sábado, 29 de maio de 2010

fim da manhã

Até que a manhã representava um consolo. O estômago era o mesmo de ontem, a calça também. Ninguém dorme bem de calça jeans. E a culpa da vida era só isto, uma calça de pano bruto. E dizem que nos libertamos dos espartilhos...
Era doce desdizer a vida numa manhã à beira mar. O céu não anunciava catástrofes, as ondas eram uma canção de ninar com preguiça de se cantar. Talvez mesmo eu prepare o almoço de todos; servirei cuidados sem me sentir empregada, sem ser dona de casa ou mulher independente, moderna. Com as mãos nos legumes, serei ninguém. 
Da porta ao lado ouvia-se o ranger de quem mal acorda.  O quarto dos homens - lembrou-se supondo um bafo quente e acre de quartel militar. Se fosse João, queria flagrá-lo de pau quase duro sob o moleton poído, preto. Sentiria o cheiro de sua urina pela porta entreaberta do banheiro. Mas não, ninguém poderia saber. Seu desejo não era tanto que precisasse ser assumido entre tantos, entre os chistes do grupo inteiro, entre as cartas de baralho jogadas no chão da sala juntamente com os chinelos aspergindo areia de uma semana.
O que faria, para começar? Seguiria sozinha para a praia. Se alguém lhe perguntasse o porquê, diria apenas: fui andar. O desespero pela saúde desculpa tudo. Entretanto, por ora, bastava folhear uma revista do ano passado só para ver as celebridades já passadas. Fingiria uma distração qualquer, tátil, só para observar como cada um acordaria esta manhã.
João apareceu à meia luz e seus olhos inchados condiziam com o céu nublado, com o vento frio que se previa lá fora. Quando não enxergava direito, tonto de ressaca, era mais lindo. Porque não se sabia homem e quase voltava a ser criança, não fossem os pêlos que deixava entrever enquanto coçava a barriga só pela satisfação de ter acordado.
- Só você está acordada?
Ele não conseguia ficar a sós com ela. Não ainda.
- Não sei. Não conferi os outros quartos - ela disse tocando displiscente uma página brilhante e colorida.
João, parado meio tonto na encruzilhada entre os cômodos, apenas deslizou até o banheiro, passando a mão no cabelo armado feito um ninho de pássaro.
Feito um ninho, ela pensou; e fechou a revista em seu colo.