O primeiro: A Biblioteca existe ab aeterno. Desta verdade, cujo corolário imediato é a eternidade futura do mundo, nenhuma mente racional pode duvidar. O homem, o imperfeito bibliotecário, pode ser obra do acaso ou de demiurgos malévolos; o universo, com sua elegante dotação de prateleiras, de tomos enigmáticos, de infatigáveis escadarias para o viajante e de latrinas para o bibliotecário sentado, só pode ser obra de um deus. Para perceber a distância que há entre o divino e o humano, basta comparar estes rudes símbolos trêmulos que minha falível mão garatuja na capa de um livro, com as letras orgânicas do interior: pontuais, delicadas, negríssimas, inimitavelmente simétricas. [1]
O segundo: O número de símbolos ortográficos é vinte e cinco. Essa comprovação permitiu, há trezentos anos, formular uma teoria geral da Biblioteca e resolver satisfatoriamente o problema que nenhuma conjectura havia decifrado: a natureza informe e caótica de quase todos os livros. Um, que meu pai viu em um hexágono do circuito quinze noventa e quatro, constava das letras MCV perversamente repetidas desde a linha primeira até a última. Outro (muito consultado nesta zona) é um mero labirinto de letras, porém a página penúltima disse Oh tempo tuas pirâmides. Já se sabe: por uma linha racional ou uma reta notícia há léguas de insensatas cacofonias, de miscelâneas verbais e de incoerências. (Eu sei de uma região cerrada cujos bibliotecários repudiam o supersticioso e vão costume de buscar sentido nos livros e o equiparam ao de buscá-lo em sonhos ou em linhas caóticas da mão... Admitem que os inventores da escritura imitaram os vinte e cinco símbolos naturais, porém sustentam que esta aplicação é casual e que os livros nada significam em si. Esse ditame, já veremos não é de todo falaz.)
Durante muito tempo se acreditou que esses livros impenetráveis correspondiam a línguas pretéritas ou remotas. É verdade que os homens mais antigos, os primeiros bibliotecários, usavam uma linguagem bem diferente da que falamos agora; é verdade que umas milhas à direita a língua é dialetal e que noventa pisos acima, é incompreensível. Tudo isso, repito, é verdade, porém quatrocentas e dez páginas de inalteráveis MCV não podem corresponder a nenhum idioma, por mais dialetal ou rudimentar que seja. Alguns insinuaram que cada letra podia influir na subseqüente e que o valor de MCV na terceira linha da página 71 não era o que pode ter a mesma série em outra posição de outra página, porém esta vaga tese não prosperou. Outros pensaram em criptografias; universalmente essa conjectura foi aceita, ainda que não no sentido em que a formularam seus inventores.
Há quinhentos anos, o chefe de um hexágono superior [2] deu com um livro tão confuso como os outros, mas que tinha duas folhas de linhas homogêneas. Mostrou seu achado a um decifrador ambulante, que disse que estavam redigidas em português;outros disseram que em iídiche. Antes de um século pôde-se estabelecer o idioma: um dialeto samoiedo-lituano do guarani, com inflexões de árabe clássico.
Também se decifrou o conteúdo: noções de análise combinatória, ilustradas por exemplos de variações com repetição ilimitada. Esses exemplos permitiram que um bibliotecário de gênio descobrisse a lei fundamental da Biblioteca. Este pensador observou que todos os livros, por mais diversos que sejam , constam de elementos iguais: o espaço, o ponto, a vírgula, as vinte e duas letras do alfabeto. Também alegou um fato que todos os viajantes confirmaram: Não há na vasta Biblioteca, dois livros idênticos.
Dessas premissas incontroversas deduzo que a Biblioteca é total e que suas prateleiras registram todas as possíveis combinações dos vinte e tantos símbolos ortográficos (número, ainda que vastíssimo, não infinito) ou seja, tudo o que é dado expressar: em todos os idiomas. Tudo: a história minuciosa do porvir, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos, a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o comentário deste evangelho, o comentário do comentário deste evangelho, a relação verídica de tua morte, a versão de cada livro em todas as línguas, as interpolações de cada livro em todos os livros, o tratado que Beda pôde escrever (e não escreveu) sobre a mitologia dos saxões, os livros perdidos de Tácito.
Quando se proclamou que a Biblioteca abarcava todos os livros, a primeira impressão foi de extravagante felicidade. Todos os homens se sentiram senhores de um tesouro intacto e secreto. Não havia problema pessoal ou mundial cuja eloqüente solução não existisse: em algum hexágono. O universo estava justificado, o universo bruscamente usurpou as dimensões ilimitadas da esperança. Naquele tempo se falou muito nas Vindicações: livros de apologia e de profecia, que para sempre vingavam os atos de cada homem do universo e guardavam arcanos prodigiosos para seu provir. Milhares de ambiciosos abandonaram o doce hexágono natal e se lançaram escadarias acima, urgidos pelo vão propósito de encontrar sua Vindicação. Esses peregrinos disputavam nos corredores estreitos, proferiam obscuras maldições, se estrangulavam nas escadarias divinas, lançavam os livros enganosos ao fundo dos túneis, morriam despenhados por homens de regiões remotas. Outros se enlouqueceram... As Vindicações existem (eu cheguei a ver duas que se referem a pessoas do futuro, a pessoas talvez não imaginárias) mas os buscadores não recordavam que a possibilidade de que um homem encontre a sua, ou alguma pérfida variação da sua, é computável em zero.
Também se esperou então o esclarecimento dos mistérios básicos da humanidade: a origem da Biblioteca e do tempo. É verossímil que esses graves mistérios possam explicar-se em palavras: se não bastar a linguagem dos filósofos, a multiforme Biblioteca produziria o idioma inaudito que se requer e os vocábulos e gramáticas desse idioma. Faz já quatro séculos que os homens fatigam os hexágonos... Há buscadores oficiais, inquisidores. Eu os vi no desempenho de sua função: chegam sempre rendidos; falam de uma escadaria sem degraus que quase os matou; falam de galerias e escadarias com o bibliotecário; vez por outra, tomam o livro mais próximo e o folheiam, em busca de palavras infames. Visivelmente, ninguém espera descobrir nada.
À desaforada esperança, sucedeu, como é natural, uma depressão excessiva. A certeza de que alguma prateleira em algum hexágono encerrava livros preciosos e de que esses livros preciosos eram inacessíveis, pareceu quase intolerável. Uma seita blasfema sugeriu que cessaram as buscas e que todos os homens embaralhavam letras e símbolos, até construir, mediante um improvável dom do acaso, esses livros canônicos. As autoridades se viram obrigadas a promulgar ordens severas. A seita desapareceu, mas em minha infância cheguei a ver homens velhos que largamente se ocultavam nas latrinas, com uns discos de metal em um cubículo proibido, e debilmente imitavam a divina desordem.
Outros, inversamente, creram que o primordial era eliminar as obras inúteis. Invadiam os hexágonos, exibiam credenciais nem sempre falsas, folheavam com fastio um volume e condenavam prateleiras inteiras: a seu furor higiênico, ascético, se deve a insensata perdição de milhões de livros. Seu nome é execrado, porém aqueles que deploram os “tesouros” que seu frenesi destruiu, negligenciam dois fatos notórios. Um: a Biblioteca é tão enorme que toda redução de origem humana resulta infinitesimal. Outro: cada exemplar é único, insubstituível, mas (como a Biblioteca é total) há sempre várias centenas de milhares de fac-símiles imperfeitos: de obras que não diferem senão por uma letra ou uma vírgula. Contra a opinião geral, me atrevo a supor que as conseqüências das depredações cometidas pelos Purificadores, têm sido exageradas pelo horror que esses fanáticos provocaram. Urgia neles o delírio de conquistar os livros do Hexágono Carmim: livros de formato menor que os naturais; onipotentes, ilustrados e mágicos.
Também sabemos de outra superstição daquele tempo: a do Homem do Livro. Em alguma prateleira de algum hexágono (raciocinaram os homens) deve existir um livro que seja a cifra e o compêndio perfeito de todos os demais. Algum o teria percorrido e seria análogo a um deus. Na linguagem desta zona persistem ainda vestígios do culto desse funcionário remoto. Muitos peregrinaram em busca d’Ele.
Durante um século cansaram-se em vão pelos mais diversos rumos. Como localizar o venerado hexágono secreto que o hospedava? Alguém propôs um método regressivo: Para localizar o livro A, consultar previamente um livro B que indique a localização de A; para localizar o livro B, consultar previamente um livro C, e assim até o infinito... Em aventuras dessas, tenho prodigado e consumido meus anos. Não me parece inverossímil que em alguma prateleira do universo haja um livro total [3]; rogo aos deuses ignorados que um homem – um só, ainda que tenha sido há mil anos! – o tenha examinado e lido. Se a honra e felicidade não são para mim, que sejam para outros. Que o céu exista, ainda que meu lugar seja o inferno. Que eu seja ultrajado e aniquilado, porém que em um instante, em um ser, Tua enorme Biblioteca se justifique.
Afirmam os ímpios que o disparate é normal na Biblioteca e que o racional (e mesmo a humilde e pura coerência) é quase uma milagrosa exceção. Falam (eu sei) da “Biblioteca febril, cujos aleatórios volumes correm o incessante destino de transformar-se em outros e que tudo o que afirmam, negam e confundem como uma divindade que delira.” Essas palavras que não só denunciam a desordem mas também a exemplificam, notoriamente provam seu gosto péssimo e sua desesperada ignorância.
Com efeito, a Biblioteca inclui todas as estruturas verbais, todas as variações que permitem os vinte e cinco símbolos ortográficos, porém nem um só disparate absoluto. Inútil observar que o melhor volume dos muitos hexágonos que administro se intitula Trovão penteado, e outro A câimbra de gesso e outro Axaxaxas mlö. Essas proposições, à primeira vista incoerentes, sem dúvida são capazes de uma justificação criptográfica ou alegórica; essa justificação é verbal e, ex hypothesi, já figura na Biblioteca. Não posso combinar uns caracteres
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que a divina Biblioteca não tenha previsto e que em alguma de suas línguas secretas não encerrem um terrível sentido. Nada pode articular uma sílaba que não esteja plena de ternuras e temores; que não seja em alguma dessas linguagens o nome poderoso de um deus. Falar é incorrer em tautologias. Esta epístola inútil e faladeira já existe em um dos trinta volumes das cinco prateleiras de um dos incontáveis hexágonos – e também sua refutação. (Um número n de linguagens possíveis usa o mesmo vocabulário; em algumas, o símbolo biblioteca admite a correta definição ubíquo e perdurável sistema de galerias hexagonais, mas, biblioteca é pão ou pirâmide ou qualquer outra coisa, e as sete palavras que a definem têm outro valor. Tu, que me lês, estás seguro de entender em minha linguagem?)
A escritura metódica me distrai da presente condição dos homens. A certeza de que tudo está escrito nos anula ou nos afantasma. Eu conheço distritos em que os jovens se prosternam diante dos livros e beijam com barbárie as páginas, porém não sabem decifrar uma só letra. As epidemias, as discórdias heréticas, as peregrinações que inevitavelmente degeneram em banditismo, têm dizimado a população. Creio haver mencionado os suicídios, cada ano mais freqüentes. Quiçá me enganem a velhice e o temor, mas suspeito que espécie humana – a única – está por extinguir-se e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta.
Acabo de escrever infinita. Não interpolei este adjetivo por um costume retórico; digo que não é ilógico pensar que o mundo é infinito. Aqueles que o julgam limitado, postulam que em lugares remotos os corredores e as escadarias podem inconcebivelmente cessar – o que é absurdo. Aqueles que o imaginam sem limites, esquecem que contém o número possível de livros. Eu me atrevo a insinuar esta solução do antigo problema: A Biblioteca é ilimitada e periódica. Se um eterno viajante a atravessasse em qualquer direção, comprovaria ao cabo dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, repetida, seria uma ordem: a Ordem). Minha solidão se alegra com esta elegante esperança. [4]

Mar del Plata, 1941

[1] O manuscrito original não contém algarismos ou maiúsculas. A pontuação está limitada à vírgula e ao ponto. Esses dois signos, o espaço e as vinte e duas letras do alfabeto são os vinte e cinco símbolos suficientes que enumera o desconhecido. (Nota do Editor).

[2] Antes, para cada três hexágonos havia um homem. O suicídio e as enfermidades pulmonares destruíram essa proporção. Memória de indizível melancolia: Às vezes viajei muitas noites por corredores e escadarias polidas sem achar um só bibliotecário.

[3] Repito: basta que um livro seja possível para que exista. Só está excluído o impossível. Por exemplo: nenhum livro é também uma escadaria, ainda que sem dúvida haja livros que discutem e negam e demonstram essa possibilidade e outros cuja estrutura corresponde a de uma escada.

[4] Letizia Alvarez Toledo observou que a vasta Biblioteca é inútil; em rigor, bastaria um só volume, de formato comum, impresso em corpo nove ou corpo dez, que constaria de um número infinito de folhas infinitamente grandes. (Cavalieri, no início do século XVII, disse que todo corpo sólido é a superposição de um número infinito de planos.) O manejo desse vademecum sedoso não seria cômodo: cada folha aparentemente se desdobraria em outras análogas; a inconcebível folha central não teria reverso.


Tradução: Alexandre Rabelo
Agosto de 2008