quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

mais notícias sobre o fim do mundo

O mundo iria acabar às cinco horas da manhã, assim anunciavam os pequenos pontos de mofo nas pontas dos livros na prateleira, assim anunciou o pó endurecido sobre o souvenir de uma viagem feita há séculos, assim decretou o silêncio suspeito na árvore orvalhada lá fora. Assim ele soube; tão certo como em todas as outras madrugadas em que, cansado de absorver cultura, de promover para o si o espetáculo de alguma esperança escondida na entrelinha de um poema revisitado, na luz familiar de um novo clássico do cinema, ele reagrupava forças só para se permitir ser fraco, encarando a hora nua em que o passado passa em paz, um minuto apenas de doce espanto diante do nada em que tudo pode se reconstruir, perdoado já não só pelos homens que lhe imaginavam outro, mas pelo universo mudo e simples, como animal depois da fome.
Não que o ontem não tenha sido gentil. Duas ou três palavras amigas, uma salada de frutas tropicais, pequenas celebrações familiares que, sem querer, escarneciam na face da ambição desmedida. Um dia perfeito. Algumas inimizades que o faziam sonhar, como na adolescência aberta a tudo, uma futura união das consciências de todos os vivos e ainda com a memória de todos os mortos; algumas dívidas lembradas a fim de tornar nítida a necessidade de ser mais que o pó da terra, para que valha a pena.
Talvez a presença atual do fim do mundo fosse só a impaciência do curso natural de um corpo que se pede a si mesmo; nada que merecesse uma revolução social. Não era sequer tristeza, era mais a hora difícil do amor. Sim, um dia acreditariam em seu amor transcendente, sem objeto, e será quando os suicidas sairão de seu ego e caminharão em direção ao sol justo da primeira hora da manhã.
O fim do mundo agora era todo dia -  ele reconsiderou quando o relógio passou das cinco e meia - por isso a necessidade de projetos grandes, de novas políticas de apaziguamento na exuberância de uma alegria leve, sem grandes efeitos, dessa de criança que descobre o jogo que iniciou todos os jogos. Epifania sem nome de deus. As crianças sabem que é apenas um jogo, entretanto, se permitem acreditar sabendo ainda que o acreditar, ele próprio, é também jogo; sabendo que o mistério de iludir-se é tão justo quanto crer na ilusão do mistério. E adultos são aqueles que acordam um dia na preguiça de uma dor e lá ficam, semeando o peso de alguma eternidade grandiosa.
Às seis horas batem no relógio e os ponteiros indicam o céu: é de novo o começo do mundo. Ele vai se rendendo ao domínio do sono, após invertidamente ter-se entregado ao reino dos sonhos. E, sem culpa, numa paz qualquer, pobrezinha e feliz, ele adormece logo após ter-se prometido: amanhã, depois do novo fim do mundo, eu saio para resgatar os que sobrarem. Então sorri por dentro, para que ninguém lhe tomasse a força que reconcilia o bem e o mal.

mais notícias sobre o fim do mundo

O mundo iria acabar às cinco horas da manhã, assim anunciavam os pequenos pontos de mofo nas pontas dos livros na prateleira, assim anunciou o pó endurecido sobre o souvenir de uma viagem feita há séculos, assim decretou o silêncio suspeito na árvore orvalhada lá fora. Assim ele soube; tão certo como em todas as outras madrugadas em que, cansado de absorver cultura, de promover para o si o espetáculo de alguma esperança escondida na entrelinha de um poema revisitado, na luz familiar de um novo clássico do cinema, ele reagrupava forças só para se permitir ser fraco, encarando a hora nua em que o passado passa em paz, um minuto apenas de doce espanto diante do nada em que tudo pode se reconstruir, perdoado já não só pelos homens que lhe imaginavam outro, mas pelo universo mudo e simples, como animal depois da fome.
Não que o ontem não tenha sido gentil. Duas ou três palavras amigas, uma salada de frutas tropicais, pequenas celebrações familiares que, sem querer, escarneciam na face da ambição desmedida. Um dia perfeito. Algumas inimizades que o faziam sonhar, como na adolescência aberta a tudo, uma futura união das consciências de todos os vivos e ainda com a memória de todos os mortos; algumas dívidas lembradas a fim de tornar nítida a necessidade de ser mais que o pó que da terra para que valha a pena.
Talvez a presença atual do fim do mundo fosse só a impaciência do curso natural de um corpo que se pede a si mesmo; nada que merecesse uma revolução social. Não era sequer tristeza, era mais a hora difícil do amor. Sim, um dia acreditariam em seu amor transcendente, sem objeto, e será quando os suicidas sairão de seu ego e caminharão em direção ao sol justo da primeira hora da manhã.
O fim do mundo agora era todo dia -  ele reconsiderou quando o relógio passou das cinco e meia - por isso a necessidade de projetos grandes, de novas políticas de apaziguamento na exuberância de uma alegria leve, sem grandes efeitos, dessa de criança que descobre o jogo que iniciou todos os jogos. Epifania sem nome de deus. As crianças sabem que é apenas um jogo, entretanto, se permitem acreditar sabendo ainda que o acreditar, ele próprio, é também jogo; sabendo que o mistério de iludir-se é tão justo quanto crer na ilusão do mistério. E adultos são aqueles que acordam um dia na preguiça de uma dor e lá ficam, semeando o peso de alguma eternidade grandiosa.
Às seis horas batem no relógio e os ponteiros indicam o céu: é de novo o começo do mundo. Ele vai se rendendo ao domínio do sono, após invertidamente ter-se entregado ao reino dos sonhos. E, sem culpa, numa paz qualquer, pobrezinha e feliz, ele adormece logo após ter-se prometido: amanhã, depois do novo fim do mundo, eu saio para resgatar os que sobrarem. Então sorri por dentro, para que ninguém lhe tomasse a força que reconcilia o bem e o mal.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

A DAMA DE FERRO - nem anjo, nem demônio


Meryl Streep sabe por onde passa, e não é só pela arte. Numa de suas mais belas interpretações, pouco importa a qualidade estética do filme, que tem sido o foco dos críticos. Às vezes precisamos lembrar que cinema não é só cinema. O poder humanizador desta atriz abre caminho para uma discussão importante, a relativização da imagem de Margaret Thatcher, tal como esta foi cristalizada pela imprensa de trinta anos atrás. Como toda imagem estática, a primeira líder política mulher de uma democracia moderna, tal como a conhecemos, é apenas um bode expiatório pouco questionado de problemas que são sistêmicos, e não de responsabilidade de um certo indivíduo, sequer de um grupo político ou de uma única nação. Trocando em miúdos, o demônio Thatcher é problema nosso, não custa lembrar. Vejamos.
Uma das medidas mais controversas tomadas pela política britânica, quando ainda era ministra da educação, já nos anos 70, foi abolir a doação de leite nas escolas públicas, com o discurso de que o foco do orçamento deveria ser as necessidades acadêmicas. Esta medida muito contribuiu para a criação de sua imagem política, ao ser manipulada pelo então atual governo trabalhista, os Labour, os de "esquerda", que sofriam a oposição dos "direitistas" Conservatives. É fácil confundirmos uma orientação esquerdista com medidas populistas. Antes de acusar Thatcher de racionalizar o orçamento da educação, é oportuno lembrar do que Paulo Maluf fez pela educação em São Paulo, que foi exatamente distribuir leite sem mexer nas bases da educação. A estratégia não deve ser apenas por mais crianças na escola, mas tornar a educação formal uma alternativa realmente eficaz na construção de uma cultura mais forte, que é a única base sólida para uma democracia forte. Estamos acostumados a achar que o papel do cidadão é apenas reivindicar direitos, e o do Estado, assumir deveres. Esta visão, sabemos, é tão paternalista quanto as políticas aristocráticas e coloniais de séculos atrás, herança que carregamos com particular peso no Brasil, e que predominava no governo populista britânico onde Thatcher começou a crescer como membro da oposição que era nestes anos -  pasme - o partido conservador.
Os anos 70 foram marcados pelo arrefecimento da Guerra Fria, baseada no poderio militar, imperialista, Estados protecionistas; e pela concomitante recuperação da especulação financeira, claramente representada pela crise do petróleo. Neste cenário, com uma concorrência internacional mais aberta, o que é bom e cruel ao mesmo tempo, Thatcher se tornou o grande símbolo da política neo-liberal, de mercado aberto, privatização de empresas estatais pouco produtivas. Penso que enquanto prevalecer uma economia financista, pós-industrial, abstrata, tal posicionamento político, sem extremismos, é inevitável, e por mais que demonizemos Thatcher e seus seguidores, como FHC, foi na esteira dessa política de Estado mínimo e grandes alianças econômicas multinacionais que Lula também fez seu governo. Esta discussão tem suas nuances, que não esgotaremos aqui; portanto, vamos fingir que isto é apenas uma crítica de cinema e seguir adiante.
O problema de Thatcher, como líder da democracia britânica na virada para os anos 80 era o de uma elevada taxa de desemprego, resultante da crise econômica sistêmica, tal como a que vivemos hoje. Neste contexto, uma democracia não age sozinha, como os europeus querem fazer com a Grécia hoje. Uma democracia isolada no contexto de uma crise sistêmica só pode se segurar com medidas emergenciais. Neste contexto, a primeira ministra britânica precisou mesmo ser de ferro para não apelar aos tapa-buracos dos empréstimos, e focou sua atenção em medidas internas que fossem emergenciais e ao mesmo tempo pudessem ter longo alcance. Uma dessas medidas foi sua luta contra os sindicatos, uma das principais razões pelas quais é demonizada pela imprensa e pelo senso comum ainda hoje. Poucos lembram do fato de que os sindicatos britânicos abriam seus fóruns de reivindicação não para os interesses dos trabalhadores efetivamente, mas muito mais para sua manutenção no poder, como aliados indispensáveis dos Trabalhistas populistas, que construíram sua imagem no tal paternalismo já mencionado. Não deveria ser novidade pra ninguém que os sindicatos britânicos das décadas de 70 e 80 eram o que são nossos sindicatos desde de a década de 90 e fortemente no novo século, ou seja, perderam seu caráter de verdadeiros representantes dos assalariados e só fazem greves pelos seus interesses na política interna de alianças nos governos, onde são pagos politicamente para apoiar a imagem de presidentes que vieram da classe, por exemplo. Se não for assim, por favor, alguém me explique porque as greves de professores são sempre uma piada, enquanto que as greves que mais conseguem se manter são as de outras partes do setor público e, principalmente, as greves do setor financeiro.
Ou então voltemos a falar de quanto Meryl Streep é "genial", seja lá o que signifique este adjetivo mitologizado. Ainda que bem intencionado em relativizar a imagem da mais longeva primeira ministra britânica do século XX, o filme de Phyllida Lloyd não explora a fundo a política de uma das figuras mais centrais do mundo contemporâneo, atendo-se aos pontos mais controversos, como seria de se esperar numa narrativa de pouco menos de duas horas. O filme não discute, por exemplo, quais as estratégias de Thatcher para o fim do desemprego, como medidas para acabar com a inflação e com isto aumentar, a médio prazo, o poder de consumo e reforçar os pequenos e médios empresários. Suas inúmeras reformas no legislativo contribuíram para reduzir o poder das associações monopolizadoras de grandes industriais, inclusive nas indústrias públicas. Se uma das maiores polêmicas de seu governo foi a grande greve dos carvoeiros que sofriam grande desemprego, como em toda a indústira de base, isto só se deu porque as resoluções dos empresariado de grande porte, no sentido de contra-atacar o governo, foi responsabilizar adivinhem quem pela queda do lucro? Os trabalhadores, claro. Que de resto, aos poucos foram sendo incorporados no setor de serviços, por exemplo, sinal evidente de recuperação econômica. Aliás, a Dama de Ferro apenas seguiu o exemplo de sua nobre ancestral, também de pulso firme, a Rainha Elizabeth da época florescente de Shakespeare. Esta, ao criar os enclosures, revalidou o setor agrário improdutivo e aristocrático - qualquer coincidência com o nordeste brasileiro não é coincidência - e alinhou-se a quem realmente dinamizava a economia no momento. Pois não foi um trabalho de atualização semelhante ao que Thatcher fez? Pois não nos iludamos, ela não é criadora do neo-liberalismo, ela apenas criou uma política que pudesse se manejar no novo sistema econômico global, este é o grande ponto.
Para sair um pouco da arena econômica, serei sucinto ao lembrar da oposição firme da Dama de Ferro aos soviéticos e ao IRA, na Irlanda. Ainda existe alguém que defende os supra-citados? Naquela época havia, os acadêmicos carreiristas, por exemplo, que vivem na sua democracia perfeita e livresca. Melhor seria considerarmos o que nem o filme mostra, como o apoio incondicional de Margaret ao fim do apartheid na África do sul, à legalização do aborto e seu papel decisivo na descriminalização da homossexualidade.
Finalmente, o ponto mais polêmico do governo Thatcher, a Guerra das Malvinas, pela posse das Ilhas Falklands, próxima do círculo polar, improdutiva, relativamente próxima da Argentina, mas de antiga colonização britânica. Pra começo de conversa, é curioso notar que o revanchismo tribal entre argentinos e brasileiros parece só se aplacar nas férias para Buenos Aires e no que diz respeito a esta guerra, se é que este conflito pode ser chamado de guerra. Mais curioso ainda é notar que nossos manuais didáticos e enciclopédias virtuais nunca questionam qual o foi motivo deste conflito, só que ele existiu. Ninguém lembra que o motivo da Argentina invadir as tais ilhas foi uma estratégia da ditadura militar argentina, que estava em crise de sucessão e precisava desviar os olhos dos assuntos internos para algo de fora que desse aos argentinos um perigoso ou no mínimo, inatual,  senso de patriotismo. À essa excrescência de autoritarismo, a primeira ministra britânica respondeu com ataques breves e definitivos, com perdas para ambas as partes, na casa das centenas de vidas - isso não é justificativa, mas a quantidade de mortos diários por fome, por exemplo, tampouco é bonita, e nossas alianças econômicas com países da África parecem só agudizar a desigualdade por lá, ao contribuir para a concentração de renda. Mas essa é uma outra questão, ou, um outro filme, não é mesmo?
Trazer à tona o legado da Dama de Ferro, impulsionado por Meryl Streep, vem em boa hora pois, não para que seja aplaudido ou vaiado por extremistas, mas para que discutamos mais a política, e sua efetividade no mundo financista de hoje, este sim o demônio invisível que se compraz da tolice de uma falsa cidadania que pensa se exercer ao só enxergar heróis e vilões num cenário político de fachada.