quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Resenha-Carta para o romance "A Resistência", de Julián Fuks


Julián, esta resenha sobre seu romance “A Resistência” não poderia aparecer no formato corrente, com questões e assertividades que tentam se validar numa política e num circuito do conhecimento. Meu acerto de contas é com você, para romancearmos um pouco. Alguém que não conheço e não gostaria de abordar como autor, mesmo porque você nos lembra no livro o quanto a forma romance resiste em despontar como o lugar onde os gêneros textuais exploram seus limites e confluências. Além do mais, não podemos nos esquivar de abordar “A Resistência” como um romance que dialoga com isso que se convencionou chamar de autoficção. Sobretudo, preciso encontrar delicadeza para forjar uma proximidade que me permita contar minha própria resistência a um livro, de forma fraterna, como você merece por ter explorado as dificuldades da alteridade, mesmo entre familiares e nações, passado e presente. 
Antes de chegar na página em que seu irmão grita que vocês falam, falam, falam e nunca veem, eu próprio havia levantado essa questão. Sabe, sou um cara que não conseguiu resistir aos problemas de duas graduações da nossa FFLCH, História e Letras. Lá tenho muitos amigos, admiração de professores, tenho uma pesquisa em teoria literária, e também sou ovelha negra da família. Porém, até o presente ponto, minha resistência nesse caso foi desistir da academia, assim como desistir do teatro, do cinema, do magistério, da música. Abandonei as duas graduações e hoje moro entre dois mundos distintos. De um lado, em nossas prateleiras de livros, de outro, moro no quarto do seu irmão. Na sala, sou escritor, no quarto, sou seu irmão. Por um um lado, admiro sua busca pelo valor da sinceridade, por um real impossível que não seja mero recorte de nossas projeções, e por um diálogo em forma de abraço como ação mágica por excelência. Admiro sua franqueza e brilhantismo em apresentar um romance cujo centro não está nem na história, nem na memória, nem na ficção, mas na contradição de qualquer discurso positivador. Nesse sentido, até esperei que você desmontasse um pouco mais os pressupostos da psicanálise, essa profissionalização da intimidade burguesa, que tanto amo e odeio. 
É lindo como, ao repor a trajetória de sua família numa história que lhes foi roubada, você faz do silêncio enclausurado de seu irmão a ferida de um exílio herdado. Ao mesmo tempo, fiquei me perguntando por que vocês não procuraram visitar e ocupar os circuitos de rua onde o irmão se buscava. Fiquei imaginando-o numa aventura de descobrir o corpo, de sentir-se corpo, resistindo a existência no prazer, medindo a dor na saúde da carne, na sensação, mais do que se perdendo em subjetividades bem elaboradas e compreensões firmes.
Você sabe, acabou na história do romance o apelo à aventura exterior. O mundo já foi conquistado, pelo menos na ótica do hemisfério norte. Você próprio, muito justamente, é cauteloso para não romantizar resistência política de seus pais como uma aventura. E quando nos aponta o quanto eles acharam um outro modo de resistir no exílio, fiquei me perguntando: será que o irmão queria se mostrar parte da família ao resistir com um silêncio corporal ainda mais perturbador que aquele de sua própria família? Será que houve uma disputa de silêncios de naturezas diferentes? Talvez o silêncio do seu irmão seja a resistência de um corpo contra a civilidade. Não deve ser fácil ter uma família bonita e estruturada, e ainda devedora de um país acolhedor em seu exílio.
Muito tem se discutido sobre como a história do romance teria uma linha mestra, que seria o devassar da noção da intimidade burguesa. Desde as cartas de Pamela, de Richardson, os romances foram abrindo portas proibidas neste conceito de lar como proteção, conforto, centro da vida, e ainda não ousamos abrir todos os cômodos. Em Flaubert, não vemos o sexo, vemos a carruagem trêmula e protetora que conduz os corpos pelas ruas caóticas de uma grande civilização. 
Eu acredito muito que as tensões do corpo elétrico são a narrativa em que o romance ainda não chegou. A descrição do sexo ainda é fetichista e subliterário. Vivendo a desafiante experiência de ser gay numa época de questionamento milenar do patriarcado, e sendo escritor, penso que ainda destacamos muito uma dignidade para o invisível, seja essa uma religiosidade conservadora, seja uma militância de outras formas mais inclusivas de discurso, sem perceber sua violência à existência imediata dos corpos. O jogo, na esquerda e na direita é muitas vezes o mesmo: afirmar identidades perante o fantasma do homem universal. Assim, a afirmação da subjetividade pode representar resistência ou morte. 
Não percebemos o quão corporais são as palavras. Corpo e palavra ainda não se reencontraram desde a dupla revolução do iluminismo racionalista e do tecnicismo industrialista. Vivemos acreditando que o mundo interior, o universo da subjetividade, é um espaço de respiro e resistência, sobretudo quando questionamos valores e afetos, identidades e ideologias. Ainda reiteramos, mesmo entre os maiores dissidentes, a filosofia aristocrática e masculina dos gregos antigos.
Existe uma corporalidade tácita em seu livro que eu adoraria ver mais, uma corporalidade que resiste como lugar de refúgio para os traumas. Uma timidez aqui, o desejo de um abraço ali, a paciência na hora do chá acolá, o constrangimento físico no museu das avós, o não pertencimento ao corpo de nenhuma cidade. Julián, eu queria te dizer, em tom de gratidão por seu belo livro, que todos nós somos herdeiros de uma série de exílios. A alienação, como você bem deve saber, é estrutura constitutiva da subjetividade nesse sistema produtivo. Todos estamos sendo estrangeiros, e quem mais está em crise identitária é o homem branco, seja o "bruto", seja o "sensível", seja hetero, seja gay, seja rico, seja pobre, estamos todos cada vez mais desalojados de um patriarcalismo em crise que nos colocava no centro do discurso de universalidade forjada e naturalizada. Nossa sensibilidade hoje, quando queremos ser sensíveis, é a da mea culpa apenas, o que é triste. Até que ponto não reproduzimos em nossos próprios exílios subjetivos impossíveis a violência que combatemos na objetividade possível da história como narrativa do patriarcado, seja de esquerda, seja de direitaSob esse contexto, não seria a própria história da subjetividade uma narrativa romanceada e profissionalizada desta crise do homem universal, que narra seu mundo como se fosse o de todos?
Sei que são questões que convidam a longas conversas, a uma luta de muitas gerações ainda, e espero que possamos caminhar juntos. Por ora, espero apenas deixar meu convite a uma amizade franca entre duas pessoas instaladas em lados diferentes da porta de um quarto. A casa ainda é a mesma. 

Grande abraço, 
Ale

sábado, 16 de dezembro de 2017

A vida vista em plano médio

Resenha do romance enquanto os dentes, de Carlos Antonio Pereira, Editora Todavia, 2017

Sete anos numa cadeira de rodas produziram um ótimo escritor. E você lê as 100 páginas no mesmo dia em que compra o livro. “Enquanto os dentes”, de Carlos Eduardo Pereira, é uma bela estreia editorial, aposta certeira e corajosa da Todavia no gênero romance. A capa maravilhosa conta toda a história. 

O narrador nos traz muito próximo de Antônio, cadeirante de cerca de 40 anos, em sua travessia saindo do “antigo apartamento“, como ele chama agora a casa onde morou por alguns anos e onde foi mais feliz, pintando seus quadros, fotografando e circulando pelo mundo das artes, egresso de um curso de filosofia, faculdade que abraçou após abandonar cinco anos da escola da Marinha, onde era conhecido como “libélula azul“ pelos parceiros num ambiente de disciplina e violência, com sentimentos de supremacia, machismo e hierarquização. Antônio havia seguido a carreira do pai, o Comandante, um homem branco, de pensamento militar que se casara com uma negra numa relação de quase escravidão. Ela sobrevive buscando verdades na igreja, quando o homem permite, e visita um pouco a vizinhança em Niterói, para onde Antônio agora tem de voltar. Não fala com o pai há 20 anos de ódio e afastamento. Mas foram eles que sobraram, pois o corpo em processo degenerativo não consegue mais se manter só, e a simbiose com a cadeira de rodas é um processo dolorido. É difícil se tornar cyborg, de modo que Antônio tem náusea até com o gosto metálico da maior parte dos alimentos que ingerimos. Antonio é um personagem que nos põe numa perspectiva de vida vista em plano médio, e com medo de cair ainda mais. Seus cinco sentidos estão desaparecendo, o tempo presente elástico, e a travessia de barco, de volta o lar, invadida pela memória dessas outras tantas travessias difíceis em sua vida, vai costurando, do Rio a Niterói, uma trajetória vivamente atenta aos detalhes das ruas e lugares, pontos de fuga na urbanidade densa do Rio. Essa cidade, como qualquer outra, flui a eterna presença do peso do patriarcalismo nas pequenas relações, mas também é lugar de esportes, mar, e um amor perdido que não segurou a barra do acidente e tudo que veio junto. De todo modo, naquela Rio de Janeiro de alguns anos atrás, ainda se podia ser gay mais livremente do que no mar controlado por homens. A técnica de Carlos Eduardo me lembrou muito a de Marguerite Duras, nas evocações objetivas da própria subjetividade, e nas alternâncias bruscas entre passado e presente, ambos avaliados de forma seca, porém muito elegante, crua mas alusiva, e repleta de memórias quentes. As alternâncias entre a viagem de volta o lar, que avança lentamente, e a memória que se reconstrói, é tecida com habilidade de um parágrafo outro, mudando de assunto bruscamente mas costurando os fios que ligam um tempo ao outro. Há muito da técnica cinematográfica aqui. É um livro forte que vem de uma experiência que só poderia ser considerada de marginal pela centralidade do homem branco, o qual veria esse romance apenas como um bom exemplo de representatividade na literatura, quando é mais, uma brilhante caminhada por vários desafios mortais e cruéis colocados pelo patriarcalismo, e que com ele dialogam de forma franca, sempre “muito educado“, como o próprio narrador nos diz, tentando apenas guardar tudo que se passa nas travessias, e esquecer os silêncios.