quarta-feira, 23 de setembro de 2009

clariciano

Eu procuro algum traço de sentimento com que possa me contar, mas não encontro nada. Nem frieza, nem indiferença. Antes, quando tinha preguiça de escrever-me, de inventar-me, procurava nas paixões juvenis alguma raiva que me energizasse para, enfim, vencer a dureza do papel, da caneta, da tela reluzente e do teclado. É que eu acreditava que a matéria das coisas era contra a fluidez do ser, como se o ser fosse coisa vácua, só de palavras. Agora, nem isso sinto ou faço. Talvez no fundo eu escreva para me afirmar, mas para dar voz a um instinto de bicho, uma verdade subrreptícia, e não essas verdades de palavras, essas vaidades.
E eis que, neste instante, tendo-me improvisado em um parágrafo satisfeito de si, não me vejo ainda pronto para tudo o que haja, embora me sinta a partir do coração - este mito que agora também me bate satisfeito e insatisfeito, apaixonado e subaquático. Claro que alguma lucidez me comanda também, mas esta luz não é de palavras, mas de observar, como bicho, se o ar que entra e o que sai é proporcional ao corpo que minha alma veio construindo.
Penso que se eu me identificar demais com minhas palavras, julgando-as tão minhas, estarei cansado de mim, e isto não quero nunca. Não por me amar egocentricamente, mas para amar a vida que possa desabrochar de mim. Todo mundo tem suas palavras e delas se arroga, fixando-se em imagens passadas, mortas; e percebo milagrosamente que, conforme me assoma o conhecimento da morte, prefiro cada vez mais a vida. No limite, qualquer palavra já dita é coisa morta, que só vale reavaliada, reapropriada, ainda que haja palavras vivas de homens mortos capazes de mostrar-me na atualidade do ser, de mostrar-me este "quem sou" que é apenas um "ninguém que cabe em qualquer um."
Tenho receio de palavras movidas por paixões. Pensemos. Um beijo deve durar o tempo justo do confronto. Alongar o desejo é matar o amor, desconfiar de seu poder e tentar extraí-lo no bagaço da carne, e não na carne intumescida de amor. E quero ser sempre jovem para convencer-me na busca desta inominável palavra. Para ser jovem e amar com a renovada inocência de jogos infantis, sem alongar os desejos de uma juventude sempre em fuga, tenho de me fazer de velho, e assim o faço desde criança, obstinado em vencer as idades, sem a covardia de não enfrentar o espelho, este espaço infinito onde cada ruga, ao invés de me envelhecer, me renova, mostra o novo insuspeitado, me rejuvenesce de tanta curiosidade com minhas coisas ínfimas. Talvez eu só esteja querendo dizer que tenho respirado melhor no enfrentamento da morte. Sim, não me culpo mais em temer a morte, é assim com todo bicho e me alegro cada vez mais de ser bicho antes de ser homem. Sim, não me culpo mais em aceitar a morte: existe uma indiferença de pedra em todo ser, e bicho veio da pedra também.
Talvez seja isto o que quis dizer quando quis dizer que para escrever-me, para inventar-me, não posso e nem consigo mais me agarrar desesperadamente a um "sentimento", a um logos qualquer, a uma razão que vem do fundo de uma taquicardia a que chamamos paixão, uma ansiedade sem propósito e cuja origem duvido que parta de mim, mas de nossos modernos costumes sobre o que seja o feliz. Como diria Rimbaud, o êxtase não é mais meu amigo.
Tenho o vício do cigarro, decerto. E se for possível explicar o vício como um desvio do ser em relação a seu ambiente, sim, digo que estou demasiadamente saciado desta cidade, embora nela tenha tanto me divertido, diariamente, religiosamente. É que não gosto muito de seguir uma única religião, por isso preciso partir. Não porque a cidade seja pequena de pequenez, mas porque o mundo é grande de mistérios. E quando não tenho meu mistério, que adoro encontrar nos olhos de um cão de rua, acendo meu cigarro. Mais não quero justificar. As justificativas nascem do medo não assumido, e prefiro ser inseguro com coragem. Dói menos. Já disse isso, sim. Estou tão contentamente vazio que me preencho e me atravesso até por repetições bem vindas. Às vezes repetir é necessário para aprender a sofrer menos, para aprender a aprender, para dar nomes melhores às coisas piores.
Se tem algo que me interessa de fato, que me engaja na realidade suposta, é a manhã transparente, cheia de possíveis, esta que nasce agora lá fora, no ar, no azul mutando mais rápido que a minha atenção sobre ela, no azul mutando mais devagar que esta minha aberrante transformação.
Antes eu escrevia com fome no estômago vazio, duro de certezas. Para aprender a chorar. Agora escrevo de barriga cheia, sim senhor, pois o pão deve me nutrir antes que a palavra. Sem bicho não há homem, e antes eu só queria ser homem, sem assumir o bicho. Quanta inversão de valores! Sim, sobrevivo com pão e palavra, nesta ordem. Não é para glamurizar a pobreza, estamos acostumados demais com a pobreza, e quero que esta sempre me entristeça. Até já houve um tempo sem uma coisa nem outra, sem pão e sem palavra, só de escuridão e um inseto de esperança, mas nunca fui bobo de arrogâncias, como os mendigos que impõem sua dor com ódio. Quis mais é saber-me mínimo, fazer um experimento contra minha soberba, e também porque tenho um corpo que não pega nem gripe - salve! - mas agora gosto de trabalhar simplesmente para ingerir e expelir coisas, seguindo a natureza de minha espécie, evoluindo-a, depurando-a no amor ao trabalho e no trabalho do amor, invejoso apenas das árvores, que tocam os extremos da terra e do céu com absoluta paciência.
Veja como minha escrita é perniciosa mesmo, e se a desdigo não é por charme de poeta que não pretendo ser: escrevendo aqui, pouco a pouco, bateu-me um sentimento sim, bateu-me um sim. Um amor pela minha mãe, pelo meu pai, pelos amigos e irmãos, pelos mortos e vivos, até pelos inimigos, se estes eu tiver. Está certo: foi um amor quieto, disfarçado, fugaz mas quase tátil enquanto durou, e que paro de proclamar aqui e agora. Mas que é sentimento ou ato mais valioso que as palavras que me chamaram daquele vazio com que comecei, com que tudo começa. E agora sim, posso retirar-me em paz e voltar a ser ninguém e nada. E é feliz assim, dizem meus olhos para o espelho transparente da manhã.

Um comentário:

  1. Meu velho Alexandros, tem sido sempre um prazer ler suas palavras-canções desde os tempos outros. Eu que me considero o menos paciente leitor deste tipo de veículo,que nunca postei comentários como este, invejei aqueles que constroem nele a escrita do nosso tempo.
    Thiago Freire

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