domingo, 30 de novembro de 2008

DESCANTO

Vamos, vamos! Continuemos.
Alguém inventou que é preciso.
Embora meu corpo queira se acomodar como uma estrela de morte,
tragando toda a luz numa fome que é também preguiça.
Mas nem isso, irmãos!
Nem a inveja dos astros, esta carniça.
Só umas palavras pelo vício humano de entender
o que a carne come, porque come e quando.
Ah, tempo! Como ando?
As palavras de ordem querem me tirar do se de uma hora que dorme.
Minha sede vagabunda de não ser além,
de ser um aqui puro e tão somente,
uma semente de possíveis que reste quieta em seu retiro,
um número primo sem rima, uma réstia contra o vampiro.
Vamos, vamos! Leve-me então, amigo.
Seja um convite da espécie,
seja um alvite de estrela.
Queira-me aqui, só por dizer, sem querer.
Leve-me, leve-me!
Meu descanso é negro,
meu descanto, pleno.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Primitivo


A primeira palavra foi um grito de dor, de prazer. Interjeições apontavam para o vazio até que alguém as ecoasse. Alguém era ninguém ainda, e todos os olhos, se se destacavam nas trevas, sofriam do mesmo estupor. Um macho, de falo magoado, ergueu as vistas ao sol e pediu piedade ao molhado da água e ao seco da terra, inventando-nos uma origem que justificasse a caprichosa economia da morte. Ao redor do fogo calculado, os sobreviventes alinharam-se em círculo num pacto de silêncio e até as crianças ganharam o nome de homem, na digestão da fome que fez gerar a prece inaugural. E só por isto baixou-lhes o tempo e a criação de uns intervalos, a que puderam chamar de diversão. Os jogos iludiam a carne e fortaleciam a espreita do acaso e a certeza do destino. Tudo era sempre; tudo era já.


- Tenho saudades do tempo em que contávamos com a fantasia do conforto.

INSEGURANÇAS


Haverá alguém que achará profundo não falar de coisas profundas num blog, quando todo mundo é profundo demais. Haverá alguém que saberá revelar uma vulnerabilidade sujinha, fora da hora, fora da idade. Haverá alguém que depois de tanta convicção, não saberá ser senão poético. Haverá algum jovem velho, que não defenderá, que não acusará, que não quererá ser budista vegetariano anarquista. Haverá algum jovem que deixará de ser iconoclasta ao compreender como sua uma dor universal, que não tem graça mesmo. Haverá algum jovem belo e inteligente que não será rebelde e engraçado só porque tem um quarto protegido numa boa família. Haverá algum jovem belo e inteligente que saberá rir de compaixão, sem saber que esta é sua natureza fatal. Haverá alguém que se tornará rico por odiar o mercado de trabalho. Haverá alguém a quem o rock n’ roll não salvará às pressas de um desejo insatisfeito. Haverá o meu sonho, idiota, franco, por determinação da esperança vã, defendida com petulância, fora de idade, fora dos sonhos, fora das graças de um belo rosto defendido no escárnio da juventude. Não haverá mais a repetição, o verso vazio. Haverá apenas o ato falho da espontaneidade. Haverá um dia em que os jovens perceberão que os conceitos são provisórios e que só brincam como crianças mimadas de serem verborrágicos. Haverá um fim do meu rancor. Haverá um fim do meu ciúme. Haverá dois olhos furados pela inveja. Haverá meu ódio me condenando mais uma vez, como se eu desconhecesse a paz. Haverá cada vez mais essa sublime humanidade superpopulando os vãos do universo conhecido. Haverá alguém que rirá deste dia anotado num blog e me salvará de mim. Haverá alguém que acredita em salvação. Eu tentei acreditar em tudo: de Cristo a Marilyn Manson. Amo muito tudo isso, como um idiota. E gosto de ser idiota, apesar de detestar outros idiotas como eu. Ao menos sou sincero. Mas isso é o que todos dizem. Coitadinho de mim. Haverá alguém que reconhecerá que minha revolta universal é um amor que está para ser inventado sem mais palavras. Haverá quem saberá que aqui só se pretende mostrar a inutilidade de expor uma dor que já não nos faz justiça. Haverá quem saberá calar quando descobrir que tenho encontrado a fonte da felicidade suprema, sem sorrisos de encanto. Haverá quem rirá de minha arrogância tardia. Haverá quem me julgar de um dicionário inteiro, por eu pretender ser além. Hoje eu quero a violência de mandar a juventude calar a boca, junto com os capitalistas que adoram criticar. Hoje eu quero que esta dor rasgada, imoral, anti-literária, entorte a cara das pessoas de bom gosto. Hoje eu sou um bicho egoísta cavando espaço para amar sem a interferência de algum filho de pai melhor que eu. Vão todos tomar no cu. Vão todos rir do meu ódio. Vão todos me ignorar, pois não mereço nem ser crucificado. Vão todos rir ou se compadecer do meu lamento, mal sabendo que me curo, que me fortaleço, que tenho demônios da madrugada sim, e que sei que vai passar, mas hoje não quero pensar duas vezes antes de cuspir na cara de quem me mostra que não consigo ser seguro o tempo todo. Haverá quem se calará por saber que eu já sei que essa falta de humor, essa dor, é de minha responsabilidade, mas o mundo anda uma merda mesmo. Mas eu amo o mundo. Eu amo o Minhocão e amo Paris. Eu amo os assaltantes que me apontaram uma arma na minha cabeça deitada no travesseiro, pois também me ensinaram a viver. Eu amo até quem me quer tirar o amor, pois sei que ainda tem muito a aprender e seu aprendizado salvará o mundo. E agora, por favor, deixem-me amar, deixem-me amar uma só pessoa, só uma. Deixa eu te amar, só você e mais ninguém. Veja que me torno bicho e canto e elevo penas sagradas como um tolo pavão só para não te perder para alguém mais ou menos idiota como eu. Fique em paz em meu peito. A juventude do mundo apenas começou. As festas da consagração, as novidades dos vinte anos são todas velhas já, mas você não saberá, não saberá, pois tem que experimentar o próprio erro, como uma profecia maldita que se colhe em lábios lindos de quem queremos beijar por sabermos que irá nos esnobar. De quem ousamos beijar porque temos quem nos acolha depois em casa, como se as traições fossem justas. E muitas vezes são. Devo escolher a dor de um novo amor? Deste amor? Destas mãos de poucas linhas que me solicitam, sem ter certeza se outras mãos são como as minhas? Deste meu ciúme infernal de saber que o amor tem fim e que já começo a ficar careca? Pobres homens, pobres pintos... Mas eu direi, mesmo velho, como Joyce: eu quero sim, eu digo sins. Sim! Haverá o fim das reflexões, das convicções, das palavras. Como se pudéssemos, enfim, acreditar na fé. Como se esta história toda, que é humana e não mais, pudesse terminar com a emoção de uma poesia que tivemos a ilusão de compreender. Mais ou menos como quando se diz: e foram felizes para sempre.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Uma História da Pedra


A História, como forma de entendimento do mundo, tem lutado nos últimos duzentos anos para se tornar uma “ciência”, com verdade e método. Os fatos, as ações humanas, assim como as pedras, teriam o seu mistério a ser desvelado. Sim, pois o curso da história, escrita e não escrita, tem conduzido os homens a se arrogarem de preencher de sentidos precisos o desconforto do silêncio universal. Para o cientista, uma pedra deve ter um lugar em algum catálogo. Para o poeta, deliberadamente mais ambíguo, a pedra também deve portar algumas palavras ocultas e bem-vindas, ainda que imprecisas. Disto podemos dizer que o poeta e o cientista encontram-se assim na mesma ambição de revelar uma luz universal, transmissível a todos os homens do presente e do futuro. Uma luz mais eterna que o tempo.Ainda bem que o mundo não é só o Ocidente com seus artistas e cientistas, e seu deserto de palavras e símbolos. Ainda bem que temos o Oriente, ainda que um Oriente mítico, criado por nosso estupor ocidental, para nos reportarmos sempre que se renova nossa sede de mistério. Lembro-me, por exemplo, de algumas práticas orientais, em que um iogue coloca-se diante de uma pedra para meditar, como uma das últimas etapas de iniciação aos mistérios universais. A este homem é dada uma única instrução mestra: fique aí, até descobrir que você e a pedra são uma coisa só. Tarefa fácil, deve responder o homem ocidental, afinal, a pedra também é feita de átomos, como se o verbo descobrir implicasse tão somente a elaboração de uma interpretação racional; como se a essência do homem fosse esta razão criadora que o torna deus. Um poeta poderia argumentar: esta pedra dura, inerte, eterna, compartilha comigo o segredo de minha morte. De fato, o estupor diante da morte é universal, e nos insere num campo de experiência comum, na história de desejos e angústias comuns, ainda que de aparências sempre diferentes. Mas, seria uma “verdade universal” o que esses iogues querem encontrar? Sua jornada com a pedra, tecendo um tempo paciente, seria para descobrir verdades? O que deseja descobrir o iogue e sua pedra?Sabemos que o objetivo último de muitas técnicas de meditação é atingir o silêncio bruto da pedra, e não uma lapidação de suas propriedades concretas e abstratas. Podemos supor, então, que ainda deve haver algo de humano para além das palavras, e isto não é nenhuma novidade, embora também não possamos dizer que exista o óbvio. Podemos facilmente aludir a momentos em que o silêncio foi uma das experiências mais plenas do estar vivo, e sabemos que tais experiências são intransferíveis e assim devem permanecer, como prova de nossa individualidade, esta sim, universal. Pois o silêncio, talvez fenômeno mais universal que o próprio universo observável onde habita, nunca é igual, como também os fatos singulares que formam a universalidade da ciência histórica. Atingir um contato renovado e constante com esses silêncios tão desiguais, talvez seja o objetivo do iogue com sua pedra. Seria outra obviedade necessária notar que é só no silêncio universal de uma pedra, de uma estrela, que encontramos nossa individualidade, e que só por esta originalidade de cada ser o silêncio se repete. Entretanto, isto não seria tão óbvio de se dizer se o homem ocidental não confundisse já há alguns séculos a afirmação da individualidade com a negação do outro, no fenômeno mais que conhecido do individualismo moderno. Ser original parece ainda assumir uma luta contra outras individualidades, ao invés de, no destaque de uma originalidade, celebrar as experiências comuns. Muitos historiadores, por exemplo, apelam a valores universais para se contraporem a outros historiadores, seja por vaidade, seja por assumirem um partido específico na luta pela verdade da justiça e da liberdade.Não estou sendo original ao destacar essas questões. Diante desta pauta em branco – minha pedra de hoje – vejo-me profundamente imerso na história: anoto verdades, defendo palavras, levanto meus olhos ao céu, convido os homens a celebrar mistérios e a fazer desta celebração uma crença quase religiosa. Mas quem, pergunto, juntou tais obviedades nesta mesma combinação de palavras? Não pretendo com esta questão afirmar minha individualidade, mas sim destacar que, se realmente não há nada de novo sob o sol, que festejemos com uma humildade quase idiota nossas repetições reelaboradas, provisórias, pretensamente universais, pois o que vale ainda é o processo, a tentativa de cada um e de todos, de cada pedra enterrada ou transformada, ainda que numa lâmina pré-histórica. O que vale não é o que fazemos com a pedra, mas o que fazemos com a observação que dela fazemos; o que fazemos, enfim, com o tempo.A história usa o tempo para descrevê-lo e empresta a filosofia para interpretá-lo. E ambas as ciências – este modo provisório, histórico, de apreensão do mundo – se unem à poesia e à meditação no que talvez seja a experiência humana mais universal: a própria invenção do tempo, esta dimensão onde destacamos nosso ser atônito. Provisoriamente universal. Pois a folha desta impressão, reciclável, também voltará a ser uma pedra, umas tantas vezes, ao menos. Mas sempre é bom ressaltar: talvez. Quem sabe mais é uma pedra.

Se o nariz de Cleópatra...


Nem sempre a escrita da História é composta de asserções de intenção esclarecedora; às vezes a humanidade soma também a este legado alguns enigmas divertidos, como o que nos deixou Pascal, sem qualquer explicação adicional, em meio aos seus mais edificantes Pensamentos. Ele nos diz, no fragmento 162 de seu mais famoso livro: se o nariz de Cleópatra tivesse sido menor, a face da terra teria sido outra. E nos sentimos tentados a especular, numa atitude contradicente a dos cautelosos cientistas da História: se o rosto de Cleópatra fosse um outro, talvez menos belo, teria conquistado os corações dos donos do mundo, Júlio César e Marco Antônio? O destino do mundo estaria impresso no acaso de um traço físico, e a inteligência da rainha do Egito contaria pouco neste caso? E os senhores de Roma, livres da sinuosidade irresistível da exótica soberana, teriam tido mais força para contribuir para a manutenção de uma permanência maior do grande império, livrando-nos da Idade das Trevas e outras conseqüências mais drásticas?
Os historiadores de hoje, analistas de grandes movimentos estruturais das sociedades antigas, nos diriam que poucos fatos isolados poderiam alterar decididamente tendências históricas de longa duração. Sob essa perspectiva, o declínio de Roma não seria de responsabilidade de alguns de seus administradores, mas sim um fruto necessário de estruturas sociais difíceis de mudar, como a constatação de que o poder dos romanos foi secularmente calcado numa administração de cunho militar, dependente de uma expansão e exploração colonial sempre ativas. Soma-se a esta característica mais geral uma distribuição de títulos meritórios, geradora de uma inflada classe de parasitas improdutivos e escravos. Deste modo, sendo o nariz de Cleópatra um outro ou o mesmo, o Egito, afamado celeiro do mundo antigo, teria sido conquistado de uma forma ou de outra e, do mesmo modo, se esgotaria sem suprir as crescentes necessidades dos romanos. Assim, podemos pensar que há um limite razoável para as espetaculares especulações que nos sugerem os enigmas como o que nos provocou o pensador francês.
Uma questão similar a esta de Pascal, freqüentemente repetida pelos brasileiros é: seria o Brasil um país melhor se tivesse sido colonizado pelos ingleses? A resposta geral dos brasileiros ressentidos é que sim. Interroguemos esta possibilidade. Em primeiro lugar, o Brasil jamais receberia o mesmo modelo colonizador das Colônias Inglesas do Norte, grandes responsáveis pela formação da democracia norte-americana, já nossas condições geográficas eram propícias à exploração de produtos tropicais, mais valorizados no mercado europeu e mais compensadores para os comerciantes de alto escalão, os únicos que podiam arriscar-se numa empreitada tão dispendiosa quanto a travessia transoceânica. Assim, se os ingleses tivessem chegado aqui primeiro que os portugueses, possivelmente adotariam a mesma estrutura exploratória que condicionou nossa história. E se assim fosse, os ingleses não sofreriam concorrência com os países ibéricos e talvez não tivessem investido na produção de algodão, menos valorizada que o açúcar e, com isto, não teriam a necessidade de otimizar a produção de tecidos com a invenção das máquinas que abriram as portas da revolução industrial e conduziriam o mundo para o capitalismo industrial. Além disso, se os ingleses tivessem se tornado grandes proprietários de terra, como foram os ibéricos, sua nobreza de terra permaneceria quem sabe ainda fortemente ligada às antigas estruturas medievais, permanecendo católicos como a maior proprietária de terras da Europa, a Igreja. Na Inglaterra dos Tudor, a nobreza de terra aliou-se à burguesia mercantil por não poder concorrer com os grandes proprietários europeus, tornando assim necessária a criação de uma religião mais livre dos interesses hegemônicos no continente. É sabido que a revolução protestante aconteceu em mãos de comerciantes inimigos do clero feudal, e foram esses protestantes, aliás os mais radicais entre os ingleses, que foram banidos para o mundo novo, fundando as colônias do norte nos atuais EUA, uma região sem grandes interesses econômicos para a coroa, mesmo porque esta terra de segregados, geograficamente similar a Europa, não podia produzir algo que o velho mundo já não produzisse, com menor custo. E foi devido a este quase abandono que os colonos protestantes puderam organizar-se em pequenas propriedades independentes que estimularam a ética individualista necessária às novas formas predatórias de capitalismo, como bem descreveu o sociólogo Max Weber. Finalmente, os apelos revolucionários vindos da França empobrecida, jamais gerariam um eco tão forte no Brasil como aconteceu nos EUA, uma vez que os senhores daqui viviam ainda muito bem com sua economia baseada na antiga estrutura agrária e predatória, apesar das frotas inglesas terem já dominado o comércio marítimo à época das revoluções.
Mas, como os enigmas debatidos acima, essas análises também não passam de especulações. E não pretendem, de modo algum, desvalorizar a importância das instigantes inquisições das mesas de bar, taxistas e pescadores. Se, por um lado, esses enigmas nos fazem incorrer em preconceitos, por outro ativam nossa imaginação para a renovação das utopias. Pois não seriam com perguntas semelhantes que os historiadores abordam o passado, questionando-o com perguntas do tipo “por que não somos diferentes do que somos”?
Lembro-me do país ideal imaginado por Thomas More em sua obra-prima Utopia, que nos deu o conceito para a imaginação de paraísos modernos. Teria este pensador, aliás um crítico dos interesses ingleses, criado o grande sonho das repúblicas modernas, em forma sábia e ao mesmo tempo divertida, se não valorizasse igualmente as críticas prudentes dos nobres analistas de sua época e as fantasias insensatas de um mundo melhor, de ilhas maravilhosas, sonhadas nas cabeças dos marinheiros mais ingênuos?
Se essas inquisições acerca dos rumos do tempo são lícitas ou ilícitas, não nos cabe julgar, desde que continuem a provocar nossa imaginação para relativizar com mais leveza a concretude de nossas necessidades presentes, estas sim grandes enigmas a serem resolvidos com o melhor dos humores possível.

DEPOIS DO PARAÍSO


Eu sufoco esse coração que bate até ranger a porta dos olhos.
Eu inspiro fundo a angústia da noite após o prazer.
Eu treino a paciência como um beduíno que enfaixa de tiras negras a cabeça que cruza o deserto.
Eu esculpo a quietude da beleza na casca frágil que tenta conter a tempestade de uma alma.
Eu crio novas orações quando todas as palavras parecem mortas.
Eu olho como um deus para fraqueza de minha humanidade.
Eu expulso os demônios dos quartos trancados dos filhos de boa família.
Eu danço como um macaco santo para pisotear a infâmia dos bons costumes.
Eu ressuscito das trevas para trazer o sorriso da manhã aos jovens que temem tudo, menos o sexo.
Eu invoco os punhos dos escravos que construíram a pirâmide de Gizé para exigir piedade dos céus.
Eu venço as horas como quem se deixa vencer pelo amor.
Eu treino a disciplina do ferro e do fogo na entrega total.
Eu retorno para contar uma história de todo mundo e merecer a amizade de um só senhor a todo custo,
Ao custo de uma vida.
Cuspida no barro.
Escarrada no acaso de uma estrela.

23SET08

BONDE DA CHARADA


Vamos lá amiguinhos, esse é o bonde da charada,
que já não me levo a sério num país que não se leva.
Mas sou solidário, porra. Brasileiro-palavrão.
Embora eu pegue carona na piada de um silêncio.
Porque charada é assim: não se sabe de que lado o céu se abre.
(Pegou o bonde andando e quer sentar na janelinha?)
O tempo que lhe abro está nublado?
Recomeço-me para seu entendimento:
Não sou nenhum nome do amor e da morte.
Não sou nem o que escolhe a sorte.
Excesso de subjetividade é medo das horas.
Além de porra,
Sou agora.

06set08

WONDERLAND


A revolução das espécies se dá no ventre pobre de um poeta que mereça,
Pois que o estômago despede a poesia para que só a verdade aconteça.
E eu me lembrarei, tendo visto os olhos de uma mulher no parto,
Que as estrelas explodiram com dor para vivermos na ilusão do prazer farto.
- Dê-me um naco de carne, companheiro.
Dividamos esta hora vã, em que tudo é eterno, grato e rasteiro.
Se a vida é ou não acaso certeiro, vale um sorriso de tanto-faz - assim disfarço.
Veja a tarde cair sem medo, conte-me uma história de céu,
pois que me desço para lhe compreender - é fato - e meu resto eu enlaço.
Compreenda-me assim: meu estômago é o espelho do buraco de Alice;
minha fé sem âmago, o que o maldito coelho branco não disse.

28jul08

PARADOXO TEMPORAL

Da Vinci - Velho e jovem de perfil




O pensamento nas coisas abstratas é uma virtude para o jovem,
Que saberá encarar a vida com a coragem da complexidade.
A expressão da concretude, seu aprendizado de humildade
No treino da compaixão para com a lentidão dos velhos,
Que desconhecem as coisas de novos valores num mundo antigo.

O pensamento nas coisas concretas é uma virtude para o velho,
Que saberá encarar a morte com a coragem da simplicidade.
A expressão da abstração, seu aprendizado de humildade
No treino da compaixão para com a pressa dos jovens
Que desconhecem as coisas de velhos valores num mundo recém-nascido.

- Não ser velho nem jovem é a arte da sabedoria.
15jun08

Sonho de Orfeu no Vale da Morte

ALÔ?... CÂMBIO? CONTATO?! MÃE?! PAI?! QUEM AMA?? ALÔ!!! S.O.S.


Esta é uma charada a cobrar, para aceitá-la continue na fila ou...


NÃO CONSIGO OUVVVVVVVVVVVVVVVVVVVVV... ZZZZZZZZZZZZ!!! Não sei que sonho. De lugar nenhum, recebo a notícia de que na Terra predadores de todas as espécies correm por um deserto de resto tecnológico, no rastro da última guerra. Alguém me lembra de que nos cantos do universo expandido, as estrelas explodem em silêncio. Aceito um convite silencioso para me deitar na escuridão vazia. Ouço a paz.

Shhh... Ohmm... zzzz...
Seja bem vindo...
Você não está sozinho.
Esqueça seus perseguidores – cace...
Eu visitei o fim do universo, onde é só sonho sem lugar,
Sem fronteira, sem razão, sem saída, sem andar.
Retorno para lhe contar as histórias que viraram sonho.
Durma agora! Acorde para este sonho.
Conecte-se ao enigma. Siga-me. Pulse!


Não posso parar de correr! Tenho que me preparar, alcançar o abrigo! Os soldados não se cansaram no campo inimigo... E não restou campo amigo. Aqui, é cada um pelo próprio corpo... Em algum lugar, alguém nunca saberá que a guerra acabou. Em todo lugar, ninguém sabe de nada. Eu sei que naves piratas se escondem na fumaça tóxica. Legiões de sobreviventes sem família, pátria ou memória, reviram o deserto de escombros em busca de carniça. Profetizo para a minha sombra: VOCÊ É UM DELES! RESPIRE E VÁ. NÃO PARE PARA PENSAR. FUJA DAS CRIANÇAS-SEM-LÍNGUA – ABORTOS QUE VINGARAM E APRENDERAM A FALAR COM OS GEMIDOS DOS MORTOS. SÃO OS PIORES ASSASSINOS...

Conecte-se ao enigma! Pulse comigo.


Meus pés batem na terra árida um compasso inerte de fuga. O coração adormece. Quero me entregar.


Pulse. Ossos para o chão, carne para o céu!
Isto não é sonho, é ciência – lei e observação ao léu.
Quer experimentar?


Você sente sono. Acha os destroços de um avião carbonizado, parecido com a carcaça de uma baleia branca. Reconheço a coisa como um abrigo futuresco-saudosista. Desvendo que sonho quando sinto este cheiro de lembrança afundada onde quase me descubro. Duvido da realidade do sonho, mas um sono me bate como realidade e esqueço de sonhar: os músculos pesam, os pulmões deixam o ar sair, o coração sangra espaço, alivia-se, sonha com o lar. Está consciente. Segue com o tempo. Pulsa.

Não é só ciência, é religião também.
Entre e saiba o que não se observa na escuridão.
Sou seu guia entre dois mundos, perto de onde a luz escapa. Siga-me!
Deixe que eu sele seus olhos, cegando-os com delicadeza de areia. Durma agora...


O avião-baleia é invadido por uma espécie de cordão d’água, suspenso no ar como fio de cristal. Brilhante sob o luar vazado em listras pelas costelas da baleia, o fio mágico aponta para o meu rosto como um dedo de deus. Você diz por dentro: VOCÊ TINHA ESQUECIDO DEUS. E o dedo sem nome divide-se como língua de cobra e entra pelos meus olhos, sem fazer pressão. Alguma força preenche meu corpo e puxa o fio de volta à origem. Rasteiro, escorrego pelo rastro da guerra como ave de rapina. O lixo final, a natureza enfim devastada por fragmentos de objetos humanos: corpos, civilizações antigas e novas reviradas do inferno ao céu. Pedras, prédios, telas, robôs, crateras lunares. Filmo o apocalipse conectado ao fio de água. Peço ajuda ao fio para me afastar em direção ao céu. Elevo-me.

Não se preocupe. Deixa que eu leve a memória dos fatos...
Adormeça desde a pele. Desperte para a teia de luzes.


Sob um tímido luar, a areia quase invisível parece ganhar um brilho líquido – uma praia, o mar! Descubro: esta era a fonte que me puxava. Apesar da noite, bato em águas quentes. Dentro d’água, o fio que me guia vira uma trança de luzes douradas e prateadas que iluminam de azul a desgraça do último dilúvio. Alguém me sopra que os pólos foram incendiados. Deserto aquoso adentro, a megalópole submersa.


Pulse! Conecte-se ao enigma. Não olhe a face da morte pelas janelas dos prédios, deixe a cidade para os tubarões. O fundo virgem do oceano não está longe. Não há com o que se preocupar, todas as ocupações foram desfeitas. Escolha ser livre na eternidade do sem-mundo. Você navega e eu lhe mergulho. Acorde este corpo enquanto dura este sonho. A voz que lhe guia é a voz que lhe quer. Gostaria de experimentar o futuro?


Desço pela escuridão profunda do longe-de-mim. Aqui e ali, distingo conglomerados multicromáticos de luzes derretidas. Não sei se estou no vazio das profundezas do oceano, cercado por estranhos seres abissais, ou se vago pelo vazio do espaço, entre distantes galáxias perdidas. Do fundo mais fundo, julgo ouvir melodias fúnebres em doces vozes feminis, enquanto pressinto a voz masculina que me guia no silêncio pesado das águas negras. Minha cabeça é tragada para o fundo da areia, o resto de meu fardo passa a flutuar num balé às avessas. Não sinto nada, esqueço-me.

Não sou um canto de sereia, tritões não sabem entoar.
Sonhe para não se confundir, afunde para respirar.
O amor é onda futura que se funde em pedra pura.
Não há mistério, é só o tempero que misturo.


Esqueço que estou no fundo mudo dos desastres e sinto sono. Desmaio e começo a sonhar dentro do sonho marinho. Primeiro eu ouço.


Este é o tempo dos últimos sonhos. Antes de abrir os olhos, mantenha o coração na linha do horizonte. Sinta-se em casa. E não tema coisa alguma.


Qual deus descreveria o que vejo? Estou no centro de uma multidão de milhares de sobreviventes da última guerra, nus ou em farrapos, dançando desgovernados pelo deserto de pátria alguma. No ar de gazes vermelhos, aeronaves cruzam ataques que explodem máquinas no céu e corpos na terra. Ao meu lado, uma mulher ri histérica sobre as pernas que bate no chão por insistência, sem querer cansar. Um homem acalma o ritmo dos pés num transe louco que reza entrelábios. O cheiro do sexo predomina sobre o cheiro da morte. Os braços se procuram. Chove suor. À minha frente, um jovem se destaca com seus cabelos finos revoltos sob o vento da guerra, o olhar manso de sabedoria, a boca cheia de desejos – seu sorriso esconde uma inocência que a malícia de seus olhos denuncia. Sua roupa é de um tecido misto de plásticos e trapos pretos reciclados, cruzados e amarrados em caos ordenado por todo o contorno do corpo alto, até o pescoço. Veste um coturno gasto, antiquado. Não carrega nada nas mãos. Ambíguo, caminha devagar, quase sem decisão, como se não houvesse a dança da guerra, como se entardecesse sobre uma praia, como se a vida apenas começasse... Intuo que este rapaz é aquele que se diz guia, a voz que me assopra como intruso, e ele se confirma quando se faz ouvir sem abrir a boca, pelos olhos simplificados na verdade da hora urgente. Ao redor, o êxtase leva os corpos à ruína.


Estrangeiro em minha terra e desconhecido no estrangeiro, eu vigiei para não ser pego, cheguei aos campos de concentração nas colônias lunares, mirei os olhos secos de quem implora só mais um litro de ar. Para fugir, tive que cair até o fim do universo, limite de todo existir, fora do tempo que duram as maiores ilusões. Fora dos fatos quadrados ou em cacos, não pude salvar mais que um nome humano, nem meu nem de ninguém, mas que serve a todo aquele o ultrapassa. No deserto dos sonhos, cacei os perseguidores do nome e, desses todos, muitos eram deuses que nunca existirão. Como saí de lá e o que fiz para chegar aqui é história que não cabe em sonho. Digo apenas que amei para me inocentar e retorno para lhe contar. Se você se lembrar dos caminhos em que lhe conduzirei, será meu guia também.


Caio deitado. Acima de mim o céu estrelado sobre as costelas negras do avião-baleia. Ao redor, o deserto e seu nada. O tempo umedeceu. Minha cabeça está molhada de água do mar. Respiro aliviado, como se estivesse na pausa de um beijo. Em meus ouvidos reverberam ecos que já não sei se saem de mim.

Sou a voz do deserto, senti o amor do sem fim,
Retorno da eternidade para contar seus sonhos de mim.


Pouco a pouco, pulso por pulso, a voz retorna ao espaço incorpóreo. E antes de acordar, durmo pensando de cabeça na areia fria: COMO CONTAR OS GRÃOS DE UM SONHO ASSIM?

Iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiôêô!
IIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIÔÊÔ...


Um chamamento vindo dos fornos do tempo me acorda. Abro os olhos num chão de asfalto rachado e vejo uma avenida larga amanhecer abandonada. As luzes artificiais estão quebradas, pendem dos fios como fardos de enforcados. Ao longe, ruídas pelos séculos, vejo duas fileiras de arranha-céus de uma alta tecnologia já antiquada. Fora isso, ninguém. Eu conheço este lugar: minha cidade natal – mas o tempo é outro. Sei que estou no futuro, a guerra passou por aqui. Estar no futuro não é uma surpresa para mim, estaria tudo no esquecimento do prazer se meus sentidos não entrassem em estado de alerta diante desse vazio suspeito. Fico de pé num salto. Existe uma leveza de criança neste corpo. Olho para mim e vejo pés fincados, mãos em posição de ataque, músculos quentes em pura definição, tingidos pelo trabalho sob o sol. Mantenho-me firme com o coração na boca. Assim, descubro-me belo. Sou uma versão mais delicada de mim, sem o peso das horas, suspenso na oportunidade da sobrevivência. O futuro não corre, parece preso num instante do passado. Ouço um zumbido se aproximar. Abelhas?! Tenho medo de abelhas porque elas não voam em linha reta. Olho para trás. Borboletando no ar com quatro penas brancas, duas asas, uma pedra do tamanho de um punho orbita ao meu redor. Sinto-me observado como se um sonhador gaiato pegasse carona no meu sonho. Sem aviso, a coisa traça uma fuga reta em direção à esquerda, onde pressinto uma rua escura, sem saída. Pisco os olhos e, pela força do pressentimento, vejo-me já no beco, onde consigo captar um relance da pedra voadora, descendo uma rampa que parece dar numa espécie de estacionamento. Tenho medo, mas sei que devo descer também, meus instintos confiam na pedra. Pisco de certeza e caio dentro do lugar. Teto baixo, concreto sobre concreto. No lado oposto ao que desci, sobe uma outra rampa em direção à visão de um céu de sol pleno, com verdejantes copas de árvores. No centro do lugar-concreto, um homem nu, ajoelhado numa das pernas, cabeça pensa, cabelo basto. Reconheço-o não sei de onde. A forma de seus grandes músculos expostos ressoa na memória, mas não se identifica. Olho para as mãos rústicas e reconheço as minhas próprias, mais calejadas pelo uso da força. O ser levanta uns olhos tristes para mim. Meus olhos! Por trás da sobrancelha esparsa, da barba cheia, dos muitos pêlos e suor, eu. E o eu sorri para mim escondendo intenções – não me desvendo. Ao invés, vejo-o levantar o que parece ser uma flauta descomunal, feita de um tipo de bambu selvagem. Vejo-o assoprar um zumbido longo que faz sair da ponta do instrumento um nevoeiro denso de abelhas. Elas giram em agonia e se derretem no ar como chuva de cera sobre minha versão encardida. Ele deixa-se cair macilento no chão e começa a torcer um canto rouco. Rápidos focos de luzes coloridas partem de todas as superfícies do concreto reinante, inundando-nos numa cama de gato mutante, numa pista de dança cibernética.

Ai meu deus, olha só onde acordei!
Fui eu que pedi, não peço outra vida – me ferrei.
A plenitude vai seguindo e você é o meu carimbo, eu sei.
Então por que eu fico triste se você abaixa os olhos?
Meu lábio cantarola quando toca aquele idílio:
Eu sou o mais certo à sua frente agora!
Preste atenção em quem te rodeia esta noite,
Hoje você trouxe aquele sol bem-vindo,
Mas eu não sinto nem preguiça de luar...
Quando toca o estribilho, meu coração até vai,
Mas o meu pé vai fugindo do outro pé, de mansinho.
Você quer que eu pegue leve, passe liso,
Mas eu não sinto nem preguiça de luar,
Esta noite é pra outras luzes, pode passar.
Tem uma coisinha que não me deixa dançar,
E eu sei que nada poderia ser mais amoroso.
Tem uma coisinha que não me deixa cantar:
Por que você não estoura, se não estou pra isso hoje?
É melhor eu me esconder enquanto você chora de mim...
Ando pelas caras e são todas caras,
ando pelas bocas e todas são poucas.
E não sinto nem preguiça...
Cidades brotam e tombam como pista que enche e esvazia,
E tudo que a gente faz é mudar e fingir que retornou para o lar.
E você tem todas essas luzes que cabem numa praia,
mas por que na sua frente eu não abro os olhos e os abraços?
Parado na vida, brinco de ter um objetivo:
Dizer pra todo mundo que seu nome é meu.
Eu só peço que você me ouça, enquanto eleva os braços livres:
Sei que se você sair por aí, estará como eu fui,
E eu não sinto nem vontade de luar...
Quando toca o agudinho, meu peito até respira,
Mas meu pé segue outro pé que quer sair.
Você me quer de ombro erguido, desfilando micos,
Mas eu não sinto nem fome de luar,
Esta noite é pra outras cruzes!
Não me deixe dançar e cantar,
Inclusive se nada mais puder me incluir.
Matei minha febre de luar, aprendi a suar.
Por que você não melhora quando não está comigo?
Vou me esconder até você rir de si, sinceramente.
Vou soprar uma fé que fará a lua virar carruagem,
Verei as formigas cativas do amor enquanto sigo viagem.
Sem dançar, fico quieto para receber seu pé no meu peito.
Deixe-me escorrer pelo seu canto,
Enquanto você corre pelas luzes além.
Mas aviso que não sinto nem preguiça de ficar!
Quando toca o estribilho, meu amor até vai,
Mas o calcanhar finca nesse coração mansinho.
Você quer que eu mude firme, muro pro seu furacão,
Mas não sinto nem a carícia do luar,
Esta noite é pra outras coisas, pode passar.
Parem de dançar e cantar!
Tem alguém que não quer fazer isso hoje...
Parem de dançar e cantar!
Por que você não arromba a pista sem dança?
Hoje ninguém vai cantar e dançar,
É melhor cair na cama que ver os seus olhos baixarem.


Entonteço com a visão da versão melada de mim. Uma náusea sobe à garganta sem convulsões, calma e persistente. Sem pavor, a vista escurece diante do meu duplo grotesco. Rendido no chão, ele parece inconsciente, desabrigado de qualquer sonho. Olho para a direita: na rampa que sobe ensolarada, a pedra voadora rodopia elipses. Olho para a esquerda: uma chuva fina cai sobre o fim da madrugada e, encostada na entrada do estacionamento-vórtice, uma doce-moça-cachos-de-mel, também nua, um pingo de ouro como gargantilha, risinho tenso, desejo embrulhado nas mãos entre pernas. Sei que ela apareceu pelo chamado da música. Meu coração dispara sem nome de terror, pavor, amor ou pânico algum. Vou até ela e simplesmente encosto meu desejo no seu e experimento sua boca de uma vez. Ela me empurra com os punhos leves e diz: VOCÊ BABA! E foge madrugada acima. Arrasto-me pelas suas pegadas, meus dentes crispam no ar frio do fim das horas: TENHO QUE PEGÁ-LA! Alavancando a flauta gigante, meu duplo escrachado nos segue, saltando distâncias superiores a vinte metros. Corro por um grande vazio de escombros de edifícios e arcos rachados de colossais viadutos. Salto e corro com a agilidade e precisão que meu novo corpo gracioso permite, mas perco o ritmo toda vez que ela olha para trás e sorri. Um helicóptero de guerra inclina rasantes e holofotes sobre nós. Entre pulos, meu duplo arreganhado gargalha guinchos de prazer. Tropeço e caio. Levanto-me e rastreio o cheiro dela. Nada, o sonho não tem cheiro, e eu não sei que é sonho. Sei que é desejo, e guio-me pelo movimento das coisas. Ouço gritos e lamentos. No meio da cidade destruída, um rio semi-morto barra o meu caminho. Alcanço a margem pouco íngreme, onde bandos de sobreviventes pranteiam objetos de outras épocas, que bóiam lúgubres em caldo contaminado. Na outra margem, uma plantação daquele bambu titânico flexiona em reverente choro. Consigo ver uma das hastes gigantes vazar mel pelas juntas. Ouço a risada de meu duplo folgazão atrás de mim. Torno-me e vejo-o encher-se de ar, esticado em cima de uma piramidal quina de prédio jogada ao acaso sobre o entulho. Ele sopra a flauta que magicamente faz soar a voz da lourinha fugida: AONDE SERÁ QUE EU ME ESCONDI? Entendo que ela virou música e fecho os olhos para me distrair. Acordo outra vez no estacionamento das bifurcações. Ainda sou belo. Meu eu carnavalesco ainda ri à minha frente e, como ele-eu, eu-ele porto uma flauta de bambu. Olho para a esquerda: a pedra que voa, jaz parada no ar, de penas eriçadas, no meio de uma chuva relampejante. Na rampa à direita, sob a luz do dia aberto, uma jovem branca de olhos ocultos em franja de seda negra. Veste uma bota plástica branca de salto ferroento, que lhe aperta até as coxas, e uma tira de couro branco envolvendo o pescoço alto, onde se lê em fina caligrafia de sangue: VIRGEM. Em seus braços, enroscam-se arabescos de serpentes e dragões tatuados em ampla escala de cores, misturando estilos artesanais, desde os nós mais primitivos até os mais modernos, industriais, retilíneos. Do canto do sorriso mais que rubro, escorre um filete de mel que a língua recolhe acanhada, só uma pitada. De repente, abre-se no teto baixo de concreto um fosso alto onde se gruda uma escada de mão enferrujada. Meu duplo simiesco se posiciona abaixo do buraco, tendo o bastão musical como eixo, e entoa: IEÔ-AAH! IEÁ-OHM... E, tomando impulso com o bambu salteador, parte num único pulo reto pelo poço aberto. A virgem vem até mim, prende os lábios nos lóbulos ao pé do meu ouvido e sussurra com voz robotizada: GUARDO O CANTO DE UM FOGO ANTIGO. E como aranha veloz, agarra-se ao sumidouro e o escala sem esforço, religiosamente sobre-humana. Fico a sós com pedra de olho oculto. Não sei se é sua muda observação ou se é a vibração colibrinesca de suas asas que me apavora, mas meu coração dispara, liberando uma força de medo que me faz preferir o amor da sacerdotisa cibernética a mais um instante com a coisa sem nome. Fecho os olhos para sonhar um atalho. Acordo sacudido por ventos uivantes. Estou no alto do maior arranha-céu, acima e abaixo as nuvens passam pela cidade abandonada antes da destruição. Na altitude de meu olhar, a mulher de olhos acortinados está equilibrada no parapeito de um prédio gêmeo. Ao meu lado, minha versão predadora atinge o terraço, sem fôlego ou foco. Rasteja-se até o parapeito e ensaia uma palavra na flauta: VOCÊ! E junto com o pedido persistente, escapa do bico do sonoro bambu um despejo de abelhas que escorrem mortas para o desfiladeiro de prédios. Com a franja furiosa rebatendo-lhe a face, a mulher faz um grito nos chegar numa pausa dos ventos: VOCÊ NÃO, TÍMIDO LIBERTINO! E se atira atrás das abelhas. Minha versão monstruosa enrola-se num choro infantil, empobrecendo sua potência em solucinhos magoados. Sinto que devo esperar a passagem de alguma frota de nuvens. Após um vento feroz secar seu lamento, ouço uma sobreposição de estrondos crepitarem da terra distante abaixo de nós. Então vejo: como se sua vida entregue fosse milagrosa semente, a virgem faz despontar do chão entre os edifícios gêmeos uma espécie de monolito de pedra branca, rutilante como mármore bruto, largo e toscamente arrendado na ponta como um falo de deus. Lembro do nome de deus com um arrepio. Meu duplo esgueira-se entre as correntes de ar e gruda as garras e pêlos no monolito faraônico. Sem ruído espetacular de catástrofe, a coisa erguida é atraída pelo céu azul, revelando abas de pedra que cortam os prédios vizinhos como lâminas. Salto para não me perder e, como numa aventura previsível, prendo-me na rabeira da crua aeronave que corta o céu da metrópole fantasma. Quando o vôo estabiliza-se entre os quatro cantos do horizonte, vejo meu lado animal deitar-se de barriga para cima, braços e pernas à disposição, imerso na ignorância de si e do mundo. Aderido à superfície de pedra, ele começa a vocalizar um cântico, sem notar o céu vermelho que talvez reconhecesse, e para onde somos dirigidos. Pisco os olhos, mas não consigo mudar de cenário.

Sou o abraço dos quatro ares, alinhados no teu tempo.
A disritmia desta carne cantante bate no pé dos caçadores,
Na fé dos calores, no teu sangue contente.
Esta membrana sem ossos ensaia um ritmo de estrela cadente,
Esquenta no dente, vibra teu nome cósmico.
Pois teu nome é o tremor dos terrores,
Terrosamente universal.
Deixa-me contar de uma vez, certa rosa:
A mais bela! – quem há de pôr mais verso?
Mas a chama da batalha congelou o botão e sua fome...
Ó, ser olho só! – esperança dura de ser pedra!
Orgulhoso, caminhar a pé para o fim de tudo,
Pois não há no mundo amor mais teimoso que o meu.
Abraça o céu comigo, leva o azul anil, neve o suor solar,
A tempestade veste rouge, o trovão já ruge...
Leva o azul que der, venha como vier, vire-me,
A noite já reage...
Guarda todo o verão, vigia-nos como o astro-rei, meu pai,
Seja minha até que o tempo pare – só então o sopro vai.
Ama, queima, clama – cama, beijo, drama!
Voa, esquece, plana – calma, quente chama.
Deixe-me ser o único clima a temperar teu vento veloz.
Antes que as estrelas nos queimem a pele,
O céu pede que a gente estacione.
Por quem arde o universo recolhido neste sonho?
Quem rastreia este verso florido e medonho?
Por que universo escolheste arder, enfim?
- Deita-te na pedra comigo e esqueça de invejar as estrelas!


Acima, o céu vermelho. Não sei as horas neste lugar. Meu gêmeo bruto está deitado de bruços no dorso do avião, cara amassada de pós-coito. Vejo-o apenas para ignorá-lo; não me importo com sua presença – para que mulher ele canta afinal? Eu atento para o movimento do jato de pedra que parece frear e virar um ângulo rumo à aterrissagem. Mas não há pista de pouso, de dança, ou terra que o valha. Avisto apenas o mar fechado em revoltos pretumes, como sonho de polvo. Para trás, não há mais cidade nem deserto de escombros, há apenas cegueira. Não me surpreendo quando a aeronave entra pela água. Não me surpreendo em ver a metrópole submersa de onde partimos. Caminhamos para o futuro. Num piscar úmido, sinto o objeto voador tocar uma plataforma. Abro os olhos. Não há mais água, apenas sua densidade envolvendo nossos corpos, explodindo em bolha, sendo vazada pelo nado de cardumes exóticos. Como se eu nadasse pelo ar, provoco um mergulho lento até o chão. O chão! Planície de placas brancas, quadradas, simétricas, até onde a vista alcança. Aqui o tempo é outro. Meu duplo grosseiro aparece à minha frente e diz, próximo ao meu rosto: VOCÊ POR AQUI? Eu repondo, soprando seu hálito para longe de mim: VOCÊ SABE QUE SIM! E, seguindo alguma sugestão sem origem, forço os dedos na fissura entre duas placas, tentando levantar uma delas. Um único movimento curto faz o quadrado descolar e flutuar na água invisível. Enfio a mão no buraco e tiro uma pedra. Viro para meu duplo e digo: É SÓ UMA PEDRA. Ele faz cara de quem entendeu demais ou de menos e diz: SÓ UMA PEDRA. Confio nele e, com toda minha força, atiro a pedra longe, tomando impulso do fundo da repulsa. Meu duplo começa a rir, primeiro discretamente, depois escancarado e, por fim, com os olhos arregalados em mim e mãos na barriga palpitando de delícia. Não entendo a causa de seu riso até ver a pedra atirada inchar-se suspensa. Como câncer, cresce pelas beiradas e de dentro pra fora, em rebuliço amorfo. Cresce até tomar a forma de uma baleia. Sim, numa rachadura uma boca se esgane e todo o ser ganha peles, carnes, dentes e garganta profunda. Maior que um transatlântico, um cachalote branco se aproxima de olhos fechados. De sua válvula sonora, emite uma vibração grave que faz todos os cardumes pararem no mar. Somos engolidos sem pressa: a língua do bicho puxando-nos o tapete, a boca bocejando antes de engolir. Por uma nesga de boca ainda tento divisar o avião que nos trouxe para, quem sabe, partir dali, mas este já desapareceu, sem surpresa. Escuridão profunda. Não é como se eu estivesse dentro de um bicho real. A carne treme, mas perco o medo da morte. Aqui eu vôo e ricocheteio numa caverna absolutamente oca, feita de carne viva, sem outras bifurcações ou saliências biológicas. Sei que, apesar dessa simplicidade interior, a coisa ainda é uma baleia temível. Acho estranha a liberdade de meu vôo nesta gruta orgânica e sinto, na seqüência, meus braços serem agarrados por duas mãos firmes. Sei que é meu duplo, embora não o enxergue. Tenho a confirmação de seu toque quando grita: CADÊ VOCÊ? Sei que não é a mim que ele procura, mas não sei quem seria. Do fundo da alma do cetáceo, ouço as mesmas sílabas, repetidas, embaralhadas e distorcidas no gozo fino e retardado de um eco: CAVOU... DESCEU... Meu duplo se aparta de mim. Não posso saber se é mesmo inocente eco, ou outra coisa mais ressoante. Ouço a voz enrouquecida de meu duplo ninfomaníaco cair na morna escuridão, modulando frases musicais para desmascarar seu imitador ou para seduzir seu novo objeto de desejo sem fim, que replica ora sim, ora nunca.

Ecoe, acode. Cata a mão que ronda e não sai.
Escoa, cose. Toca o canto de onda que ensaia.
Escolhe, acolhe. Toca a pele aonde ela enrola.
Decola, demora. Torna-me pó enquanto me ensinas.
A gente é o que dá pra ser, o que não dá só o prazer imagina.
Digo isso porque é sina: há vida apesar do amor, estou convencido.
E ela dita: segue-me nesta ida vencida, busca a pedra que vacina.
Tu, medo. Fricciono em transe mudo.
Tu, credo. Deslizo para o além.
Tu, sinto. E não aciono nome algum.
Tu, minto. É deus quem diz amém.
Heróico, erótico. Tenho essa mão que sabe caçar.
Heróico, erótico. Asso teu pão até a fome cansar.
Heróico. Nem só de palavrão se encanta a hora.
Erótico. Nem só de eco se canta a vitória.
A glória, agora.


Então, a válvula do bicho deixa entrar um cone palpitante de luz solar, que ilumina um par. Uma moça magra, de palidez cinzenta, cabelos curtos em disciplina militar, está nua, encarcerada nos braços de meu duplo que a retém junto a si, forçando o bastão musical contra sua cintura. Ela força os braços para se soltar; prende as garras na cabeça de meu clone, reto e feroz ele também. Ela quer gritar, mas sua língua sangra. Sinto um frio na barriga e sou atirado, assim como eles dois, para teto membranoso da coisa. A baleia cai. Seus músculos começam a virar pó durante a queda, seus ossos estão em brasa. Por trás da carcaça exultante de labaredas púrpuras, posso ver o deserto de terra seca craquelada. A noite tomba com ritmo frenético da queda, as estrelas riscando arcos no céu. Fecho os olhos antes do impacto. Pousamos como pena. Acordo com o corpo cansado de sonhar. Retornei para o abrigo-avião-baleia. Uma película de chama púrpura ainda adere aos farrapos brancos hasteados no alto do esqueleto, sem consumi-lo, entretanto. Fico de pé com a simples força da vontade. Aparentemente estou só, mas um sopro cruzado de brisas rasteiras corta-se contra minhas pernas, e parece avisar-me de algum perigo mais que humano. Assusto-me ao ver o vulto de meu duplo visceral presenciar-se ao pé da bandeira incandescente. Ele não me dá tempo para reagir. Assopra uma flauta comum, agora de metal bronzeado, que me paralisa. Os silvos do cano intricado atraem trovões e relâmpagos. E as notas baixas fazem chegar nuvens negras no céu alto – sólidas, fervilhantes como peste de abelhas. O duplo inumano salta ao meu perímetro. O céu se cala, embora imploda como tragédia total. E um braço do meu bicho-eu recolhe meus ombros, gélido como serpente aérea. A voz range ao meu lado, baixa e lenta, dublando entrada de mausoléu: SOMOS EU E VOCÊ AGORA... E ele se gira no próprio eixo, afetando farejar sinal de vida à distância. Olho junto e não vejo nada... Espera! Ele ri quando vejo algo revirar a terra de dentro para fora. Mais que algo, são vários pequenos montes que expurgam do solo como furúnculos, a cada dez ou vinte metros. Vejo supurar das infecções ctônicas, como ervas daninhas, tímidas mãozinhas de crianças.

A noite esfriou o deserto!
Você está só entre sombras de si.
O luar a pino está aberto!
Tudo o que nem se vê lhe arrepia em mim.
Você ajoelha para acordar!
Mas reza quando descobre que é pesadelo que não vai passar.
Você respira para abafar!
Mas se sufoca a beleza, arredio. Sua luta é tremer contra o frio.
Só o seu coração mexe indiscreto!
Você ouve a própria voz suspirar sua desgraça e rir do seu fim.
Você deseja um buraco secreto!
Mas a terra remexe sob seus pés e você olha para mim.
Aprendiz, o medo é dialeto só!
Você cega o sonho como os demônios que lhe espremem no pó,
Isto não é passatempo, é o seu nó.
Preste atenção, o mal espreita lento!
O conforto em ver o suplício dos sem-esperança não mingua.
Quem sonha triste alimenta a noite!
O consolo da escória está num olho faminto de criança-sem-língua.
Você quer que um forno lhe acoite!
Seria o momento de abraçar a pedra que o amor vinga.
Ela engana e iguala nossa sorte!
Amarro-lhe no meu sonho até que a manhã celebre sua arte,
Até o engasgo final sair em febre que parte.
Isso é suspense, dance sem pensar!
Ninguém vai lhe salvar dessa espera que nos sustenta.
Você está tenso, denso mais que o ar!
Não sabe se o que canto é luz, senso quente,
Ou se é pus que prenso de repente.
Pense! Suspense é passado que vaza e futuro que voa,
E eu condenso todos os pares no meu caos à toa.
Você duvida, suspende a certeza!
Veja se não sou mais forte que minha boca que prediz,
Meu peito bate com as cinzas dos primeiros mortos, sem raiz.
Dance! Pense sem olhar! Não tem mais jeito!
Acaricie o meu conselho e seja um meu juiz,
Seja o que sempre quis, proteja o que der, compre o que vier.
Meu sopro toca e meu toque sopra, abraço é bom assim.


A lua é levada para trás do horizonte. A hora não é mais que ponte para a morte. As crianças-criatura destroncam um caminhar não sei para onde. Sangrentas, começam a uivar nomes de pessoas que você ama. Sem hesitar, meu gêmeo olha para mim, vestindo a nudez como armadura – milênios de idade, lábios da mesma nossa infância, coração no olho, fixo como centro do universo. Conecto-me. Pulso. Miro em seu espelho nossa desgraça descarnada – a fome sem vida de velhas crianças. Não há mais como negar que estamos cercados. Virando as pupilas em delírio, meu duplo lascivo replica com jeito e voz de bode: SUSPENSE... INFÂNCIA... HERÓICO... ERÓTICO... TEU NOME É O TREMOR DOS TERRORES... E NÃO SINTO NEM PREGUIÇA DE LUAR... Cinzentas, secas, ásperas, as crianças nos alisam com unhas de pedra e dentes de barro. Parecem cegas. A vinte metros, meu gêmeo enrobustece o braço para cima, protegendo com as duas garras a flauta bronzeada. Súbito, ele abaixa o braço e atira o instrumento, que vira uma cobra negra com uma cabeça em cada ponta. Revesando-se, uma cabeça pica, a outra foge, até chegar a mim. Posso escolher entre morrer pela serpente ou pelas crianças famintas, cada vez mais exaltadas na sinfonia de nomes chorados. Meu outro eu, agora humano, divide-se entre o medo e a esperança. Sobro-me com o amor e piso na cabeça da serpente. Esta salta no ar e mistifica-se noutra flauta, agora de ouro reluzente. Sopro a decisão do sonho como cristalina vertente:
Invoco o ácido do odor mais que podre dos mortos inocentes!


Controlo o pânico de cem mil anos de guerra, à sua frente!
Não somos da raça dos que roubam túmulos –
Mãos de cemitério não prendem nossos pulsos!
Devolvo para vós o calafrio de meu suspense,
Pois não há quem dispense a lancinante chama
Que se segue ao frio e, dançante, calcina o mal,
nem amado mortal, nem imortal guia, nem pedra fria.


A lua reaparece e reafirmo minha ilusão: DURO COMO PEDRA. Então ela descola do céu, apaga o brilho e diminui até ser gema enquanto desce até nós, atraída pelos meus ecos. Conforme a esfera se aproxima, as crianças regressam para o ventre quente do deserto e meu duplo foge pelo plano selvagem, improvisando direitas e esquerdas. A pedra-lua rotaciona atômica sobre o pesadelo que se esvazia, com mais liberdade que aquela outra – a pedra com penas, a que me espionou até os confins desta terra de fatos dubitáveis. Vejo a pedra sem asas se debater, desvencilhar-se de nossos quereres, saltar para o infinito como noiva depois da aliança, leve apesar da brancura pesada. E imagino, antes de afogar este sonho na areia, o que ela me diria se, como um duplo meu, se passasse por mim, quatro vezes animal e apaixonada:

O bicho que, em seu canto, desarma o medo como esporte
Não brinca de fugir por asas de anjos divinos ou por dívidas de morte.


Volto para a praia do começo do mundo, mas sei que ainda estou no fim dos tempos. Sei que tenho uma missão a cumprir. Sei que devo esperar. Sei que devo receber o mistério. Não sei como sei das coisas. Tenho medo da verdade. Prendo a respiração até ficar cego e cair, pouco depois de avistar um navio aportar, espectro entre brumas.

Senhor deste mar novo, abra tua terra, recanto da dor.
Senhor do mistério-ovo, prepara tua guerra, teu canto de amor.


Avisto meu guia na beira da praia, sob a sombra de um navio suspenso. Reconheço a mesma roupa de tiras e trapos pretos, o mesmo cabelo girando no vento. Rezo baixo: ELE NÃO VAI FALAR COMIGO. Eu sei que estou aqui só para espreitar, sou como ave de rapina. Sei que ele tem uma missão que devo vasculhar. Vejo seus olhos calcularem calmamente o mapa desta terra, meu sonho. Ele veio para nos cantar um nome, eu sei, mas pressinto que caiu nesta praia como prêsa fácil, pronto para abandonar tudo. É a liberdade que chama – é o que seu sorriso preguiçoso parece dizer. Entretanto, flagro seu olhar ser capturado por uma visão maior. Vejo a boca que retinha firme um sólido ideal desabrochar-se em desejo por algum objeto. Tenho medo de olhar também, sei que se eu olhar para o que lhe cativou, meu próprio desejo interferirá na paisagem do sonho, abrindo e fechando percursos. Fecho os olhos para não sonhar, mas posso escutá-lo, com se sua voz viesse do meu peito.

Sem que eu me veja cantar, por trás dos olhos eu silencio um hino.
Eu canto o hálito de quem beijou o sonho que virou destino.


No meio do deserto, encontro-nos na monumental miragem de um vale verde, onde os contornos dos montes mais distantes desfazem-se em tempestade de areia. Sentada numa pedra, retida entre as raízes expostas de uma árvore cheia, a visão do amor olha para mim. Ela, a que veio do estrangeiro. Interfiro dizendo: VOCÊ! Serpentina, ela gira-se - ombros para dar - e olha para mim, mesmo estando recostada nos braços recatados de meu guia, que entregou o rosto na nuca forasteira. Estranho a familiaridade de sua beleza de estrangeira, os duros cabelos negros, a fria pele branca, a arrogância bruta do nariz, as sobrancelhas de cavaleira no horizonte selvagem, o pescoço forte de juventude pronta, a boca de princesa protegida quando sai para se perder pelos corredores da noite, morango furtado. Sinto o cheiro da paz entranhado em sua carne, e olhos, sim, olhos de promessas e desejos conciliados, olhos de fim da guerra, de fim dos tempos – olhos em mim. O sonho destilado em hálito paciente. Quero cegar-me para escapar da traição, mas o tempo acabou: um enxame de abelhas invade o sonho de mel. Envolvendo-nos em coro hipnótico, paralisam nossos movimentos, deixando-nos só com o pavor do que virá. Este terror, amplificado num efeito onírico, parece anunciar o nome da morte. Meu desejo, se ainda há algum, não consegue mais interferir. Um ondular delirante, que antes descrevia o seio da estrangeira, agora ocupa a espinha de uma serpente – ser mais íntimo do útero da terra. Aproxima-se dela por trás e não posso fazer nada. Sou pacote flácido. Enquanto isso, o belo guia, que antes cantava para abafar as ondas do mar, agora só excita a ira das abelhas com seu cego grito de dor. Ela sabe que não podemos salvá-la, sua respiração é de perdão, chora nossa miséria sem lágrimas. De uma curva a outra, falseando para não errar, a serpente chega à picada fatal. A estrangeira tomba e eu, chocado diante do corpo daquela de quem sempre precisei e que conheci tarde demais, não recolho forças nem para cair. Sincronizados à queda inesperada, todos os frutos de todas árvores do vale verde explodem sanguinolentos no chão. Absurdo, um cu imenso abre-se no seio da terra. Prendo a respiração para fugir do rasgo de miragem, mas caio logo atrás da estrangeira. Enquanto caímos, ouço o pranto do guia se distanciar em forma de verso.

Fresco filho do sol, eu cantava para completar a vida,
mas a vida calou no amor e o amor calou meu canto.
Agora sou servo dos ventos que ecoam anônimo pranto.


Cada vez mais distante, a abertura do cu gorgoleja ultrajante para o céu como a garganta do diabo. Se eu pudesse desejar algo antes do fim, diria: OLHE PARA MIM, ESTRANGEIRA! CAIA NO MEU DIALETO! Agarro-a com tudo que me resta de corpo. Eu estranho, afinal, por que eu, que apenas interfiro neste sonho guiado, agora sonho que esta outra pessoa é o maior, mais alto e mais antigo dos amores. Sei que fora do sonho não há ninguém assim. Por que não digo o que penso? Porque a queda é mais que humana. Ao cair, desaprendo mistérios, perco a força do abraço, sinto o corpo dela pesar mais sobre mim. Procuro seu olhar urgente. OLHE PARA MIM, ESTRANGEIRA! Suas pálpebras caem e, sob um último fio de luz, eu vejo olheiras negras serem irrigadas sob seus olhos, como cem anos de devassidão. Agora, o silêncio frio da escuridão total e o cheiro de esgoto. Seu corpo esfria, mas reage com esgares esparsos, lutando contra o fim antes da hora. Minha vida age só, retendo um sentimento em carne desfalecente. Virando séculos, não sei se continuamos a cair ou se flutuamos. De repente, do fundo tedioso da escuridão, começo a ouvir um barulho de panos batendo contra o vento. Sinto o roçar de um couro grosso e não posso negar: são asas gigantes de morcego. Fico quieto para ver se passa, mas sei que não acordarei. Sei que não largarei da estrangeira, nosso abraço fundamental é a única proteção possível. Sei que devo me preparar para o fim, mas não sei o que fazer e meu corpo não reage. Abraçado, sinto-me mais só do que nunca. Por que me foi dado um segundo para pensar? Sonho não se pensa, pesadelo se escapa, mas o enredo de meu amor louco continua. Um jato de chama púrpura queima a escuridão e vejo uma mulher de traços finos, verde pálida, sinuosa, olhos de ressaca. O jato de fogo luxuriante que ilumina nossos corpos sai de sua boca e modela-se por sua língua, que ricocheteia em êxtase. Imponente, uma única serpente negra desce-lhe raiz pelo crânio, como erupção às avessas. A cabeça da serpente se ergue e inclina até mim uns familiares olhos vermelhos, antes de exibir as prêsas de cristal turvadas de sangue por dentro, horrível transparência venenosa. O ser permanece no êxtase como se chicotadas de prazer o percorressem de cima a baixo. Por um momento eu duvido de que esta visão demoníaca valha continuar o sonho. Mas sei que se duvidar do monstro, também terei que duvidar deste abraço definitivo com a estrangeira reencontrada. Terei de acreditar que é apenas um sonho de amor. Assim, ao invés de duvidar de mim ou do inferno, prefiro desafiar o sonho a me derrubar em seus descaminhos, tornando-me quente para os desejos. Então, como se a força dessa fé torta tornasse mais nítida a monstruosidade que nos cerca, ouço a voz inumana da cabeça de cobra sibilar acima de seu altivo suporte humano:

Soberbo! Tu duvidas da queda e, como carcaça, a fêmea descarta!
Egoísta, abandonas com medo tua crença de amor e atira-nos o lixo...
Não é o amor que te morre nos braços como coisa farta,
És tu que não se vale, agradece ou rebaixa. Sê logo um bicho!


E furiosa ela sobe espumando sua chama funérea. Outra morcegóide surge do breu à nossa frente. De seus ouvidos saem duas serpentes que, ao redor de sua cabeça, disputam seus jatos musicais como fogo e gelo. Entre ofensas, elas gracejam perguntas e respostas uma para outra, encenando minha própria desdita:

Será de amor ou de medo o abraço dúbio deste amante?
- É ciúme! Teme que lhe vinguem o roubo do precioso diamante.
E que amor é esse que se apega como ave de rapina à carniça?
- Se fosse do mais alto, traria um canto do céu. É muda cobiça.
E que outras nódoas este aí imprime à bandeira branca que ostenta?
- A inveja do ladrão de sonhos, que não se arrepende nem se contenta.
E ele deverá fugir sem fim ou pagará o perdão em moeda?
- Que fuja de seu rancor, ressentido da inocência antes da queda.


Com uma das cabeças de cobra mordendo a outra, o ser nefasto arrasta suas asas para longe de nós, deixando–me novamente com a escuridão da queda e da inconsciência da amada. A nossos pés, pequenos grãos de luzes vermelhas começam a piscar. De repente, sob um comando secreto, centenas de pontos se acendem de uma vez, revelando-se como olhos atentos de finas serpentes, emaranhadas na cabeça de uma trigêmea das outras duas. Mais robusta do que suas irmãs, esta parece ter domínio total do próprio corpo, mantendo-se rija no ar, com exceção dos cabelos revoltos que enroscam múltiplos idiomas. Mas, como se eu estivesse próximo de adivinhar-lhe o mistério que a faz assim, ela retorce um espasmo violento e as serpentes alinham-se paralelas, hirsutas, curvando-se juntas em direção ao meu olhar, enquanto que, inversamente, cada parte do corpo da mulher parece agora obedecer a um desejo distinto, possuído por impulsos contraditórios. Espero o que tem a me dizer.
Que esperas que eu diga que case bem com tua loucura,


Se teu orgulho é defender um idioma próprio a que chamas amor?
Palavra repetida, obsessão, paranóia – onde te queres mais louco?
Não notas que o apego de um abraço não te põe na tarefa deste amor.
Então, que teus caprichos não coincidam tampouco com os do inferno,
Enquanto numa só carne não durar teu gosto moderno.


CHEGA! Eu quero gritar, mas meu corpo imóvel só consegue observar os cabelos pretos da estrangeira crepitarem das pontas até a raiz, como velas romanas sobre o crânio inconsciente. E sinto seus dentes descolarem da boca apertada em meu peito. VOCÊ ESTÁ VELHA!, eu digo com o pensamento. E ela responde: VOCÊ TAMBÉM ESTÁ VELHA, MINHOCA COVARDE! Não sei qual de nós dois é mais ilógico. Isto não é sonho que valha a pena. Quero acordar, mas meu desejo não interfere. Então, a queda se interrompe e paro no ar sem largar a coisa semimorta. Em suspensão, começo a questionar: ISTO NÃO É AMOR, NEM SONHO! O QUE É ISTO?! E como se eu tivesse previsto a resposta, ouço sem surpresa uma voz cristalina, não sei se de mulher firme ou de homem cheio de segredos. Primeiro, o ser indefinido limpa a garganta, depois, um escarro estoura no ar e cai na descida escura diante de nós. Andrógina, a voz se articula.



Não desejo discordar, mas se duvidas do próprio sonho, se não concordas com o próprio desejo, por que não te parte daqui e mata de vez a miragem que ora te fala? Até onde vai teu vício de amor para que tua boca, repleta, não escolha mais o corte fino da razão? Que parte de ti escolhe o que já quer se esquecer? Que força em ti reúne esta ilusão tamanha que te carrega até os limites da morte de toda carne iludida? Onde estás, enfim, se não se instala nem na ilusão do amor nem na ilusão do inferno, alma morna? Que deus sem palavras acessa o teu peito agora? Que versos despejas contra a fonte vertida da fé controversa? Reze ou saiba! Cante ou cale! Durma ou caia! Ame e morra, cobiçoso aborto de abutre!


Eu morro. Acordo noutro cenário, vivo e só. Duas pernas livres. Mas é ilusão, o sonho é o mesmo, o pesadelo é que mudou. Antes eu caía, agora desço as escadas circulares de algum poço úmido que não consigo enxergar. É melhor apoiar-me na parede à direita para não cair no fosso. Sem nenhuma razão, meus instintos me guiam pelo rastro improvável da estrangeira. De repente, sinto que os degraus transformam-se em rostos que pisoteio na espiralante descida. Ouço vozes familiares: ‘NÃO PISA NA MÃE, FILHO, EU E SEU PAI NÃO NOS SENTIMOS MUITO BEM HOJE...’, ‘É ASSIM QUE VOCÊ RETRIBUI TUDO O QUE FIZEMOS POR VOCÊ? PISANDO NA CARA DE SEU PRÓPRIO PAI?’ Rostos de amigos e amantes entoam em coro, conforme piso em seus narizes e bocas e olhos: EU SÓ QUERO O SEU BEM... NADA ALÉM DO SEU ÚNICO E EXCLUSIVO DIREITO... Sinto ameaças de perigo me inflamarem o corpo. Preciso me concentrar no caminho. Sei que já faz horas que desço degraus e a rotina da descida não me tira do medo. Ao invés, só mescla mais vertigem ao pressentimento de saber que o que virá será pior. Ouço-me justificar o anúncio frio das horas: É SÓ FOME! LOGO VOU ACORDAR E COMER. Ouço passos na escadaria acima, primeiro lentos, pesados como fardo antigo, depois cada vez mais determinados. Aperto o ritmo e minhas pernas tremem quando dezenas de pedras são atiradas em minha direção, como se uma multidão se reunisse para me apedrejar, mas ouço apenas os passos de dois pés mais a voz de uma única grande boca.

Se fome é o nome que dás ao último refúgio de tua fraqueza de amor, queira perdoar-me, mas devo dizer que é de sentimento que tu morrerás, sem ter braços para dar o que só se dá com pão.


As pedras que me atiram tornam-se rajadas de pão que me atravessam sem ferir. Viro para saber quem são as pessoas que me pretendem arruinado e vejo um único ser com dezenas de braços velozes como raios. Umas mãos seguram sacos de trigo, enquanto outras o moem. Outro punhado de braços amassa o trigo com cuspe e escarro que o bicho não pára de fluir. Acima da cabeça, braços sustentam um primitivo forno de pedra. As outras dezenas de mãos desempregadas, implacáveis, apressadas, furtam o conteúdo do forno como se competissem pelo golpe final que me tirará a vida. Atiro-me no fosso para ganhar a morte de outro jeito. Não quero acordar antes de arrebentar no chão. Se há um resto de mim, este resto é cansaço. Em queda livre, a matéria de meus dias cai pesada, esquecida do amor, esquecida do inferno, esquecida do sonho. O que resta de mim é sonho que se entrega antes da morte. Fecho os olhos e somo minha escuridão com o breu lá fora. Shhh. Ohhm. Zzzz.

Acorde! Volte para cá! Não é para estar aí agora!


Ouço a voz de meu guia como uma interferência distante. Abro uma fresta de olhos e verifico que estou deitado de bruços, metade da cara num cimento liso, branco, de que são feitas placas quadradas que revestem a eternidade vazia de uma planície. Na distância entre o que seria o céu e a terra, um sol brilha azulado, como fogo morto. Acima, a transparência sem ar nem nuvens que reina entre as estrelas. Não é a Terra. Não é outro planeta. Não é meu sonho, nem outra manifestação onírica. Não é outra dimensão. Aqui o tempo só existe em mim. Lá fora é um instante, ou algo entre um instante e outro. É simplesmente o Deserto de Lugar Nenhum, plenamente branco, vagamente futurista. Sem abrir muito as pálpebras, vejo à distância o que parece ser uma dessas feras primitivas que habitavam meu sonho infernal de segundos atrás. Ou foram milênios atrás? Sim, um descomunal dragão negro de várias cabeças – sete, treze, algum número arcano – aparece de longe neste lugar sem história. Uma das cabeças cospe um vigoroso jato de lava que forma uma rocha sólida no ar. Outra cabeça envolve a rocha meteórica num fogo verde que incandesce até ofuscar. Um jato de gelo apaga a luz e sua fonte, revelando um claro cristal. Uma cabeça se estende e derrama acima da rocha cristalizada uma espécie de fel que corrói e modela todo o interior do elemento, deixando-o como uma casca de ovo. Então, numa composição sinfônica, cada cabeça do dragão soma uma nota de seu veneno no recipiente mágico. Meus olhos pesam, mas antes de se fecharem posso ver – será isso mesmo? – formar-se no interior do cristal uma mancha rósea de luz que poderia ser alguma nova espécie em gestação, ou mesmo todo um novo universo sendo gerado. Ouço uma voz em minha cabeça.

Nem obra de deus nem dança do diabo – sou anjo de ninguém.
Nem homem, nem fera – nem eu me sonho no além.
Sem ser eu, sou demiurgo – por enquanto um nome teu.
É domingo e é descanso – olha o fogo que ninguém te prometeu.


Volto para a escuridão silenciosa e quente. Esqueço. Nada acontece. A voz do guia me chama.


Acorde! Volte para cá!


O mesmo frio na barriga de antes. Volto a cair na escuridão. Em meus braços, reencontro a estrangeira. Toco seu rosto: o mesmo viço da flor de suas horas, as pálpebras caídas, minimamente sensíveis, as narinas pulsantes, as almofadas quentes e úmidas dos lábios. À nossa frente, uma forma animalesca alada, uma junção apressada de vários animais em constante mutação. Uma pata de leão sangra para transfigurar-se numa serpente e, numa outra deformação, um braço humano força para nascer fera afora. Regendo a besta disforme, três cabeças sem rosto definido, massas liqüeformes de olhos, bocas e narizes nadando pela carne em efusão. Num sopro de quimera, as três cabeças se transformam nas trigêmeas morcegóides, a primeira com uma serpente, a segunda com duas, a terceira com suas centenas. Uma após a outra, porejam seus venenos em palavras.

- Sonhe então... Amolece tua carne como prêsa fácil!
- Perca-te no passado... Vive nos tempos de tua dor!
- Carregue o cadáver do amor pelos teus campos sem direção!


Antes que eu respire, as três cabeças se liquefazem. A cabeça do centro volta a vibrar seu elemento nauseabundo e assume a face cadavérica de um ancião. Restos de fios brancos caem de seu crânio pestilento até os ombros. De garras cravadas em feridas no crânio, um gordo corvo retinto de preto olha para o infinito. Sob os caídos olhos esbranquiçados, vê-se que o velho enxerga atrás da escuridão. Na boca, baba algum lamento cansado, algum fel que não se cansa de destilar séculos abaixo. Ainda que disformes, consigo reconhecer as outras cabeças que lhe fazem côrte. A da direita, pelo que intuo, é a mais bela e sombria das rainhas. O rosto à esquerda pertence ao líder que chora pedras. Mais não sei. Não ouso olhá-lo, mesmo de face informe, mas, de olhos fechados, pressinto o horror por trás de sua boca cerrada – a garganta regurgitando imagens proféticas de todas as calamidades num vendaval de sangue e areia. Sinto um hálito fétido perto de mim. Adivinho o velho do corvo.

Se não tens moeda certa para pagar por esta travessia,
Dá meia volta, agarra-te no arrependimento e toma tua via.
Neste porto, onde acaba a nostalgia, tua indecisão não tem posto.
Parta já com tua esperança, se ainda esperas ter um rosto.


E o bicho quimérico se desvira no ar, sumindo-se no seu resto de luz. A estrangeira também some de meus braços. Não sei se fugiu de mim, se foi raptada ou se nunca existiu. Não sinto saudades, nem sua ausência em meus braços, sinto apenas a suspeita de que, se cair, toparei com ela em alguma paisagem. Ventos gelados começam a revirar meu corpo. Tapas invisíveis, indolores, fazem-me girar na queda. Glóinnn... Acabo de cair! Silêncio. Descubro: sob minhas costas, uma espécie de superfície plasmosa absorve o impacto. Fico alguns segundos parado, na captura de algum indício onírico que me faça desiludir a tela deste sonho. Nada acontece. A superfície que me acolheu parece perfeitamente reta, uniforme. Olho para cima e percebo a escuridão ser invadida por emanações luminosas que vêm de baixo do chão que me protege, como se eu estivesse sobre um teto de vidro numa pista de dança. Viro para espiar. Meu coração acende e me põe de quatro patas para vislumbrar melhor. À minha direita, um rio tão largo que não se vê a outra margem. Das águas caldulentas, viscosas, escuras como o pior dos esgotos, emergem continuamente milhares de pedaços de corpos humanos que incham em contato com o ar, ganhando dimensões monstruosas. Garras mecânicas, feitas ao que parece de restos tecnológicos de diversas eras, recolhem os restos de gente, dobrando-se num sinistro balé aquático. Entre esta dança infernal, na superfície tempestuosa das águas mortas, grandes bolhas de gazes sulfurosos explodem chamas de todas as cores, conferindo uma estranha iluminação de festa ao espetáculo agourento. À minha esquerda, vejo uma explosão gigantesca abrir um buraco numa espécie de paredão escarpado que desenha a única margem visível do rio. Miraculosamente, as lascas explodidas reúnem-se no ar, girando rápidas num tornado organizador de esferas. Em seguida, umas após as outras, são devolvidas à cratera aberta de onde partiram, organizando, de lá até o imenso rio, uma espécie de rampa suspensa que recolhe uma torrente de sangue jorrado do mesmo buraco, como cachoeira maldita. No alto da queda, vejo despontar uma embarcação metalúrgica, pequena, enferrujada. Questiono-me sobre a força que a faz flutuar, mas esqueço-me quando consigo distinguir os pés da estrangeira, tatuados com sortilégios divinos, deitados no leito ferroso da pequena barca. Em pé, fazendo mover estranhos remos feitos de garras animalescas, aparece o velho raquítico com o corvo na cabeça. Tento cravar os dedos na superfície transparente que nos separa. Anestesiado aos horrores, o velho rema devagar, escorregando seu transporte pela trilha de sangue suspenso. Penso que vão continuar seu caminho pela superfície do imenso rio, e espero para ver que rumo tomarão. Mas surpreendo-me quando as águas do rio mecanicamente se cortam em duas partes sólidas, deixando escorrer pela fissura aberta uma rampa que desce profunda como um rio subterrâneo, escondido dentro do rio maior. A estrangeira e seu guia descem pelo caminho estreito, sem serem tocados por nenhum outro infortúnio, até onde meu olhar penetra a escuridão que lhes acolhe sem pressa. Ouço a voz da estrangeira ressoar no espaço, cortante.


Ai... Essa coisa de ser profundo me dá preguiça. E eu tenho coisas a fazer. Acender um cigarro, por exemplo. Já me basta o vício. Eu fumo para não ter dor na consciência. Sou podre e pronto. Estou aqui porque quis. Não agüento essa gente que se atormenta. Prefiro me preocupar com a floresta amazônica ou com a África. É mais bonito assim; a beleza faz cada vez mais sentido do lado de fora. É uma vontade de pôr a cara à tapa que só passa com cigarro. O resto de mim é desejo e explicação barata. O resto de mim é Deus. Gosto de conhecer as pessoas até um certo ponto. O ponto do orgasmo, digamos. Não dizem que você só conhece uma pessoa quando a faz gozar? Não devo nada a ninguém. Não sou dessas pessoas que pedem desculpa à vida depois do gozo. Continuo no ataque. A lei é a sobrevivência, isso se aprende neste lugar. Não tem tempo pra se arrepender, remorso é luxo de quem pode. Prefiro amar. Do meu jeito. Assim. E não venha me interromper. Seja livre lá fora se esse espaço não te cabe. Eu fui pra uma pista de dança, onde cabe todo mundo.



Entendo que fui eu que a perdi, lento, mole, perdido nas profundezas. Entendo que fui eu que inspirei a atitude egoísta que ela agora me cospe – e me encolho. Entendo que há alguém escrevendo este sonho e que este alguém só quer rir da minha cara. Meu peito escurece. Quero cair e não posso. Quero chorar, mas rezo palavras desconexas: eu amo, eu amo, eu amo... Quero dizer-me: é só uma coisa no coração do sonho... Mas um fluído dolorosamente real escorre por dentro, dissolvendo uma víscera na outra e não sei mais o que é coração, o que são pernas e o que é sonho. Estala na memória uma imagem da estrangeira nua. Sinto-me óbvio, idiota, mortal. Sinto um desejo inexorável irradiar da pele mais fina até os ossos do punho, sem se sustentar no coração. Cerro os dentes com força eqüina e sinto os olhos escurecerem sob a ação irreprimível dos puxões desse prazer insatisfeito. Aqui não! – quer gritar meu corpo teso. Seguro o desejo nos dentes, nos punhos, no ar e a coisa escorre sem piedade. Animalizado, sou escorrido para uma imagem da prêsa morta, intocável, retida em olhos apertados. Percebo a ilusão e rezo: ILUSÃO MEU DEUS! E o prazer desiludido transforma-se em pura dor cinzenta, ressentida de uma lembrança já mofada da estrangeira, a sombra de um sorriso obscuro atrás de meus olhos cegos, crispando-me numa vergonha humilhante e revoltada. Sem forças para negar o universo e suas leis, sem mistério para consolar, sem imaginação, minha garganta engole um seco POR QUÊ?! e meus olhos se turvam diante da visão idiota de meu inferno, lá embaixo, separado de mim com seus demônios diminutos... Sei que sonho. E esta certeza, ao invés de me consolar, só imprime mais realismo ao meu desespero de estar num turbilhão que nem atormenta nem salva. Fico lucidamente só com o desequilíbrio do meu corpo. Sobram-me sentimentos, humores, excessos. Sobro-me inteiro, massa disforme. Falta-me a estrangeira, molde primitivo do meu corpo. Privado da posse de meu ser até então acontecido, sou atravessado por uma perda ancestral, como se eu me descobrisse pobre mãe solteira de um ser natimorto. E, emperrado num instante desse pesadelo, desisto de reagir pela luta ou pelo luto e peço a não sei qual deus para me deixar rastejar em paz.

1, 2 ... 1-2-3-4
É hoje só, minha voz está longe de mim.
Ela vai por aí, pelos cantos foge do amor, foz do meu fim,
Mas aí aonde vai tua voz, parte vôo em qualquer canto.
Hoje vou seguir a minha voz, mas só se ela for por aí,
Se lavar o abraço, se levar um compasso,
Ser um silêncio como és pra mim.


As palavras, se são palavras, vêm do alto, de onde um dia houve luz. Não sei se é para mim que cantam, mas amanso. E tenho a revelação: é ele, o cantor dos mil e um sonhos, o navegante do fim dos tempos, o amante do amanhã, meu guia. Ergo-me no teto transparente de meu inferno para ouvir melhor.

Não vim aqui pelo amor, vim pelo seu nome-pessoa.
Amor é palavra que tem pressa – e você é promessa.
Vim aqui para deixar o amor para trás e lhe trazer em seu lugar,
Vim para lhe disputar perante a morte, durante a sorte que dispor.
Meu sonho é seu, pode ficar. Eu fico de sorriso fácil, pode contar.
Hoje invoquei o sol para secar as lágrimas, e elas eram pobres rimas.
E o sol - ah meu pai! - mandou a lua em seu lugar – irmã mimada.
Ela vem lembrar o que é secreto no que há de eterno:
É o que muda mas resta, o que em ilusão alguma está.
Tiro a máscara e me resta você, mistério profundo e profano querer,
Buraco aberto e triângulo reto, você sem nome, você com fome.
Hoje vim pra te tirar de onde ninguém sabe que está.
Meu passado não escolhe o que guardar como um rei, eu sei,
Mas como um guarda ele recolhe seu sorriso, assim maciço,
E prometo nunca mais, nunca mais me suspeitar,
Nem alimentar o que não vejo, ser indeciso, sorrir canino.
Não há truque algum, a mágica é caseira, começa no desejo,
conte até um.
Criança, o caminho é um só, mas é longo, é bom lembrar,
E este hino é só nosso começo confortável, o que vale arriscar.
Olhe para mim e suspire uma prece paciente, ciente,
Que eu assopro essa sombra para longe de nós, vá em frente.
Hoje acordei com os girassóis pedindo clemência ao sol e pedi paciência,
Paciência para guardar o que nos dá fome e prazer,
Paciência para lembrar o que o sonho quer esquecer,
Paciência para revelar o santo olho que me fez você,
Enquanto esqueço meu lugar e desço certo, reto,
Enquanto inspiro um espaço que meça tua alma,
Para ser alguém, um só alguém,
Que saiba cantar quando doente e calar no sol poente.
Um só alguém, vejo o sol congelar as infelicidades de todos os séculos,
Olho para cima e esqueço o que teu olho trai, minha mais que querida.
Eu e você podemos parar pra ver se a gente mente, se não desmente,
Podemos parar até nevar sangue, nem que seja eternamente.
Paciência, minha vida.


Concentro-me na voz como se ela viesse de mim, e espanto-me quando sinto minha boca mover-se pela voz do guia: PACIÊNCIA... E meu corpo acorda com pequenos estalos nas juntas, os membros saltam no ar, a nuca tomba, a respiração desata. Estou no corpo de meu guia, forte, equilibrado dentro dos nós e ataduras da roupa, descendo pela escuridão, mal percebendo as presenças das feras que me assustaram minutos ou milênios atrás. Todas as bestas agora abaixam a cabeça com humilde consentimento. Sinto o pulso firme do coração do guia, agora meu, jamais arrebatado por coisa alguma que não tenha o nome da estrangeira. Pulso: PACIÊNCIA ESTRANGEIRA, PACIÊNCIA... Finjo que não vejo o inferno, finjo que o sol amanhece em silêncio, e canto mudo.


Acorde do rio dos mortos, mulher da minha vida! Eu vim pra lhe trazer de volta! Não sou mais um, trago o sol sonhado da manhã, o trabalho de uma canção, a imitação de uma asa. Acorde com paciência, estrangeira. Venha! Traga só a paz e a ciência. Eu espero, não se esqueça... Esta noite eu desci aos infernos tentado a só fazer o bem. E foi difícil enxergar com tanta descrença ao meu redor. É como ficar parado numa pista de dança, e você sabe que eu não gosto disso. As caras não mudam, só os dias. E eu não vou mais por aí, porque é você quem eu quero. É só isso que faltava cantar: eu te quero. Sim, eu repito, eu insisto, eu irrito... O que é eu não sei, ninguém sabe, não dei nome. E só acredito se você despertar para mim esta noite, se não for tarde demais...


E o chão transparente que dava base ao meu corpo indeciso se parte em cacos e, incorporado ao coração de meu guia, caio em direção às águas do rio infernal. Não tenho tempo de olhar ou me preparar. Choco-me nas águas pretas. Sinto os cabelos de lânguidas almas de amantes lamberam o meu corpo. Ouço uma espécie de riso fino que esconde um choro e um choro grosso que esconde um riso histérico. É ela. Entre as águas lodacentas seu espírito murcho e pálido aperta a boca e firma os olhos, buscando da morte uma expressão que me repreenda pelo enorme atraso. Colo suas costas em meu peito, firmo minhas mãos em seu coração e aumento a velocidade de nosso nado sem rumo. Canto.


Não chore, estrangeira... Da escuridão sem breu do caos, onde só se destruía o indestrutível, nasceu o impossível, uma primeira pedra, a primeira criação, o primeiro e mais duro ato de amor, sem não, só canção. Não chore, estrangeira... Antes dos homens, era só essa escuridão sem forma onde caímos esta noite. Só depois a noite veio para ouvir nossas preces e sussurros e embriagar nossos caminhos. Chore, grite e berre se eu não fizer acreditar que é do céu o recado que trago suspirado. Somos apenas o que muda. Mudar é calar.


Chegamos ao fundo do rio. Paramos de nadar. Por um segundo, meu coração bate compassado com o resto de meu corpo, meu corpo com o corpo dela, seu corpo com o seu coração, nosso abraço com as ondas subterrâneas do oceano. Abaixo de nós, no fundo da areia movediça, revirada de pedaços de corpos e pálidas almas de amantes, abre-se um ralo de onde desponta uma enorme língua de serpente, que suga os corpos sem vida e as almas que gritam, choram e riem. Somos tragados.

Deus nos leve! o sol não nos esqueça esta noite!
a noite tenha piedade e nos aqueça!
Quando nesta casa entrei eu salvei a luz do dia.
Quando nesta casa entrei eu salvei minha Maria.
Vida. Morte. Verdade. Caminho duplo.
Cresço no céu estrelado e pago a sorte na terra farta.
Não chore, estrangeira!
Em sua boca mato a sede que matou o meu passado,
Em sua boca tiro meu canto do mundo,
E me arrependo dos assassinatos que nunca cometi.
Durma agora. Conecte-se. Pulse.


Caímos num redemoinho de corpos podres e almas viscosas. Eu a seguro firme pela cintura, mas ela se debate em meus braços, imersa no espetáculo de seu próprio medo, desconfiada até de si. Recebo tapas e socos. Ela consegue se soltar, mas agarro-a pelo cabelo, puxo-a pelo ombro e enlaço minhas pernas nas suas. Somos arremessados para uma praia. O céu está estrelado, com estranhas manchas avermelhadas abertas aqui e ali, no fundo das quais pulsam entorpecidas cintilações escarlates. O vento revira a areia com fervor místico. No fundo da praia, a selva selvagem - mata virgem, primeira morada – úmida demais, velha demais, fétida demais. Colocamo-nos em guarda, prontos como guerreiros, lado a lado como irmãos, próximos como amantes. Do fundo verde, chegam grunhidos do que parece ser uma matilha monstro. Uivos, latidos e rosnados invisíveis rodeiam uma velha que sai da mata empunhando a força mágica de duas enormes tochas. Quando chega à areia, o toque de seus pés faz com que o árido elemento se levante ao redor, aperfeiçoando cabeças de cachorros e lobos imperfeitos que clamam sua presença, uns raivosos, outros mansos. A velha vem: nua, peitos murchos, um tufo de cabelo branco no alto da cabeça, uma lua crescente pintada no meio dos olhos, as unhas vermelhas. Protegida pelo fogo, ela alterna gemidos, gritos surdos, urros apressados, trinares estridentes, palavras enterradas, enraizadas, mágicas fórmulas e despreocupadas incoerências. No meio de seu próprio caos, ela formula algum gesto displicente, como um repúdio a uma moscaria, e faz desaparecer os cães de areia.


Sai daqui, maldito pum da encarnação! A hora não é ainda! Os meninos já chegaram e eu não trouxe saia pra vestir. Pode vir, aventureira, a rainha quer lhe confiar. E você, moço bonito, falou, falou, falou pra quê? Abracadabra tua trilha, apressa o caminhar. Se parar de andar, eles mordem, igual à ratoeira pra bolsa de mulher que eu ganhei do presidente. Eu já falei, eu falo todo dia pros meninos: é melhor vacinar do que ter desgraça. É de graça, não tem fila e só dói a bunda. Xô daqui, bunda murcha! Eu tenho protocolo de acesso no DNA, autenticado no cartório de Trás-das-Pestes. Quem me segue ganha brinde, mas comida, cada um traz a sua, que eu não sou rica pra vagabundo. Esse eu não deixo nem recolher meu lixo. Prefiro guardar na bolsa e prender no cabelo! É xô! xô! xô! Encarnação maldita do fedido! Vocês dois me sigam, quero grudar vocês no meu livro da juventude, antes que escureça. A portona é pertinho. O caminho é comigo. Xô! Xô Xô! Infeliz cruzamento do destino!


De repente, num corte de continuidade do sonho, vejo-nos todos já dentro da mata. A velha vai à frente, abre o caminho com suas tochas, derrete as folhas e os paus como se fossem plástico. Atrás dela, seguem de mãos dadas a estrangeira e eu, em meu corpo original. De dentro de meu guia, eu assisto à cena como espírito flutuante sem braços ou pernas. A velha segue murmurando impropérios, lamentos, sermões e gemidos indecentes. Vez ou outra, gruda um papel numa casca de árvore e repete: PARA NÃO ESQUECER... Atrás dela, meu corpo e a estrangeira parecem não se importunar, seguem trocando afagos mínimos e lúcidos sorrisos silenciosos. Eu, incorporado no guia, saio recolhendo os bilhetes que a velha deixa em nosso rastro. Leio o primeiro em voz alta, sem ser ouvido por ninguém.

“era uma vez, era um desejo de boi”
dois tipos de queijo: 2 beijo, 2 tiro, 2 foi
1º – uma cerveja pro ano de depois
2º – um maço e um fósforo pro dono da foice


Como se a incoerência dos bilhetes ocultasse algum encanto mágico, vejo brotar, de onde tirei o primeiro, a silhueta negra de um homem que se levanta da sombra da árvore puxando uma mulher pela cintura. Assisto um contorno de mulher forçar pernas contra um forte tronco de homem, enquanto ela retém a cabeça dele em garras de gralha. Pego tudo pelo canto do olho, pois as sombras parecem fugir de meus relances, e retornam para as raízes de suas árvores tumulares. Sigo até um próximo bilhete.

Sinto saudades do tempo que te conheci...
“Amadamante espera”, 2 kg de feijão,
½ saco de sopro no ©


A sombra de uma mulher gorda aparece sentada no galho de sua árvore, batendo os pés no vento frio. Esconde-se rápida quando volto o olhar. Passo. Arranco um terceiro bilhete e imediatamente vejo cair desta árvore, a mais negra das três, a sombra de um pequenino casal de mãos dadas que se atira à minha frente e se dissolve na água brejenta. Leio.

ELAELE Um só beijo Um só vento Um só cabelo
Uma só ponte Uma só morte Uma só fonte ELELA


Abaixo a cabeça para esquecer, para sair do sonho triste. Então sinto a mão fria da velha, que estava tão longe, agarrar o meu braço por trás e soprar no meu ouvido, as unhas cravadas na carne.


A hora bateu! Não tem mais jeito, não tem mais fim... pum-tan-tin! Gostas de ver o casal, ela cabe no teu colo... olho-falo-como! Muita pressa pra chegar, muita prece pra voltar... vesgo-doisdo-záz! Pra achar tem cuspir, pum-xô-traz!


E antes que eu me arrepie com o transe louco de suas palavras, vejo um jato negro sair de minha boca sem dor ou sensação alguma. O vômito negro que sai de meu estômago corrói o chão em pequenos buracos que alargam cada vez mais e se unem num buraco maior, revelando uma espécie de céu enterrado, noturno, tomado de grossas nuvens carregadas de chuva. Temos pouco mais que um pé de chão para nos manter sem cair pelo céu que a terra dessa mata úmida encobria. Quedas abaixo, eu vejo um grande lago escuro de onde partem – ou para onde chegam – cinco afluentes sinuosos, um deles de fogo. Respiro torto com o presságio da queda final. Perco o equilíbrio e caio. Não sei se estou só ou se posso contar com alguém que vem logo atrás de mim, sombra de minha queda. Viro para gritar pela estrangeira e não beijo ninguém, apenas a visão paralisante da coisa imensa que me cuspiu, no avesso do buraco, e que engole todo o céu deste lugar fatal. Como descrever? Uma boca maior que mil estádios ocupa aberta todo o céu deste lugar. Os lábios são feitos de carnes e vísceras humanas. Vermelhas, roxas, amarelas, milhões de fibras e tripas entrelaçadas, pulsando inquietas como vermes humanóides. Uma argamassa confusa de ossos brancos, amarelos, agrisalhados, carbonizados, amontoa-se na imitação grotesca de uma arcada dentária humana, exposta em escárnio assustador. O céu da boca é uma abóbada profunda revestida de cabeças em carne viva embalsamadas num grito de horror. A garganta escura bafora uma espécie de hálito atômico que pulveriza toda a matéria sob seu alcance, igualando tudo a um monte de cinzas desclassificadas, poupando apenas o lago imóvel e meu corpo desolado. Atinjo as águas sem choque. Em todo o volume das águas vejo surgirem lentas bolhas de ar, dentro das quais formam-se precipitadamente miragens de cidades em chamas, assassinatos múltiplos, crimes irreveláveis, que se consomem e desaparecem de novo. Nado em direção ao fundo do lago. Bolhas explodem em contato com meu corpo, interrompendo catástrofes, queimando meu corpo como águas-vivas. Consigo ver um par de tênis conhecido, preso em algum fardo, sim, conheço esta calça jeans, conheço o peito sob a camiseta preta. Reconheço a estrangeira, de ponta cabeça, pescoço dentro da areia, como eu em outro sonho – eu me lembro. Beijo suas mãos que procuram meu rosto como concha. Um ronco alto faz o sonho tremer. Sinto ela me chutar por trás e fazer gestos com a mão para que eu suba até a superfície. O QUE VOCÊ QUER?, eu grito, mas ela permanece na mesma atitude e eu obedeço. Sei que não há outra coisa a fazer. Num átimo chego até superfície e tateio a margem. A terra está quente. Olho para cima e a boca maldita sorri de lábios fechados, puxando a ironia num canto. Um amarelo olho de gato abre-se no céu e desaparece num piscar. A boca abre-se num riso despreocupado. Fala com uma voz de criança de sete anos.


Chegaste até o fim, pois. Não sabes por que sonhaste até aqui, nem o que sonhas, nem se é sonho e o que é sonho. Surdo para si, não ouvirás o que eu possa dizer. Eu sei, ninguém pediu para ter certeza de nada, e não tens olhos para enxergar a pedra que há em tudo. Ninguém te pediu fé em deus algum. E o amor é duvidoso. Sempre. E não pediste para estar aqui. E todas as preces que foram feitas no caminho agora não te servem de nada. Tua amada, onde está? Presa num sonho melhor que o teu, onde nem podes imaginar. E por ela esqueceste de tudo e de todos. Esqueceste o próprio nome. Seguiste cego para o fim da linha atrás da presença ausente de uma estrangeira. Quiseste ver a face dos anjos como se também o sonho te dotasse de asas. Pois bem, ergue de vez o teu orgulho e te esborracha no primeiro desejo que fizeres. Esta terra é seca, não tem ares para asas, não é como vossa terra, em que tendes a guerra para distração. Para não julgares que não te credito um só fio de humanidade, deixarei que escolhas livremente o fio de teu destino. Vês estes cinco rios ao teu redor: um já conheces, é o que traz os novos visitantes e o único que deságua no lago que ousaste cair. É o rio da tristeza, que ainda dá alguma esperança. Os próximos são os de tua escolha, e levam por caminhos sem retorno. O primeiro que te ofereço é o rio das lamentações, onde poderás ter a ilusão de que a estrangeira sempre te quis e que foste tu quem sempre erraste com ela. Mas se te acreditas mais corajoso, então segue para o rio do ódio, onde poderás viver na ilusão de tua inocência, culpando eternamente a estrangeira por te teres perdido. Se ambos os martírios não te parecem fortes o bastante para lavar teus pecados de amor, escolhe o rio do esquecimento, onde vagarás na paz inconsciente dos vegetais, que se multiplicam sem sabor. E se nenhuma das vias ainda te atrai, sobra-te o rio de fogo, onde o puro elemento criador consumirá eternamente tua pequena vontade humana para sempre insatisfeita. Escolhe e vai!


A boca imensa cerra-se e deixa entrever atrás de si um céu de estrelas cadentes. Meu coração quer saltar. Se isto é verdade, que a verdade me leve. O sonho treme. Não consigo sair. Vejo as águas turbulentas dos cinco rios disputarem a minha atenção. Sei que tenho que fazer uma escolha, mas não me lembro qual. Sei que devo sentir medo, mas sinto saudades. Sei que, para encontrar a linha de chegada devo me lembrar da linha da partida. Algo em mim quer lembrar algo, alguém, umas palavras. Abro a boca.

Sou filho da Terra e do Céu Estrelado, o meio é minha via.
Dá-me de beber da fonte da Memória, onde se guarda o que me guia.


E como se as palavras tivessem o dom de tornar mais firme a minha presença, respiro fundo e caio dentro de meu próprio corpo, entregue ao calor que o sonho envia. E como se uma única força rejuvenescedora passasse de vez pelo sonho trazendo novo alento, sinto-me confortado ao ver imergir das águas do lago uma bela mulher vestida de esfuziantes teias negras, boiando inconsciente na própria desgraça. Não expressaria vida alguma por baixo da pele, tingida pelo branco unificador da morte, não fosse um fremir das pálpebras, não sei se magoadas pela podridão das águas de que se levanta, ou se cansadas por algum choro ancestral que lhe teria corroído a visão nítida das coisas. Toma o fôlego brusco de quem quer se libertar das ondas de um pesadelo, mas sua voz vem de baixo do lago, confusa, liquefeita, como se cada sílaba estourasse das bolhas de ar, antes ou depois da ordem do pensamento. Tento recompor o que diz.


Ó homem, esposo meu, esta noite mudarás tua canção e tua canção mudará esta noite que nunca foi tua. Acorde para um sonho-irmão... Ninguém desce ao fim de um sonho senão para resgatar o fundo da história, a face oculta da lua, que por trás de todo olho arde. Ninguém desce até o infinito da morte, senão para imitar o sol que se despede toda tarde. Um dia, subiste ao meu encontro no cio da primavera. E eu, como retribuição, reservei-te o inverno como promessa de verão. Por que gana de amor nunca te contentaste, nem soubeste amar, ó homem meu? Este outro homem, arrogante decerto, trouxe em seu canto a conciliação da sombra com a luz, já não sabe onde dói e onde ama, por isso não lhe dói resgatar o pobre amor de outra alma perdida. Deixa que parta, que leve a carcaça da amada, se esta ainda lhe corresponder. E tu, cantor de estrelas e delírios, se tua bem amada por ventura te seguir, vossa saída é livre e nada mais vos perturbará. Se olhares para trás, se duvidares que ela te cumpre a promessa e segue, a perderá para sempre em nosso mundo e além. Mas, se sobreviverdes a vossas próprias súplicas, sereis contados entre os amantes do futuro. E de nenhum outro falso fruto de amor desejareis uma réplica.


Abaixo a cabeça. E o sonho se dissolve, deixando sobrar a meus pés, onde fora o lago, apenas um vale seco e fundo. O céu está calmo. Nos cantos do universo expandido, as estrelas explodem em silêncio. No lado oposto do vale da morte, avisto a estrangeira parada. Olha com olhos de quem não sabe o que faz ali, mas olha pra mim, enfim, único ser vivente. E olha sem olhar, sem amor ou desamor que falseie a expressão de seu assombro original. Sinto como se tivéssemos onze anos e a hora apertada nos convidasse à novidade do sexo. Sinto que na Terra predadores correm pelo deserto tecnológico no rastro da última guerra. Apresso-me. Dou um salto titânico que atravessa todo o vale e me põe frente ao hálito da estrangeira. VOCÊ VEM?, eu respiro em sua boca. ONDE É?, ela revira os olhos em dúvida. Ouço um estrondo vulcânico. Olho para trás e vejo o vale afundar-se em chamas. PARA TRÁS A ENTREGA COVARDE! PARA FRENTE O DESERTO E A GUERRA! SIGA-ME, CONECTE-SE, PULSE! Digo essas palavras e selo com um beijo, o primeiro, apressado mas bem cuidado, voraz na descoberta, mas atento ao segredo, bem acolhido em terra selvagem. Deixo meu coração num beijo de cinema e começo a correr em direção ao deserto. Pulso cada passo em direção ao próximo. Sou um sonho que canta na escuridão, sem olhar para trás. Sou o guia de minha luz forasteira que corre atrás de mim. Canto.

O segredo da sombra corre para a manhã silenciosa,
O enredo da luz tomba quem caminha e não goza.
É mais que humano o deserto que meu corpo tem que vencer,
É mais que multidão a estrangeira que devo convencer.
Se eu tivesse no estômago dois goles de sonho para amanhecer,
Eu fingiria melhor o que a fuga nem me exige ser.
Dá-me tua água, indica tua régua, dita tua regra,
Deixa-me entender que é um fraco quem te carrega.
Hoje olho para frente, eu guardei a arma para a batalha de amanhã.
Ó bem, fica rente na subida e não me tenta com alma de maçã!
A manhã expõe suas cruzes, lá vem a guerra das luzes na saída.
Aqui, dois sós...
Muda de idéia comigo esta noite, dá-me essa graça de sol,
Sou só eu agora - distante serpente.
Amanhã tua platéia estará na grande praça, diante das lentes,
Onde o fogo venenoso ameaça a traquéia como doce de sal!
Amanhã as vísceras dos desligados estarão expostas,
Amanhã os jornais gritarão escandalizados como resposta,
Amanhã a gente foge, caça, rouba, goza, rola, come, se agasalha,
Amanhã a gente salta pro futuro sem pátria,
E sobrevive para contar a história que nos valha.
Agora, a lua some com a chuva e inspiro tua fome nua,
Única – estou em teu espaço.
Vamos, a tempestade crua come a batida de teus passos,
e só consigo ouvir o que vem do céu.
Eu só roubo versos de quem canta todo o universo,
Mas esta noite invento meu próprio reverso,
para quem sonho andar aqui por perto.
Esta noite eu me lembro de todas as canções de todos os corações,
Meu correr estica as cordas de todos os dons e ressoa todas as orações:
- Qual é a graça que me segue?
Muda de idéia comigo esta noite!
As luzes da cidade já nos chamam atrás do horizonte...
Mas falta um monte, não minto, não vejo fim depois do fim –
Só sei de uma ponte - guarda o fôlego para depois de mim.
Se estiveres comigo, deixa que eu cante por dois:
- Qual é o sonho que me cega?


O SONHO QUE ME CEGA, eu repito lúcido e desperto noutro cenário. À minha frente, uma larga ponte de ferro cruza um desfiladeiro, no país do vale verde, onde a estrangeira foi picada e começou minha jornada. Três mulheres de tailleur rouge e écharpe noir recebem as pessoas na entrada da ponte, vendando os olhos dos homens e amordaçando as bocas das mulheres. Elas comandam: TIREM AS ROUPAS E NÃO OLHEM PARA TRÁS! As pessoas obedecem apressadas e correm para atravessar a ponte, ao fim da qual milhares aglomeram-se numa turba diante de um alto portão do mesmo ferro grosseiro. No caminho, alguns tropeçam na própria ansiedade e caem pelas amuradas baixas nos lados da passagem, feitas de inconstantes cabos de aço. Outras pessoas, homens todos, viram-se para olhar antes de serem vendados e assistirem ao espetáculo de suas amadas esturricarem em chamas, derreterem no gelo, sublimarem em bruma rasteira ou, secas, ruírem em ritmo agonizante como relógio de areia. Preciso acreditar que a estrangeira me segue e ir tomar meu lugar na fila de indigentes e desesperados. Levanto os braços e atiro-me no leito da multidão que me arrasta até a entrada da ponte. Uma das mulheres de vermelho, uma loura, sorri para mim com a objetividade de uma aeromoça, aperta o pano preto atrás de meus olhos e diz: NÃO SE APRESSE... E BOM RETORNO! Eu agradeço e saio procurando os passos devagar, pisando pés, tateando corpos na escuridão. Ouço apelos perdidos como uivos solitários: ‘NUNCA MAIS ETERNAMENTE!’, ‘TEU NOME ANTIGO AFOGA EM MEU PEITO!’, ‘VEM MEU SONHO, A JUVENTUDE PASSA!’. E eu grito: SE VOCÊ EXISTE MESMO ESTRANGEIRA, ACORDA DO MEU SONHO E ME SALVA! Uso as mãos para agarrar a realidade das coisas. Como as minhas, umas mãos tocam meu corpo em busca de alguém, outras me convidam para a lascívia anônima. Meu desejo se multiplica e, insensato, sai à busca de um repouso que substitua o corpo da estrangeira. Procuro cabelos e peitos, depois abraços e bocas. Perco-me no labirinto dos prazeres até encontrar um beijo infinito que me conecte a ela na escuridão. Entre choques de prazer e espasmos musculares, um estrondo metálico e um ranger de portas. Silêncio geral. Sinto-me na plenitude do sonho. Aceito que é sonho e entrego-me despreocupado à curiosidade de ver o final de minha travessia. Quero ver o corpo que me deu prazer enquanto eu lutava para trazer o amor. Tiro a venda: em meus braços, a estrangeira. Olha assustada como se não fosse a mais bela, como se eu roubasse o segredo de seu fogo. Então ela baixa o olhar e tudo ao nosso redor vira areia – as pessoas que corriam para a glória, o portão de pedra e a cidade de cristal escondida atrás dele, a própria ponte que nos sustenta. Ficamos suspensos no ar sobre o desfiladeiro. Ela diz: EU NOS PERDÔO. E cai para fora de todos os sonhos. Meu corpo é um caixão pesado. Fecho os olhos como quem martela pregos e sinto meus pés afundarem na areia – e sinto o vento estapear centenas de grãos em meu rosto. Abro os olhos para avaliar a sobra do pesadelo ou o desencanto do sonho: só eu, o deserto e o sol quase lá – a noite cedendo à transparência ilógica do dia. Olho para direita de onde parte o som de um drapejar humilde. Reconheço meu primeiro abrigo, meu novo lar, a carcaça de avião fantasiada de destroços de baleia, com um trapo branco dançando numa saliência alta. Encostado num canto, meu guia. Sigo até ele, ajoelho-me e, fundo, choro a cara na terra. Ele espera e sorri, enquanto lasca paciente uma pedra. Seu sorriso é um idioma que eu entendo, antes de acordar de um sonho de tantas línguas.

Comida é redondo minério – partida, retorno e mistério.