quinta-feira, 17 de maio de 2007

Graça em pista olímpica

Escravos vestindo Helena. Alexandre/Páris à direita. Eros acima.

O senhor não me ouve direito; inquieta uns traçados de expressão, e logo desfaz o olhar, resignado ao de fora. Ouça-me, peço, em respeito à educação - rápida, loquaz, sobrevivente de guerra. A hora não nos dá tempo a dividir, a contar-nos. É um corre.


Era segredo, mas agora não faz tanto silêncio. Tem mais o burbúrio insolente de revolta vencida, verdade rendida; o som das coisas que se desconheceram em nome de um bem igualmente esquecido. Nem reteve a tarja do mistério a enfaixar a luz dos olhos, a pôr em manchete. Ganha um sem-nome, e por tal desfalecença, pede justiça. Não por mim, que falo em nome do não-sei, mas por quem sabe quem. Não fosse assim, seria caso de polícia – a força escorraçando as palavras; mas aqui, sem medo da morte, a coisa vira outra, quase indigente, indiferente ao olhar vigilante. Tampouco é caso para suspeitas, senhor, é caso de ouvir mesmo; o lábio penso de assombro sincero.

Ao final, não vamos exagerar, a coisa toda era um corpo estendido e um copo quebrado. Houve risadas, não se deve esquecer, algumas damas aplaudiram por baixo das calcinhas, dois seguranças apertaram o passo, pretos, retos, mas não foi caso de levantarem o braço. Na madrugada, na pista escorregadia pelo excesso dos bêbados, a coisa morria-se naturalmente. Fim de feriado não se pesa às leis escritas; guarda-se para o dia seguinte, na esperança de que a memória vingue o desejo despedaçado - o sentimento de que um dia de cinzas não basta. É preciso que os corpos antes reunidos, expectadores do que julgaram ser espetáculo, recuperem-se na arrogância de vencer uma noite, por meio de uma crença que os torne portadores da história do outro, a qual comentam amorosamente, para dela se esquivarem, ou mordazmente, iludidos, para forçarem uma participação sua no grande enredo. Tímida na origem, a história ganha drama e ressaca. Ao final, insisto, restaram dois corpos sós, ou melhor, um corpo e um copo.

Houve quem prestasse atenção desde o início, mas a juventude, o senhor sabe, é coisa que não cabe em lugar. Eram muitos corpos no início, e eles estavam dispersos, como na Criação, embora nenhum dos impressionados tenha demonstrado fervor religioso; ao invés, sortearam apostas profanas sobre os acusados – apocalípticos hormônios. Cada qual alimentava uma fantasia sua, versões para um mesmo motivo: a atração universal dos corpos. Era simples o fato, mas quis o acaso que na boca dos bem-vindos a coisa ganhasse conotações mitológicas; trans-além.

Na ausência profunda vista nos olhos de um dos corpos do triângulo central, ousaram identificar uma síndrome de Helena de Tróia. Para quem guardaria o olhar frio? Por que seu amor iniludido despejava-se transparente, entre promessas e carícias furtadas, entre dois homens que se conheciam inimigos naturais? O fogo de Helena teve de consumir-se na guerra, os sensatos gostaram de lembrar; era bela como a glória dos homens mortos pela espada. Não era mortífera por ser bela, clamaram os paradoxistas, era bela por ser mortal, vítima da própria natureza; e assim amavam-na e viam a flor de suas horas perecer desperdício, insanidade, simples consumir-se no alto da torre. As cinzas nos olhos de Helena... lembraram com calafrio após o feriado; entregue a todos os amores na noite da fogueira final, certa do bem que fazia enquanto a batalha fosse maior. Beijava uns na frente dos outros enquanto girou pela pista de dança, mas não suspeitou que um de seus pretendentes não fosse guerreiro de fé, mas sim o introspectivo Narciso, apartado das águas abismais para a grande arena.

Narciso era outro caso, que quiseram incluir na história, embora sua vaidade superior lhe dissesse que era Helena quem invadia o seu espetáculo particular. O certo é que ambos eram estrangeiros – era das sombras da cidade que sua guerra tirava o alimento. Narciso levava comitiva, que o protegia da roda dos prazeres. Não neste corpo! - diziam comovidos, e ao seu redor se comportavam como fluído lago. Narciso, chamavam-no às escondidas, como o outro grego, de tempos nobres. Como o antigo, este de agora não suportava o que não se parecesse com sua própria beleza, até que a própria fonte da beleza secasse e restasse o lago de águas informes como sustento final de sua ambição; a emoção pura de não professar fé. Nos primeiros anos, não custa lembrar, Narciso olhava para o lago com movimentos sincopados, pescoço de galinha, há que ser preciso, trocando de ângulos como trocaria de pele um camaleão perdido num orquidário. Seu reflexo retornava os olhos inflamados e a boca cuspia razões frias, enrugadoras: belo! onde está isso?o que é isso? isto?! O que vêem que não vejo, ou antes, o que só eu vejo? E lá se via, até não se descobrir mais e deixar-se abater pela simples suavidade da grama. Até o dia que todos sabem. Afogado. Os moralistas falaram algo a respeito da vaidade que o engolira. Os psicólogos insinuaram uma imersão no eu dissolvido, um retorno ao princípio obscuro que a lucidez tentara desvendar em vão. Um poeta, mais aprazível, disse em voz alta: Ainda construiremos um mundo que saiba acolher sua beleza sem finalidade! Razões e sensibilidades à parte, ninguém esteve lá para saber – até esta noite...

Narciso deu de cara com Helena; ele, de olhos vítreos, parados no fundo do lago, ela, de olhos apertados na fogueira de soldados; ela do alto da torre, ele do fundo da lama. Para lhe sorrir, Narciso primeiro precisou encontrar seu reflexo nos difusos olhos de Helena.Viu o que não queria ver, ou o que desejava no fundo de sua morte: sua imagem turva, acastanhada, enlameada pelos mais profanos desejos, pura carne, isenta dos tormentos da beleza que Helena só retinha nos lábios finos, entre dentes. Ela, experimentada, saciando-se na certeza do troféu ainda não conquistado, suspirou tranqüilamente, dorso de um lado, como a oferecer seu leito sem comprometer-se com as exigências dos costumes. Pouco mais de dois encontros, enlaçaram-se, e pouco mais se deu. Lutaram como fogo e água, pela nobreza de seu elemento. Orgulhosos de si, secaram-se. Viram a face das Moiras a anunciar que daí em diante ‘ai de seus caminhos’. Narciso vomitou a lama presa no estômago; Helena consumiu-se na encruzilhada escura dos risos, não sem antes presentear sua prêsa com uma pedra branca, aliança ambígua de fidelidade natural e dependência forjada.

Quiseram os deuses – assim podemos interpretar a história, independentemente de tuas crenças, senhor – fazer uma pequena intervenção neste caso, pois qual explicação daríamos a tão inumano desfecho, nós que aqui estamos para disso falar e dissolver os preconceitos? Aqui vem a graça da coisa, e não de outro lugar.

Graça, disse um filósofo daqueles carrancudos, é estado de movimento equilibrado, sem falta nem excesso; desgraçados os lerdos e afetados. E a beleza está no movimento, ouvi dizer num dos bares deste canto da vida. Um acento neste devaneio alcoólico nos permitiria dizer que belo é o bailarino, de graça equilibrado entre os movimentos decididos, hercúleos, e os olhos abismados de desrazão. Belo é o palhaço, de graça esborrachado entre as puríssimas intenções e a inadequação profunda de seus movimentos. Melhor que o fruto da graça, só mesmo o amor, grita por fim um bêbado. E aqui aparece Eros, filho da beleza e da graça, duplamente palhaço e bailarino. Chegou na pista de dança não se sabe como, de cabelos raspados, em oferenda a sua mãe, Afrodite, dona da Beleza Superior - se assim me faço entender, foi assim mesmo que me contaram, embora eu não saiba a causa. E trazia as flechas ocultas, revelando-se aqui e ali como o perfume das flores. Não foi demais para que o desvendassem; a guerra enfurecida entre as tribos explodia em dança na pista.

Conta-se que em sua lição mundana, após cortados os cachos, foi-se refugiar no coração do país para encontrar a terra do homem de sábias palavras. Lá dispensou as asas e fez-se de romeiro, palmilhando securas, olhos de não-sei-querer, sorriso de água fresca, desatendido do amor, atento aos dramas lentos da eternidade. Fez-se homem primeiro, antes de entrar na história; firmou saúde, fincou os pés, arvoreceu. Na terra batida, para preservar seus encantos de atiçador, fez escola com as musas. Onde as asas não mais lhe coçavam, aperfeiçoou gracejos de comediante, imprimindo-se principescas delicadezas, espiralantes contornos, entusiasmática adesão. Também passou a fumar, o maldito, imiscuiu-se nos ares venenosos desta cidade; empinava o cigarro onde antes apontava a flecha.

As setas do afeto... Senhor, permita-me neste ponto falar de poderes; para não apascentar as fés muitas, preservarei neste assunto, impositivo para o simples curso da história, a mesma frivolidade com que falo de deuses, pois que o amor – poder de quem se trata – neste ponto da vida, desafiado de antenas, soma vozes de delírios incompatíveis. Ao sabor do gosto, desemaranhemos os fios. Assumamos a voz suplicante do fiel que assistiu a todo o culto por detrás da multidão:

- Ô sinhozinho Amô... Que barriga lhe deu de querê escondê as frecha? Vim de longe e ofreci duas vela e duas frô, e Santantônio já passô ou nem chegô, nego... Feliz dos coitado que viram o milagre e partiram na fé. Nóis que num vimu espera ocê, minino bandido. Oro pro outro minino, o Zizúis, pra ele ti guiá nos atiro, fio. Nóis vimu o que ocê fez, dotozinho dos prazeres.

Porque Eros – é bom esclarecer, meu senhor – caiu na doideira de amar sem vez, a direito e a torto. Dizem que caiu na pista; num trombo se imolou na própria ponta - não é culpa; é gente que se acotovela pra desatar. E o fogo róseo que antes lhe animava a seiva divina, de um dentro pra um fora, passou então a lhe queimar a pele, do vento para o mais completo acaso do sangue. É mistério que não se disseca, só se relata, veio dizendo o povo do circo, atento a todo e qualquer despertar; e com isso nem inibiu-se a vontade do doido. Juntou o fazer amar com o fazer querer-se e saiu a trabalhar pela união dos interesses, agora seus também. Quixotesco, saiu a caçar ordenanças, parte que vamos omitir, senhor; não é lícito supor sentidos para as aventuras que o deus busca na terra.

Não se sabe se a essa altura, terrena decerto, Eros fosse capaz de distinguir deuses e monstros. Certo é que logo topou com a encruzilhada de Helena; que logo o notou, que logo o atendeu, eternamente sinuosa entre a fila de pretendentes. Como os demais, qui-lo a seus pés; ultrajou-o no olhar, impôs honras e desonras pautadas em leis estrangeiras. Entretanto, por intuição divina ou traquejo mundano, Eros recolheu-se a uma posição superior, de onde – quem saberá? – passou a assistir o espetáculo que se travava entre a indigna e o cadáver de Narciso. Eros viu quando o afogado e Helena cruzaram juntos seu caminho com olhares de alcova, as pálpebras delirantes como borboletas à beira da morte. Narciso lhe sorriu mais fundo; do fundo de suas águas turvas talvez tivesse pressentido ajuda celestial. Lembro-me de que as ninfas que lhe faziam comitiva suspiraram orações pelo seu corpo encalhado:

- Salve Eros, que dá prazer à união da espécie; que devolve aos homens a sua condição entre-humana; que dá boca aos prazeres; que escorre a incerteza; que descobre a loucura; que insatisfaz a sede; que reclama a fome; que se retira antes do triste gozo. Olhai por Narciso, que veio da terra estrangeira onde buscastes a paz no silêncio das palavras; que não teve a beleza aceita e abdicou do mundo; que fadou-se ao amor sombrio de Helena, como sombrias eram águas que esponjaram sua carne vibrante. Salve Eros, senhor dos encontros, cantor dos contornos!

Senhor, meu senhor, que ouve a meia-boca esta história em que me intrometo e invento deuses, repito o que todos sabem: Eros deu colo e prazer. Sustentou os ombros de Narciso sobre o cadáver de Helena, humilhada por injúria própria. E podemos dizer, com a ousadia de quem rouba a palavra, que teria sido Narciso quem estendeu o braço e disse:

- Quem és tu, força da juventude, pele de regaço? Pulsa e pensa? Como andaste até aqui sem afetar-te da própria beleza? Que palavras nobres são essas que empunho ao pé do cadafalso? Por que razão fora de mim – os rasgos em teus olhos dirão - voltam-me as perguntas, meu jovem? Olho seco para minha despedida, retorno da flor fria, busco meu lugar nos costumes dessa gente, no mundo dos homens, na pista de dança. Caio para o céu, invertido na vaidade, rasteiro de razões. Esqueço-te para cumprir-me, por ora. Esta noite quebrarei os espelhos...

E assim, Narciso recolheu-se ao seio da terra em busca de secura; o fim das interrogações. O que renasceu de lá, só um Tirésias, sábio cego, poderia adivinhar e propor: deixa-me ver o que nem os cegos podem ver.

Eros, danado, impaciente como o desejo de ser novo, paciente como o sacrifício a que se entregara, respondeu sorriso com sorriso, dente por dente; e continuou sua trilha - não tinha tempo a contar-se. Vez por outra ainda ouviu o eco de Narciso, como linha cruzada, ou gêmea-encruzilhada: ouça o meu não-sei; saiba-me que te devoro.

Eu falei de um copo quebrado, mas isso foi o que perceberam. Houve mesmo um, espatifado no canto da pista de dança, próximo ao corpo submerso de Narciso. Primeiro espelho quebrado? Vingança de Helena? Zombaria de Eros? Caberia a nós decidir, senhor? Do lado de cá, a gente inventa uma história de deuses e mortais para preencher os boatos lá fora; e nos boatos ficamos, quietos, amuados, preenchendo indecisões; puxando os cabelos como quem não sabe se render. Ousaríamos nos aproximar dos protagonistas e, antagônicos, dizer: tomem vergonha nessas caras; isto aí não é um nada! Bem, o que posso dizer afinal? Ficamos na história, enquanto outros, na simples glória... Isto não é moral, é coceira de gente pobre, senhor. Eu adverti no começo: aqui não tem pêlo em ovo.

Terminamos sobranceiros – e agradeço o ouvido são. Fiquemos no devaneio, onde nomes e objetos não se dão. Amoitados, imaginemos beijinhos e carícias, se assim nos sustentamos da inveja. Caso não, voltemos para nossas dúvidas tolas de razão: será que seria bom se se queressem? Se é no sonho que se formula a atração dos corpos, a decisão dos amantes, só meus leitores dirão, senhor; os deuses não se influenciam por tão pequena monta - mas se eu lhes ajudar, pisco um sorriso a quem vier avisar. Perdoe-me a arte da alcovitaria; não tenho panca de sedutor - falei só de graça, meu senhor.

quinta-feira, 10 de maio de 2007

Dança Bandida


Para o Leo, que me venceu no Super Trunfo

“O poeta é um ladrão de fogo”.
Rimbaud

Eu já fui assaltado vinte três vezes, na proporção de um por ano, e só me tiraram cinco reais. Aprendi a fazer as contas para o pai, a reconhecer documentos e acordos tácitos. Sei contabilizar a minha vida, falo com orgulho. Só fico calado se me abordam com arma de fogo ou faca caseira. Não sou bobo, prefiro ser palhaço em cena, exposto com consciência, mesmo que esta consciência seja um silêncio. Quando sou palhaço a palavra some, dentro e fora de cena, e eu deixo ela sumir sem choro nem vela, tenho fôlego para ser bobo por inteiro, e não tenho medo de desmanchar no silêncio: aprendi a ficar erguido com muito balé e quando caio sou ator. Improviso e sobrevivo.
O que eu acho bonito é o que aconteceu num desses improvisos. Havia comida no palco vazio. Entre a comida, uma coca-cola alienígena. Um dos atores fez um furinho na garrafa, tão sem querer, e aquela espuminha foi rompendo o plástico devagar, num jato bem fininho e ácido, até ganhar uma força tão grande que tudo que estava ao redor ficou endemoniado como se deve. O acaso uniu o lixo e o gozo. Não esquecerei, nem deixarei de falar disso, até porque teve aquela outra cena em que entreguei desejo, beijo, amor e sexo, dois anos que pareceram duas horas, tanto que quando vi já era outro espetáculo. O que eu fiz depois dos aplausos não te conto, não é hora para contabilizar o passado. Próxima cena!
Esta noite bateu um desejo de querer saber porque estou num espetáculo que não tem nada a ver com aquele outro, onde eu entreguei tudo. Quis saber quem eram essas pessoas que se roubam à noite, pelos corredores esfumaçados onde a juventude goza. Entre essa gente, tinha gente que já vi na minha platéia. Cuidei para ter a cautela de saber quem era amigo e quem era ladrão, não quis perder mais do que cinco reais. O resto de mim eu arrisquei. O amor eu sei dar de graça, já falo logo, porque graça eu tenho na medida, salvo meu cabelo que amassa sob a pressão de um leve sonho, mas isso eu resolvo lavando. Tudo. Os loucos eu deixo em paz. Sorrio para quem me oferece leite com chocolate e rio quando é pouco o mistério que me oferecem. Rio pra não perder a postura dupla de palhaço e bailarino, meu mistério maior. E eu falo tudo porque falar faz bem, mesmo às seis horas da manhã quando o amigo pede ajuda e o desejo descansava quieto com o sono. E essa noite eu falei tudo e tanto. Quis dar nome aos bois, reconhecer os demônios que não sabem brincar. Porque são tantas coisas e alguém ainda veio me dizer que essas coisas todas são frias referências, quando eu quero saber do que dá calor de fato. Chega de ser assaltado pra viver uma emoção. Preferi entrar na cena desta noite, sem saber se fui como palhaço ou bailarino.
Só tremi um pouco e escorri um certo gelo quando escreveram na minha barriga, quase no final da noite. Isto aconteceu longe dos corredores, num quarto precisamente quadrado, sob o olhar crítico de uma gata no cio. Levaram-me e eu me deixei ir. Andarilho, topei com a imagem de Rimbaud, ladrão vendedor de armas de fogo e poeta errante, um século depois da morte ainda perdido num porta-retrato, como eu na lembrança do espetáculo anterior. Preciso reler Rimbaud, eu disse para me entrosar com meu próprio mistério. Aí tomaram-me nas mãos, como se eu fosse mais palco do que gente, e aí escreveram por mim a próxima cena. Da pele toda, roubaram-me uma depressão que tenho entre o coração e o estômago, e que faz barulho quando é invadida. Fiquei quieto sentindo as letras vazarem sobre o suor e abri os olhos de fininho para ver o que acontecia ao redor do meu buraco. Pra não ser roubado é preciso estar, em primeiro lugar, com os olhos abertos.
E vi: era eu que acontecia. Era eu que me espiava sendo escrito. As armas de fogo, se as havia, estavam debaixo da cama. Depois, ainda quieto, espiei a insônia de quem me sobrou no fim da noite. E sorri sem medo quando descobri que não iriam me acordar às seis da manhã para discutir o amor, e que só queriam me cobrir da noite finda, porque já era de manhã e eu havia aceitado tudo, até o sol iluminando corpos pálidos de tanta noite e tanto espetáculo.
No dia seguinte, tudo estará claro, eu sonhei antes de dormir: os bois terão nome e seu histórico será exposto na internet para quem quiser ver, como meu buraco protocolado em ponta de caneta bic. Quero aplausos. Dançarei na saída sem nenhum prejuízo, só uma camisa amassada. No bolso, guardo cinco reais e alguns cigarros que sobraram. É preciso ter pelo menos uma esperança de fogo para os ladrões possíveis. E guardarei uma última dúvida (privilégio permitido a quem espantou os ladrões pros buracos certos): preciso reler Rimbaud, esse ladrão que era frio, mas talvez fosse quente.

ALESP08MAI07