Para Voltaire e Oscar Wilde
Olhou-se no espelho da manhã, mediu os ângulos para verificar se a ponta do nariz permanecia levemente acima do horizonte, se cada sobrancelha erguia-se na incredulidade exata, fez biquinho para disfarçar a boca murcha de uma ressaca de anos. Oras, no mundo contemporâneo a vaidade masculina é artigo de revista, é coisa natural. Ele adorava falar do mundo contemporâneo como se fosse coisa muito natural.O celular toca. Ele atende andando firme pela casa, de uma parede a outra, pois mesmo emerso de sonhos duvidosos que a noite lhe deixara, é sempre bom demonstrar uma paixão incontestável pelas ocupações cotidianas, ainda que expressa com certo ar entorpecido, para não parecer efusivo demais. Ele chamaria esta atitude de "equilíbrio", se já não tivesse abolido de seu vocabulário qualquer palavra que parecesse hippie demais.
- Olá! (preciso mostrar que estou contente em falar com ela) Estou bem... (um pouco de autocomplacência sempre chama a atenção). Sei...(vou mostrar que compartilho as preocupações da empresa como se ganhasse a mesma grana que ela) Entendo... (cala a boca e me fala logo que vou substituir aquele imbecil) Que pena que ele agiu assim. (Coitado, deu uma de revoltado) Não se preocupe, eu posso fazer isso também. (eu sou bom, eu sou bom, eu sou bom) HAHAHA (não estou rindo da sua piada, mas da sua idiotice).
Sim, alguém caiu e agora ele poderia se levantar em seu lugar. É uma lei natural, e sou livre, livre, livre. Mas é melhor não dizer essas coisas em voz alta, ainda que muy justas, pois se deve ser humilde, simples, educado como os jovens de vinte anos que parecem saídos de uma piscina quente mesmo no pior dos eventos. Garotos que ele invejava, embora dissesse que "admirava", afinal existe certo charme em reclamar displiscentemente do próprio envelhecimento. Tudo é uma questão de conhecer um novo creme e de ser esperto o suficiente para não se divertir nem um pouco na balada mais recente, onde seria por isso mesmo invejado e vingado. Claro que não basta frequentar só casas noturnas, mas também aplaudir um "evento cultural" incompreensível com certa condescendência de quem sabe das coisas. O equilíbrio está, enfim, em espetar bem o cabelo para compensar a cara caída.
Já fazia um certo tempo que ele tinha medo de ser curioso, pois isto faz o peito bater e é melhor não demonstrar muito entusiasmo, emoção esta que faz o corpo parecer tenso demais. Ele perdia a inocência acreditando que perdia a burrice. E se alguém lhe dissesse que estava perdido, ok, pois está na moda ser "bem louco", seguindo pelos mesmos novos velhos circuitos, pelas mesmas novas velhas caixas de concreto superpopuladas. É bom estar na multidão, desde que não encostem nele. É bom cultivar uma dor infértil que ele acredita ser rebeldia, que faz querer ser parte de tudo um pouco, mas sem se aprofundar em nada, pois nada vale o engajamento de sua alma, só de seu corpo. E quando não consegue fazer parte de nada, quando não consegue ver a solidão como algo natural tais seus cabelos camufladamente planejados, repete com voz letárgica o mantra dinheiro, único valor concreto, realista, inteligente. Mas não dizia para os outros seu justo furor, pois não é de bom tom; ninguém dá emprego a um desesperado que pode soar como um revolucionariozinho de merda. O negócio é ser desesperadamente criativo, pró-ativo, ser melhor que os pais jamais foram, pois mais veloz - sim, ele acredita que ser inteligente é ser rápido. No fundo, aguarda ansioso o sucesso visível, não esse só de sua bela alma que se conhece. Quer um sucesso que tem a cara dos ambientes feericamente iluminados e perfumados que fazem a noite valer a pena. O sol é demais e faz suar.
Está tudo bem, pois quando está tudo mal resta ser sedutor, competir pelo melhor sorriso, passar batido por um choro de morte pois a morte não vale pena nem choro. É deselegante ser vulnerável, alguém pode ver. Há que ser forte, ou seja, duro.
Ao menos ele sabe glamurizar suas lamúrias. Ele não vê porque clamar aos céus como besta-fera inútil até para o sexo. A culpa é da cidade, mas há parques belos para percorrer. E ainda bem que tem parques com gente bonita e astral e saudável; as árvores não lhe bastariam com seu silêncio vivo.
Tudo é muito sofisticado e engraçado e interessante para que se perca tempo, para que se perca tempo em devaneios, para que se perca tempo em pensar, em pensar sobre si. Quem pensa demais parece muito egocêntrico e arrogante. E além do mais a palavra "hedonista" é mais sonora que a palavra "pensar", sem contar que uma droguinha transforma mais rápido que um livro. Livros são bons apenas para ter assunto. Para se enxergar, basta o espelho da juventude. Isto não é ser fútil, é ser antenado.
Ao menos ele sabe glamurizar suas lamúrias. Ele não vê porque clamar aos céus como besta-fera inútil até para o sexo. A culpa é da cidade, mas há parques belos para percorrer. E ainda bem que tem parques com gente bonita e astral e saudável; as árvores não lhe bastariam com seu silêncio vivo.
Tudo é muito sofisticado e engraçado e interessante para que se perca tempo, para que se perca tempo em devaneios, para que se perca tempo em pensar, em pensar sobre si. Quem pensa demais parece muito egocêntrico e arrogante. E além do mais a palavra "hedonista" é mais sonora que a palavra "pensar", sem contar que uma droguinha transforma mais rápido que um livro. Livros são bons apenas para ter assunto. Para se enxergar, basta o espelho da juventude. Isto não é ser fútil, é ser antenado.
Mas, às vezes, por uma fração de segundo, o espelho lhe dói, e nem mijar com seu belo e potente pinto lhe alivia quando não suporta ver seu rosto por ângulo algum e só restam os olhos, os malditos olhos. Porque às vezes, às vezes, não dá mesmo para iludir o quão difícil é a tarefa de amar-se. Mas ele não sabe disso. Tolos somos nós que sabemos, que choramos, que somos "deprimidos".
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