sábado, 24 de janeiro de 2009

Acreditar na Humanidade?

"Um fato básico que os 'adeptos' da sabedoria da Índia costumam esquecer é que os mestres indianos e aqueles que se libertaram das cadeias do mundo rejeitam todos os valores da Humanidade. A 'humanidade', no sentido do ser humano, o ideal de sua perfeição e o ideal da sociedade humana perfeita, foi da maior importância para o idealismo grego, como ainda o é para o cristianismo ocidental em sua forma moderna; entretanto, para os sábios e ascetas indianos, os Mahatma e salvadores iluminados, a 'humanidade' não era mais do que uma casca a ser partida, quebrada e abandonada. Porque a perfeita inatividade do pensamento, palavra e ação, é possível unicamente quando se morre para todos os interesses da vida: morto para a dor e o prazer, bem como para todo impulso de poder; morto para os atrativos do exercício intelectual; morto para os assuntos políticos e sociais; imóvel, profunda e absolutamente desinteressado mesmo pela condição de ser humano. A última, sublime e suave cadeia, a virtude, também é, por conseguinte, algo a ser cortado. Não pode ser considerada como meta; ela só é o início da grande aventura espiritual do 'autor da travessia' , um degrau no caminho rumo à esfera sobre-humana. Outrossim, esta esfera não é apenas sobre-humana, é também superdivina: está além dos deuses, de suas moradas celestiais, de seus prazeres, de seus poderes cósmicos. Conseqüentemente, a 'humanidade', tanto em seu aspecto coletivo quanto individual, não pode continuar preocupando alguém que seriamente se esforça por atingir a perfeição seguindo a rota suprema da sabedoria hindu. A humanidade e seus problemas pertencem às filosofias da vida, que analisamos anteriormente: as filosofias do êxito (artha), do prazer (kama), e do dever (dharma); porém estas já não interessam àquele que literalmente morreu para o tempo, e para quem a vida é morte.
'Deixa aos mortos sepultar os seus mortos': esta é a idéia. Justamente por isso resulta tão difícil - para nós, cristãos do Ocidente moderno - apreciar e assimilar a mensagem tradicional da Índia."
Filosofias da Índia - Heinrich Zimmer

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Samsara


"Todos temos que nos identificar e 'pertencer' a algo; mas não podemos nem devemos buscar nossa realização nesta atitude, porque reconhecer as distinções entre as coisas, diferenciar isto daquilo - ação implícita e fundamental no esforço natural - pertence à esfera da mera aparência, ao reino do nascimento e morte (samsara). A tendência popular indiana a tudo deificar, a tornar divinizada toda classe de ente, não é menos absurda, em última instância, que a irreligiosidade cientificista do Ocidente que, com seu 'nada mais que', pretende reduzir tudo à esfera do entendimento racional e relativo - desde a potência do sol até o ímpeto do amor. O relativismo e o absolutismo, quando totais, são de igual modo perversos, precisamente por serem convenientes. Simplificam em excesso visando os fins da ação eficaz. Não se preocupam com a verdade e sim com os resultados. Enquanto não compreendermos que cada coisa inclui todas as demais, ou pelo menos, que também é diferente do que parece ser, e que antinomias tais como as dos opostos - o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, isto e aquilo, o sagrado e o profano - estendem-se até as fronteiras do pensamento, mas não as ultrapassam, ainda esatremos atados ao monturo do samsara, sujeitos à ignorância que retém a consciência dentro dos mundos dos renascimentos. Enquanto fizermos distinções, exclusões ou excomunhões, seremos agentes e servos do erro."


Heinrich Zimmer - Filosofias da Índia

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Gritos e Sussurros - Bergman


- Por que você é tão formal? Não pode deixar o passado esquecido?

- Venha cá, Maria. Venha! Olhe-se nesse espelho. Você é bonita. Provavelmente, mais bonita do que antes. Mas você também mudou muito. Quero que veja como mudou. Agora seus olhos lançam olhares rápidos e calculistas. Você olhava para frente, diretamente, abertamente, sem máscaras. Sua boca assumiu uma expressão de descontentamento e fome. Era tão macia. Sua pele agora é pálida. Você usa maquiagem. Sua testa bonita, ampla, agora tem quatro rugas sobre cada sobrancelha. Não, não dá pra ver nessa luz, mas se vê à luz do dia. Sabe o que causou essas rugas?

- Não.

- Indiferença, Maria. E essa linha fina que vai da orelha ao queixo não é mais tão óbvia, mas é esboçada pelo seu jeito despreocupado e indolente. E lá, na ponta do seu nariz... Por que você escarnece com tanta freqüência, Maria? Está vendo? Você escarnece demais. Vê, Maria? E olhe sob seus olhos. As linhas agudas e quase invisíveis da sua impaciência e do seu tédio.

- Pode ver mesmo tudo isso no meu rosto?

- Não, mas senti isso quando me beijou.

- Acho que está brincando comigo. O que está vendo é evidente.

- É mesmo? O quê?

- Você mesmo. Porque somos tão parecidos, você e eu.

- Fala... do egoísmo? Da frieza? Da indiferença?

- Costumo achar seus comentários tediosos.

- Não há absolvição para você e para mim.

- Não tenho nenhuma necessidade de ser perdoada.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Duplos

Tela de Magritte


Não tem casa que eu queira. Nem em Paris. Quero o mar e o sol. Quero viajar pelo mundo com um amor. Eu sei, eu sei, há que se rir desses sonhos unânimes que me demonstram ser um igual. Mas só este sonho parece valer a pena. Cansei da inocência dos inocentes e da malícia dos maliciosos, embora meu cansaço nada possa. Quem se deitará comigo para acreditar que nem as estrelas podem consolar, só braços amantes? Nunca me senti tão só nem nunca conversei com tantas pessoas distintas. Talvez eu esteja pagando o preço por sempre desconfiar do conforto. Talvez eu esteja crescendo o suficiente para não acreditar mais em verdades ou prazeres. O único êxtase que ainda parece valer como justificativa para executar o trabalho de ter que ficar de pé é o dos amantes, pois ilusão compartilhada com força de carne é a única que reluz um sinal de coragem, ímpeto de assumir o medo, ao menos. Mas, coragem para quê? Oras, para continuar temendo a morte; isto alivia o tédio. Cínico? Só para você que me lê e desconfia. Para mim, sou criança, só me pergunto. A resposta eu dou como luar, frágil, mas a pergunta é pedra, lançada na cara de algum barbado cheio de saberes, como faço com o espelho quando me tolero a ponto de desdizer a beleza que encontro ali. Alguém poderia me dizer que sou lindo por sentir falta de pessoas e não de coisas, mas é que eu me irrito fácil com as pessoas na maior parte do tempo, essas pessoas que seguem na administração do mundo, acreditando que trabalham para a manutenção dos próprios prazeres. Quanto aos rebeldes, não suportariam que toda gente viva desistisse de tudo e montasse uma grande e única banda de rock; os rebeldes precisam da luta, esta arma letal que roubaram de seus próprios inimigos a quem acusam em nome de uma justiça abstrata. O problema, óbvio, é que tem gente demais. Até sei que é meio estúpido ser crítico-apocalíptico agora, mas, juro, não é por esse sentido humanitário. É apenas mais desespero sem forma nem conteúdo. E veja, eu argumento ainda mais, só para mostrar como isso de ter de dizer é chato: se todo mundo ficasse quieto, meio budista-vegetariano, a fome não seria menos indecente. Digo isto não para lembrar da fome, mas porque a fome lembra nosso fracasso. Este fracasso que, ainda assim, é um dos melhores quinhões da beleza universal. Ou será que digo isso porque não tenho vontade nem de conhecer a lua? Ultimamente, qualquer lugar é uma rua apinhada, mesmo uma ilha deserta para dois amantes. Doei-me para a tal humanidade para, quem sabe, ter minha dor justificada, mas agora penso em amaldiçoar quem inventou a palavra dor. Certamente, foi alguém que teve consciência de que existe uma consciência, fornecendo incessante a lembrança implacável de um grande momento de prazer onde a vida pareceu quase como se sonha. Mas o pior é que nem posso idealizar o meu passado, pois minha memória me alerta de que nunca fui consolado da dor de doer. Sempre foi assim, até o ponto em que julguei, imaturo, poder viver dessa dor contra a qual não se luta quando se passa a acreditar que cada significado criado por nossas palavras não disfarça o modo como somos acomodados dentro das caixinhas. Ou o problema seria eu, que me recuso a treinar meu corpo para me tornar um soldado mais competente? Por enquanto, tenho competido com a minha preguiça, esta forma de morrer para não ter de matar, uma recusa nada nobre, mesmo porque minha preguiça não se compraz, antes se tortura nessas palavras que recusam outras palavras iguais. Mas, tudo bem, como dizem os fracos, alguém lerá isto e se sentirá melhor, compreendido, por um momento, ao menos. E se isto acontecer, me sentirei menos só, e terei novamente a ilusão de que me curo na cura do outro. Em suma, pergunto ao espelho: quais luzes do reflexo parecerão reais o suficiente para dar-me vontade de um prazer qualquer? Melhor nem dizer nada sobre o amor agora.

domingo, 4 de janeiro de 2009

alfabeto do ano novo

Abro o ano com A e B.
Colegial, cabalístico, iniciante, iniciado.
Olho com força de delicadeza a sucessão impossível de
fatos, coisas, pessoas, filmes, livros, noites,
o tecer gradual de uma experiência singular.
Abro os olhos no auge da montanha-russa,
a eternidade dura só um loop, é preciso estar atento,
um dia o sol não estará lá.
Abro antes meu corpo para a urgência que me torna em palavras.
que desejo? que sensatez? que aventura? descanso?
antes do desespero, invento deuses num copo d'água,
o universo em uma gota,
falo alto, louco, com os mestres antigos,
conecto-me à urgência infinita de hordas de boys & girls,
viajo por corações partidos, olho os iluminados nos olhos,
selo caminhos, rastreio verdades, mergulho abismos de céu e mar.
A saudade será o princípio do novo amor.
Serei soldado da palavra, em pacto com as sereias.
Este ano é o começo de um novo canto e não sei como ou onde estarei nu.
Os primeiros dias trazem a tempestade com que se respira melhor.
Resta levantar a voz para clamar
ou o silêncio no prazer de um conforto fino,
enquanto a natureza não poupa esforços,
aplacando justos e injustos,
confirmando nossa estranha fascinação com seu poder sem face,
XYZ.