terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Uma leitura de “Marte em Áries”, de Agnaldo de Assis Nascimento



O Gui é um daqueles escritores tão talentosos que as críticas de seus livros parecem sempre insossas, insuficientes sequer de captar os fios principais. Desse mesmo jeito foi a orelha que escrevi para seu romance de estreia, o “Horses”, e não sem certo orgulho meio constrangido tenho visto nesses dois anos desde então outros poucos corajosos usando um ou outro de meus conceitos-cortes provisórios para também abrir algum desvendamento sobre a arquitetura e o fluxo encantado de Agnaldo de Assis Nascimento. Provavelmente essas linhas sobre seu novo “Marte em Áries”, 1º lugar no Prêmio da Biblioteca Pública do Paraná em 2021, também não fugirão muito de uma perplexidade besta. Nem ele fala direito sobre seus livros, admite humildemente ter subido nos ombros de uns quantos gigantes, quando muito. Só grita na folha em branco e em sua banda punk, a Versus Mare. Que ódio! Ainda bem que ele admira um pouco meu trabalho também, assim me resolvo no amor da amizade.

“Horses” nos apresentou um carrossel narrativo do mal em que cabeças punk-líricas se elevam uma a uma numa dança circular coletiva muitas vezes deliciosamente contraditória, passeando por redutos da cultura rock no subúrbio paulistano com um olhar tão genuinamente épico, homérico mesmo, engolindo tudo em sua “fúria-calma”, a cidade e todas suas subjetividades possíveis, na bela tradição de Joyce e outros modernistas que só agora realmente parecem estar sendo absorvidos por autores brasileiros de modos mais criativos e sem muitas vênias. É também um romance que se constrói incorporando de forma muito potente, com fluxo, fôlego e sintaxe mais modernas a herança da literatura brasileira até os anos 80, sem passar pelo período mais monocromático dos anos 90 e 2000, com exceção para as influências de obras tardias de Noll e Hilst. Essas influências representam mais que escolhas estilísticas ou decalques de clássicos como se vê por aí, mas uma urgente – e emergente - perspectiva de mundo, um posicionamento político-cultural-existencial diante do desencantamento do mundo, mas sem chororô e sem cinismo, o que é raríssimo, só mesmo pra esses escritores-xamãs-encantadores-de-serpente. Não é à toa queele é músico. “Horses” também me fez descobrir uma nova era nas disputas literárias: agora o subúrbio e o “submundo” são cultos e eruditos, e todo mundo já entendeu o que existe de perversamente excludente nas categorias de literatura marginal, underground, identitária ou coisa que o valha. Sobretudo, o Gui percebeu o essencial: namorar o modernismo é tematizar o enfrentamento do tempo. Cada um de seus capítulos nos coloca no centro das ações por um fluxo de emaranhados internos safadamente hipnóticos que não deixa de explicitar, no verbo e na carne, que o pior mesmo é sempre a espera pelo retorno a um mundo mágico onde talvez nunca tenhamos pisado. Ou então a percepção de que o pesadelo é não conseguir dar corda no relógio no País das Maravilhas.

“Marte em Áries” se alimenta dos mesmos fluxos de pensamento lírico para mastigar a épica da máquina do mundo e nos contar uma história de paixão que orbita principalmente ao redor de um par de estranhos duplos um do outro: Ivan, o narrador, um jovem instrutor de academia de ginástica, morador do centro de São Paulo e, como muitos habitantes desse território de identidades partidas, alguém que parece estar ali para se desenraizar de alguma origem suburbana; seu outro e objeto de sua paixão é Ravi, menino loiro-lindo, bem cuidado, de boa família, violinista, alguém que parece querer preencher certo vazio de sua formação privilegiada com os mesmos desvios hedonistas-utópicos que o centro proporciona. É nesse circuito perigosamente fluido que cruzam seus destinos. Também vale notar que o centro da cidade é adotado aqui não só como um território onde os gays podem existir “naturalmente”mas onde percebem que esta é também uma narrativa forjada, uma liberdade de consumo. Paradoxo a que nos atiramos com fúria diante da consciência de que qualquer outra construção-instituição acolhedora envolve algum desmoronamento interno. Esse é apenas um dos pontos que destacam esse livro muito além de um romance gay. Tolo daquele que não aproveitar esse romance-romance para, inclusive, conhecer melhor os gays. Não é uma narrativa da bolha pra bolha e essa característica pode torná-la desconcertante. Juntar viado e literatura experimental pode ser demais para algumas cabeças formadas pela dinâmica excludente dos nichos mercadológicos. A escrita de Gui não se seduz por uma literatura identitária com mocinhos e vilões. Ivan é um narrador que já se acostumou com o fato de que no centro da cidade toda violência é banal, apenas recompensa pra cachorro faminto, tanto quanto toda celebração já nasce meio de ressaca. Vive no meio fio desesperado entre a busca pelo outro na paixão-sujinha que pontua alguma transcendência no cotidiano e as multidões de sinais pipocando o tempo todo num fluxo que só uma alma um tanto resignada e ainda assim maravilhada poderia suportar. Essa sensibilidade epifânica torna o tempo circular e artificial para os moradores deste território, como se os moradores do centro emulassem o mito de Penélope tecendo eternamente sua mortalha apenas para desmanchar o trabalho na próxima ressaca. É também uma sensibilidade como a que se refere o título, uma conjunção astrológica explosiva, dominada por ímpeto, instinto de sobrevivência, talento para os prazeres, certo misticismo vago como nos lúcidos-melancólicos de Caio F. ou nos tolos-puros de Clarice. 

Com tanta arte enredada, não precisamos muito de enredo, embora o Gui tenha articulado uma escalada dramática de tirar o fôlego, mesmo numa prosa tão densa poeticamente, alternando capítulos em que Ivan narra suas melhores memórias com Ravi e outros em que descobrimos que o violinista loiro está há semanas desaparecido. A técnica da memória involuntária como algo que nos assalta a consciência é usada com habilidade causando constrastes que desafiam o leitor ao mesmo tempo em que oferecem um respiro: o idílio na praia, onde a paixão assume seu mito, e o enterro de Marta, irmã de Ravi, são os pólos extremos que nos colocam em total suspensão. Mas é sobretudo na indefinição da rua que os personagens buscam rasgar suas identidades, ato necessário à sobrevivência de alguma força primal que se descobre indispensável.

 É por isso que a paixão aqui não é uma narrativa banal de bom entendimento entre duas partes civilizadas, mas um milagre entre forças brutas precariamente convergentes. Existiria melhor modo de enfrentar o tempo?Durante a espera por algum sinal do paradeiro de Ravi, enquanto não sabemos se o anjo fugiu por amor demais ou por falta dele, Ivan busca sentido em outros corpos, paixões, aventuras, festas, frestas, vapores, só para admitir que tudo apenas realça o vazio deixado pelo desaparecimento e que, mesmo antes da aparição, as não-palavras estavam lá, desde um tempo muito antigo. Me lembrou um pouco o diário “A Dor”, da Marguerite Duras, em que ela aguarda o marido retornar da guerra e sua espera nos faz entender o próprio nonsense do conflito global, tão secundário na narrativa. Também me parece um diálogo muito original com “A obscena sra. D.”, da já citada Hilda. Lá a memória da paixão faz a protagonista sobreviver parca e porcamente entre o ressentimento da injustiça do outro e o ressentimento de sua própria incapacidade em ser o suficiente para a paixão. Grande enigma ao qual Gui está atentíssimo. Em “Marte em Áries” a paixão é, num primeiro plano, um estudo da paixão gay, as entregas repentinas e inflamadas, uma possibilidade de romper com os ditames familiares repressores, também um jogo narcísico complexo em que pau e cu são apenas marionetes de uma cena maior em que homens transam brigando pra se descobrir menos homens. Paixão de se jogar no abismo, e para tanto a procura até na sarjeta. Sem dúvida, é uma redenção da cidade. O final é belíssimo, não posso contar de jeito nenhum, mas posso dizer que é como se o Thomas Mann ressuscitasse só para esfregar o livro do Gui na cara do Aciman e seu “Me chame pelo seu nome”. Para o autor egípcio, o idílio era exceção, pro nosso tupiniquim a loucura da fuga é uma regra sensata. Sobretudo, o que resta mesmo da experiência de leitura de “Marte em Áries” é a imensa satisfação de não conseguir reconhecer todos os truques de um grande escritor, para quem é evidente que arte e mistério têm suas conjunções secretas.

 


 

domingo, 26 de dezembro de 2021

Duas estreias literárias que não cabem na crítica tradicional



Dois autores gays e seus marcantes romances de estreia, um de Salvador, Rafael Gurgel e seu “Dark Room”, Editora Escaleras, o outro de Rio Claro no interior paulista, Thiago Loureiro e seu “Vinco”, Editora Viseu. 

Para os advogados inflamados das linguagens puras, vanguardas transgressoras e estéticas revolucionárias como foco totalitário da crítica, essa apresentação inicial, geográfica, pode parecer superficial. Mas reparem: só quem defende livro exclusivamente pela linguagem é escritor e crítico hétero, branco, de elite, e suas cobras criadas. Brigam entre si por um reflexo do brilho de James Joyce – tadinhos de nós - talvez para disfarçarem o tédio de sua matéria histórica, as circunavegações ao redor de uma consciência burguesa em seu apê desmoronado mas impecável, o pai que não serve e o filho frustrado, um ressentimento homérico com relação às coisas da rua, vistas com melancolia e nobres idealismos em crise, expressos pelo cinismo e deboche com um sabor de confissão criminal. Sempre haverá os guardiões inférteis dessa ou de outra literatura. E Joyce permanece vivo, entre milhares de anônimos geniais. 

Mas também não posso ser leviano e reduzir livros a seus temas sociais (psicanalíticos não, por favor, dá uma canseira ver essa ciência-arte incrível aparecer tanto como falso mistério na mão da elite paulistana culta). Provavelmente as críticas mais honestas são aquelas que buscam não ranquear os novos gênios da arte, mas reviver a trama tecida entre linguagem e matéria histórica, localizando o autor em algum ponto de uma teia sem centro e sem nenhuma aranha-Joyce para nos comer no final. Sobretudo, no caso de autores gays já dissidentes no próprio gueto, tenho a responsabilidade não só de localizá-los num mapa de interesses políticos que extrapolam a arte, como também devo ampliar esse mapa da produção queer brasileira quando suas tendências não forem o suficiente para expressar as novidades, tudo isso sem reduzir a nova produção à uma arte identitária vista como de segundo escalão. Até porque a maioria da arte identitária dos últimos 15 anos - seu justíssimo momento de glória – não tem mesmo força sozinha para ocupar o centro das discussões mais interessantes sobre uma literatura como contradição e não tese, e é visível como muitos autores novíssimos de nossa comunidade, assim como autores negros, mulheres, indígenas, já perceberam que não basta colocar as ditas minorias como vítimas do Grande Homem Branco. Esse ponto cego dificulta encarar um nó fértil para a literatura, a constatação jocosa de que ninguém presta mesmo. Também precisamos entender os problemas específicos de nossa comunidade sob uma perspectiva mais abrangente, olhar pra fora de nosso umbigo cheio de glitter e bandeiras. Precisamos não só peneirar as ideias fora de lugar para nos alimentarmos delas, como também precisamos com muita urgência entender as corporalidades em espaços específicos para quem sabe superarmos a crise da crítica formalista que tem sido tão perversa com novos autores e independentes brilhantes. 

            “Dark Room” e “Vinco” guardam uma característica recorrente em boas ou más estreias, são livros conduzidos como narrativa de autodescoberta para seus autores. Ambos também usam o território livre da literatura para dar um sentido à memória. Esses fios condutores quase inescapáveis são urdidos com talento em diferentes camadas, desde o enredo até a forma adotada, tanto por Gurgel quanto por Loureiro, ambos já estreando pelo romance e todo o fôlego que exige essa forma em constante construção.

 Em “Vinco”, acompanhamos a trajetória de Otávio como moldura geral de um romance polifônico. Esse narrador-autor é um jornalista branco e heterossexual frustrado com o trabalho e o casamento e que, em dado momento, recebe a missão de conseguir uma entrevista picante com uma autora lésbica em Paraty, durante a Flip. Otávio vê a oportunidade como um respiro tanto de São Paulo quanto de sua formação conservadora no interior do estado. O acolhimento com que a autora lésbica e sua companheira recebem Otávio, leva a entrevista para um outro rumo, o da empatia pelo afeto, a busca do outro como busca de si. É raro ver na produção contemporânea brasileira um personagem hétero que se transforme assim pela presença de um membro da comunidade queer, ainda mais de forma tão mediada. Normalmente são as intransigências da sociedade para com esses corpos coagidos pelo conservadorismo o que prevalece nas narrativas, tema que não deixa de ser importante, sem dúvida tambémpresente nesses dois livros complexos e diretos. No romance de Loureiro, o que encanta o personagem hétero não é o dó pela dor do outro, mas o modo como ele se deixa atravessar por novas formas de amor, novos arranjos familiares, religiosos, de gênero. O jornalista em crise decidtornar essa jornada um livro de entrevistas, e entre os capítulos em que acompanhamos sua busca pessoal, encontramos diferentes vozes expressando a si mesmas a partir de um trabalho literário feito com entrevistas reais e outras imaginárias. Mesmo não sendo membro da comunidade queer, é nela que Otávio se inspira para mudar de vida. Que ponto importante. Também é interessante o autor ter utilizado o recurso de nos revelar uma traição por parte da mulher do protagonista, uma designer fútil e ascendente a faria-limer; nem sempre o homem é o vilão da história, embora Otávio tenha coragem o suficiente para encarar seus próprios limites. É quase como se esse livro tivesse a generosidade de ensinar aos leitores héteroscomo sentir amor ao invés de medo, vulnerabilidade ao invés de força, embora essa também se faça valer nos rasgos de nossas imperfeições, e todo mundo é imperfeito na obra de Thiago, uns mais perversos, outros mais empatas. Sem dúvida, a busca por uma expansão do conceito de amor é um eixo forte do livro, e a constatação de que mesmo arranjos familiares inusitados como trisais, relacionamentos poliafetivos ou abertos podem construir casas harmônicas em que um cotidiano muito simples é vivido na maior parte do tempo como em qualquer lar brasileiro. E Thiago nos faz entrar nas casas dessa maneira, humanizando os personagens por suas carências materiais mais imediatas e o foco na sobrevivência,  no trabalho, também em pequenos privilégios porque não somos vítimas. Fazemos bolo, cuidamos de nossas crianças, limpamos nossas casas, construímos a sociedade. Termina muito bem com a voz oracular de uma travesti, e só faz sentido depois de toda a jornada. Com uma história assim, não é à toa que Thiago tenha querido ampliar sua possibilidade de leitores, para além de nossa bolha, e conquistar também o público heterossexual. Este é um dos maiores trunfos de “Vinco”, o público que têm conquistado. É aquele livro pra você dar pra sua mãe, mesmo praquele seu amigo monogâmico  e ele não vai se assustar, ainda quecolocado diante de uma honestidade e uma franqueza acachapantes.

No caso de “Dark Room”, franqueza seria uma palavra eufemística para expressar a caixa preta aberta por Rafael Gurgel, e será lamentável se interessar apenas a leitores gays. Esse romance também nos apresenta, assim como fez Thiago, um narrador-autor, desta vez jovem e gay, igualmente em busca de um outro, no caso André, um professor-amante, homem cis gay branco de uma geração mais velha que conhecemos em primeira pessoa na construção literária assumidamente forjada por seu narrador-autor. Impossível não lembrar de meus “Itinerários para o fim do mundo“, de conflito semelhante e raramente explorado. Teria sido incrível conhecer a obra do Rafael antes de publicar o meu. O narrador é lúcido, rancoroso e admirado o suficiente para desconstruir uma paixão que foi enganosamente chamada de desconstruída quando surgiu entre o mestre “descolado” e o aluno “livre”. Por mais que o professor André também se lembre da repressão que sofreu desde a infância na sociedade soteropolitana, seu ponto cego é não perceber que sua liberdade foi conquistada pela máscara do gay ativo. Mas ainda que duvidosas, essas experiências, tantas e tamanhas, não deixam de seduzir o jovem narrador, em busca de sua própria corporalidade, consciente das projeções sociais de sua paixão pelo professor que prefere Björk à praia. Com tantas camadas, a narrativa de Gurgel se instaura muito mais na desconstrução do gênero homoerótico ao modo da linhagem fértil de Genet, Roberto Piva e tantos outros românticos obscuros geniais, mesclando grotesco e sublime, dentro de um referencial do romance contemporâneo que explora o fragmento da memória de forma não linear e mais associativa, pagando alguns tributos diretos  a Caio F., cada vez mais perto, cada vez longe. Como autor de uma nova geração, Rafael utiliza esse erotismo errante que encanta e ao mesmo tempo denuncia para tematizar o falocentrismo presente mesmo em pessoas cultas e alternativas. Com issocapta uma camada muito mais sutildesse tipo de violência e ainda nos ambienta uma Salvador fora do clichê de um remelexo solar, muito mais ligada à uma urbanidade deliciosamente distópica-nostálgica que não deixa de se referir ao famoso bairro boêmio da Santa Cecília em São Paulo, ou a uma Nova York cosmopolita e noturna onde podemos encontrar algum duplo de Madonna. Sob um olhar ora debochado, ora sacralizante, Rafael não deixa de se filiar à famosa linhagem das narrativas sobre a libertinagem baiana – o desejo aqui é o grande motor que encadeia os fragmentos, em disputa com a memória, enquanto que mais para o sul do país parece que a memória domina o desejo - sem deixar de ironizar o clichê baiano de liberdade, como no momento em que expõe personagens em disputa para ver quem será o grande substituto de Raul Seixas como anjo caído da cidade. E como resolver esse impasse? Na segunda e última parte do livro, de apenas algumas páginas preciosas e chamada de “Glory Hole”, Rafael nos propõe um caminho tão inusitado quanto profeticamente óbvio: uma ontologia poética-profética do cu. Com tom evocativo, muitas vezes invocatório, certamente com pitadas tanto de poesia lírica quanto épica, Gurgel mobiliza diferentes recursos para conceituar e exaltar o cu não só como o órgão sexual sem gênero por excelência, espécie de deus salvador do corpo cercado de couraças, mas sobretudo como boca que emite as mensagens que o rosto não quis dizer. A erótica do cu é também uma ética, uma política, o final oportunamente aberto para um ótimo romance de estreia.

Fiz questão de escrever esse texto não só para inserir essas duas boas estreias numa perspectiva crítica que julgo urgente e necessária, mas sobretudo para que não caíam no vácuo das correntes críticas hegemônicas e para que todos possamos usufruir do modo como esses autores tensionam os gêneros não por serem livros identitários, ou independentes, ou imaturos, mas por criarem pontes em potencial que podem interessar todo tipo de literatura. E sociedade.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

“Conectados & Desconectados”, de Daniel Manzoni


Li em dois tempos a novela “Conectados & Desconectados”, recentemente publicada pelo amigo Daniel Manzoni. Confirmo minha intuição: esses autores que aprenderam a vida na área da saúde e das biológicas têm uma agudeza de olhar sobre as relações humanas deliciosamente cruel. E Manzoni foi esperto em casar esse olhar cortante com nossa melhor linhagem melodramática, aquela que vira a chave e enfia o pé na jaca da desgraceira como Nelson ou Cassandra, nas mãos dos quais tudo vira tragicomédia. Bem difícil alcançar esse tom, só pra quem tem bastante consciência de nossa brasilidade, de nossas paixões doentias a esmo por um país sem força de lei. Essa novela intensa de 70 páginas usa de forma bem pontual a estrutura das narrativas rocambolescas e policiais para falar da cisheteronormatividade dos gays paulistanos, com especial ênfase para os rapazes de classe média baixa que se ressentem por não ter os mesmos privilégios que os rapazes da Bela Vista e Jardins. Rapazes para quem nenhum amor é destinado, que dirá uma bela união civil com festa e bailado. Claro, sua arena não é só a cena de bares, boates, restaurantes e academias de ginástica que vão do alto ao baixo gueto da cidade, mas principalmente as redes sociais. Os capítulos da novela são estruturados como posts públicos em que um narrador misterioso é quem nos conta essa história que chega às raias do crime. Destaque para as reações abobalhadas de supostos internautas nos comentários que também fazem parte do livro. Gosto bastante como o Daniel consegue apresentar o lado perverso dos homens gays, sem apresentá-los como vítima ou vilões estanques, mas analisando o background social de cada um sem ser pedante. Além da escrita talentosa, creio que este é o ponto que mais destaca essa novela em meio aos dramalhões gays que circulam por aí. Ansioso por mais histórias assim. Abaixo deixo um gostinho da novela: