domingo, 12 de abril de 2009

um gato preto

As amoras estavam frescas, o creme de baunilha era quase natural; só a calda não era de açúcar mesmo, mas de outra coisa melosa, perigosa no mínimo. Meus dedos suportam menos o pegado do doce que a língua salivada. Limpo-me como gato.
Passa um gato. De verdade e preto. Dos olhos verdes de pescar tua maior fraqueza. Você se defende e respira fundo. Não demonstra medo, tão pouco come o doce. O gato avança um metro, para de novo e fixa o olhar. Eu digo, fixa o olhar, o mesmo... Antes, enquanto ele caminhava como um assassino ou mensageiro do pior, deixei de ver um gato e vi ali uma besta primordial, gostaria que fosse de uma terra quente no Egito, mas era coisa até então mais deconhecida que noite trevosa, impressão que só se dissolveu quando o gato voltou a ser gato, e me olhou. Então, decidi que, eu também, eu também deveria voltar a ser gente, a levar jeito para a coisa. Pus a mão no queixo, a pensar ante os olhos do ser. Não demorou muito para que eu fraquejasse e suspirasse fundo. O gato só mexeu alguns bigodes, quase insinuando um sorriso de sarcasmo, mas não se dignando a tanto. Decidi ser gente olhando com o olhar cansado de quem finge ser essa coisa pessoa. Fingia para disfarçar que eu e o bicho éramos o mesmo ser, parados na expectativa daquele instante, sem desejo, sem posse, igualmente indiferentes, amorosos e prontos para o silêncio.
Cansamo-nos após alguns segundos. O gato virou e eu também, sem competição, uma trégua perpetrada pelo reconhecimento mútuo de uma irmandade de solidão.
Como eu queria que ele falasse... Cheguei a crer que sabia dizer ao menos o essencial, mas o guardava sob o olhar para torturar-me na dúvida cruel. Por que eles tem de ser tão constantes, ainda que permeáveis? Se ele praticava esta magia oculta, eu havia de apelar para alguma invenção de telepatia. Em suma, em minha gana de conquistar o mistério daquele gato, eu fantasiei, com a fé de um louco, que seria capaz de ler seus pensamentos. E assim o fiz.
Mas, antes de reproduzir o que lhe descobri, se assim for necessário, devo confessar que conheço o motivo íntimo da existência dessa minha fé cega em alucinações comunicativas: eu tinha que sair o quanto logo daquela padaria. As putas já tomaram conta do pedaço e o pecado do doce passara da hora de morrer. A boca salva só mais uma fruta, a última amora. Mas a urgência, a urgência era uma só: você matara alguém. Sim, você matou alguém - ainda bem que revelou num certo ato falho, num movimento inconsciente da glote.
Há um minuto, sentia-me capaz de equilibrar o golpe duro do machado com a suavidade do creme de baunilha e calda púrpura. Um luxo inexplicável que não me colocaria numa situação mais vil que a de ter a consciência obcecada por uma total falta de escrúpulos.
Certamente, você obedeceu algum senso de justiça bem argumentado. Entretanto, fez-se o senhor do silêncio, de mãos limpas, só os dedos pegajosos, tintos de um vinho inesquecível. Agora você é mais um, pode ser esquecido.
Você empunha o garfo sentindo-se uma miniatura de Poseidon, certo e obsoleto. Arma as pontas afiadas contra o doce, disposto a aceitar a realidade concreta do prazer possível. Mais urgente que sua mão, o ser emite um estridente rancor que enche seu peito de pavor e letárgica melancolia. Ao redor do bicho arrepiado, o mundo do balcão da padaria e das mesas na esquina da avenida parou de falar, em respeito à sentença decisiva e poderosa daquele gato preto. E quando você olha, num piscar, num hesitar da inspiração, o bicho, claro, havia desaparecido. Sorte, azar ou acaso, você agradece e respira melhor. Que se vá com seus segredos! E eu? Conto os meus? Contei a história do gato preto, ao menos.
E tem a segunda história, mais terrível, mais absurda, mais atroz, se se quiser. O que me cabe é registrá-la. Julguem por si mesmos se este é o melhor lugar para relatar este estranho evento, pois, ao que me parece, e é horrível admitir, esta segunda história revela a primeira, a do grito do gato, tão bem como se as duas estivessem misteriosamente enredadas por uma lógica tão arbitrária quanto evidente.
O fato é que, quando cravei o garfo no doce, finalmente, tão próximo da normalidade quando poderia estar, esquecido até mesmo de que eu jogara no lixo da esquina, minutos atrás, embrulhado em papel de jornal como se fosse nada, o dedo anelar de minha vítima. (Não usei o machado para outra finalidade - cabe-me acalmar alguns nervos. Envenenei-o e pronto.) Agora, eu dava com um coisa acomodada debaixo do creme de baunilha, da calda sanguínea: sim, lá estava ele, o dedo anelar de meu opositor.
Por ora, não sei se devo acreditar que já me perseguem, que fui flagrado e torturar-me-ão até o fim, ou se devo atribuir este joguete maldito a algum ser invisível capaz de dominar os gatos e os mortos. Minha angústia é constante - minha âncora de sobrevivência. Pensei, por um momento, em reclamar com o padeiro, em pedir meu dinheiro de volta, para distrair-me, como se aquele dedo não fosse comigo. Mas, saí sem correr riscos. Não paguei o doce, e deste crime arrependo-me eternamente.
Na rua, não tive mais que um minuto dessa vida: à minha frente, um táxi refreia brusco, emite o agudo som de auge dramático numa derrapada e passa por cima de um volume pesado. O gato. Que não se mexe. Que antes mesmo - assim meus sentidos quiseram ver - estava duro como se fosse morto.
- Já estava morto - confirma uma contundente profissional, enquanto, por baixo da mini-saia, alivia o elástico da calcinha na virilha.
Você pensa: será que um primeiro veículo o teria matado antes? Neste caso, porque não houve nenhum burburinho, um último esganiçar de agonia, um lamento de mulher?
Era melhor não pensar mais.
Você toma o táxi assassino.
- Para onde? - o taxista sintetiza com cumplicidade de propaganda de pasta de dente.
Você só é capaz de responder:
- Tem algum lugar em que não exista gatos?
O homem sorri felino. Você se acomoda no banco, reencontrando a anatomia apropriada, funga quase descontente mas com a preguiça de quem pede paz. Concede a vida ao homem, e por incrível que pareça, adormece todos os ódios. Sim. Dorme e tem o mais belo dos sonhos. Que é melhor não contar. Ninguém daria crédito a um assassino. Ninguém dormiria de noite.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

A Invenção de Morel e Marienbad

Finalmente! Li A Invenção de Morel , de Adolfo Bioy Casares, escritor argentino, parceiro entranhado de Borges. Este livro me rondava há meses, recomendado por uma amiga, enquanto falávamos de Jorge Luis. Já o filme Ano Passado em Marienbad, de Alain Resnais, também me fora altamente indicado na mesma época, por outro amigo. Mas, eu não sabia que o filme vinha do livro e só o soube depois de assistí-lo, semana passada, quando decidi encarar a obra original, que li ontem numa sentada. Feliz coincidência, lapso de tempo, fruto do acaso ou sábia sincronicidade, ainda mais por essas obras refletirem tão profundamente essas temáticas temporais.

Do livro, tenho uma edição em espanhol, mais barata que a tradução. Até me emprestaram a tradução, mas devolvi sem ler. Não queria me aventurar ainda. Dava medo a afirmação de Borges de que "não parece uma imprecisão ou uma hipérbole qualificá-la [a obra] de perfeita." Seu julgamento apoia-se no fato de Adolfo Bioy produzir uma história intricada com enredo mínimo, e assim temos as descrições mais ou menos fragmentadas segundo a acuridade de visão do narrador-personagem, o "fugitivo da lei".

Outro atributo ressaltado por Borges é a capacidade de seu amigo em sintetizar de forma harmômica as querelas eternas entre clássicos e modernos. O narrador caótico reencontra a civilização na ilha em que se refugia, sobretudo encontra um enorme museu, ou hotel, onde vários franceses snobs desfilam sua frieza intencional uns para os outros numa grande encenação. A trama foi construída como num romance policial (como os muitos que escreveria com Borges, ambos sob o pseudônimo de H. Bustos Domecq); um estilo já clássico, e neste caso as peripécias são dadas pelas nuances interiores do narrador. Com sentido de urgência e surpresa, seguimos atentos suas paranóias, como a de ser descoberto, seu amor nunca suficientemente declarado, ao que presume, pela bela e fria Faustine, e acima de tudo, suas descobertas em torno da invenção de Morel, o "tenista barbudo". Este segredo máximo, limite do mistério nesta narrativa, é o que nos simboliza, afinal, o propósito do sutil jogo de realidades repetidas, sóis duplos, estações do ano sobrepostas, fusão entre memória e desejo, fenômenos que tornam cada vez mais movediça a realidade. Basta dizer que a resolução antecipa cinquenta anos de história... Talvez porque Buoy Casares também seja um desses autores preocupados com a eternidade. E o que seria de nós vivendo numa eternidade apenas imaginada pelo homem? Responde Morel: "eu poderia ter-lhes dito, ao chegar: viveremos para a eternidade. Talvez tivéssemos arruinado tudo forçando-nos a manter uma contínua alegria. Pensei: Qualquer semana que passemos juntos, se não sofrermos a obrigação de ocupar bem o tempo, será agradável."

Fazendo humor da angústia, construindo uma eternidade possível e comovente, esta obra nos leva a buscar por Morel, o gênio louco cuja lógica é tão insana quanto perfeita, e por Faustine, seu pólo oposto, a pura e silenciosa voz do mistério, com sua frieza sorridente, estabelecida à força entre prazeres cansativos e tédios inevitáveis. E nossa busca é a do narrador, que constrói a história enquanto a inventa ou tenta explicar, entender, amar, sobreviver, escolhendo memórias, projetando desejos.

O filme de Alain Resnais foi feito quase vinte anos depois da publicação do livro, e é a própria obra-prima idealizada por Morel em sua invenção. Na tela, acompanhamos a repetição da perfeição calculada, vemos dissolverem os limites entre memória, desejo, realidade, sonho, ilusão, alucinação, lucidez, perdidos entre o que de fato teria acontecido ano passado em Marienbad, o que se passa agora, a gente parada em desejos do que é possível e impossível de ser feito, planejando uma eternidade enquanto se teme a morte.

No livro, temos ainda a vantagem de ver a história pela perspectiva do fugitivo da lei, observando à distância este palácio encantado, tentando até se envolver, mas preso à sobrevivência, obrigado a revelar sua própria história e identidade ocultas no exercício de desvendar a invenção de Morel/Resnais. Sua descoberta da eternidade sonhada torna-se cada vez mais claramente um aprendizado da morte.

O filme é mais sombrio, seu labirinto não tem ponto de fuga, nem após os créditos finais. No livro, a jornada é mais esperançosa, como, por exemplo, quando o narrador conclui, para fazer calar suas angústias: "Está ese camino: vivir, ser el más feliz mortal."

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Pequena Ficção / One Landing Morning

Evening at the window - Chagall

Dois experimentos a partir do mesmo motivo...

Pequena Ficção


Começou com uma palavra, não mais. Ela disse “simples” na ponta da língua, eu disse “sempre” na ponta do lápis. Se você quer ter tudo, tem que trabalhar muito. Artigos de luxo e dor nas costas. “Ó pobre burguês a reclamar”, eu disse já para quebrar a possibilidade dela me chamar de “auto-indulgente”, esta palavra fina que ambos acataram de suas formações cristãs, o pai dele católico, o dela espírita. “Amanhã haverá talvez um concurso de miss na televisão”, ela diz. “E o que tenho a ver com isso?”, você responde. “Você não acha engraçado?”, ela ri.
Mas ele não pôde responder, pois logo entrou pela janela um saco de lixo preto, amarfanhado. Era coisa do acaso, do vento ou de ambos. Dentro havia um pássaro gritando, pedindo por socorro, preto no sangue, bico para cima, cores ao vivo.
Entreti-me em seu olhar antes da atitude de salvá-lo. Ela, atrás da cama, esperou com suas chinelas verdes de pano, nem um passo a frente, nem um passo atrás. O que faríamos? O que eu faria? Olhei o bicho no saco, seu estado, e nada. Não se mexia mais. “Não sei como se ouve coração de pássaro”, eu disse. Ela disse: “Não preciso do seu cinismo agora.”
“Ela não me quer mais”, você pensa, e deixa o pássaro quieto. Amanhã será talvez. Mas a preguiça fez com que ficássemos ali. Era melhor do que brigarem com os pais. Era melhor que beijar na boca. Ela se senta na cama, as mãos pensas sobre o colo, um sorriso no rosto, um ar de aleluia.
Ele tirou os sapatos pretos, deixou-os lustrando ao lado do ninho de plástico, arrastou-se de fininho até a cama e deixou de existir, sem dó nem piedade.
Dormiram.Viveram juntos.

One Landing Morning
One day, when days was crowded ones
An the roses was sold around the corners,
A small and smart boy came slowly from the road.
Pissed the grass, laid down all over the rest
And dreamt about a dream under the rain.

The train was coming fast,
The food was at its best,
My baby just don’t care,
Lying like a cat,
Just for fare… But –
I see a fly in my wine,
And the winter is wide in the air.
The wings spreads fractions of vibrations on the red surface.

She’s not decided to live or die.
She does not think in anything.
She’s drunk for the three of us or she just tries.
She talks to me in a language I can breath.
I want to say ‘I’m fine for today’,
But she stops playing.
‘I know I’m gonna be sleeping soon”,
I said before wake up.