As amoras estavam frescas, o creme de baunilha era quase natural; só a calda não era de açúcar mesmo, mas de outra coisa melosa, perigosa no mínimo. Meus dedos suportam menos o pegado do doce que a língua salivada. Limpo-me como gato.
Passa um gato. De verdade e preto. Dos olhos verdes de pescar tua maior fraqueza. Você se defende e respira fundo. Não demonstra medo, tão pouco come o doce. O gato avança um metro, para de novo e fixa o olhar. Eu digo, fixa o olhar, o mesmo... Antes, enquanto ele caminhava como um assassino ou mensageiro do pior, deixei de ver um gato e vi ali uma besta primordial, gostaria que fosse de uma terra quente no Egito, mas era coisa até então mais deconhecida que noite trevosa, impressão que só se dissolveu quando o gato voltou a ser gato, e me olhou. Então, decidi que, eu também, eu também deveria voltar a ser gente, a levar jeito para a coisa. Pus a mão no queixo, a pensar ante os olhos do ser. Não demorou muito para que eu fraquejasse e suspirasse fundo. O gato só mexeu alguns bigodes, quase insinuando um sorriso de sarcasmo, mas não se dignando a tanto. Decidi ser gente olhando com o olhar cansado de quem finge ser essa coisa pessoa. Fingia para disfarçar que eu e o bicho éramos o mesmo ser, parados na expectativa daquele instante, sem desejo, sem posse, igualmente indiferentes, amorosos e prontos para o silêncio.
Cansamo-nos após alguns segundos. O gato virou e eu também, sem competição, uma trégua perpetrada pelo reconhecimento mútuo de uma irmandade de solidão.
Como eu queria que ele falasse... Cheguei a crer que sabia dizer ao menos o essencial, mas o guardava sob o olhar para torturar-me na dúvida cruel. Por que eles tem de ser tão constantes, ainda que permeáveis? Se ele praticava esta magia oculta, eu havia de apelar para alguma invenção de telepatia. Em suma, em minha gana de conquistar o mistério daquele gato, eu fantasiei, com a fé de um louco, que seria capaz de ler seus pensamentos. E assim o fiz.
Mas, antes de reproduzir o que lhe descobri, se assim for necessário, devo confessar que conheço o motivo íntimo da existência dessa minha fé cega em alucinações comunicativas: eu tinha que sair o quanto logo daquela padaria. As putas já tomaram conta do pedaço e o pecado do doce passara da hora de morrer. A boca salva só mais uma fruta, a última amora. Mas a urgência, a urgência era uma só: você matara alguém. Sim, você matou alguém - ainda bem que revelou num certo ato falho, num movimento inconsciente da glote.
Há um minuto, sentia-me capaz de equilibrar o golpe duro do machado com a suavidade do creme de baunilha e calda púrpura. Um luxo inexplicável que não me colocaria numa situação mais vil que a de ter a consciência obcecada por uma total falta de escrúpulos.
Certamente, você obedeceu algum senso de justiça bem argumentado. Entretanto, fez-se o senhor do silêncio, de mãos limpas, só os dedos pegajosos, tintos de um vinho inesquecível. Agora você é mais um, pode ser esquecido.
Você empunha o garfo sentindo-se uma miniatura de Poseidon, certo e obsoleto. Arma as pontas afiadas contra o doce, disposto a aceitar a realidade concreta do prazer possível. Mais urgente que sua mão, o ser emite um estridente rancor que enche seu peito de pavor e letárgica melancolia. Ao redor do bicho arrepiado, o mundo do balcão da padaria e das mesas na esquina da avenida parou de falar, em respeito à sentença decisiva e poderosa daquele gato preto. E quando você olha, num piscar, num hesitar da inspiração, o bicho, claro, havia desaparecido. Sorte, azar ou acaso, você agradece e respira melhor. Que se vá com seus segredos! E eu? Conto os meus? Contei a história do gato preto, ao menos.
E tem a segunda história, mais terrível, mais absurda, mais atroz, se se quiser. O que me cabe é registrá-la. Julguem por si mesmos se este é o melhor lugar para relatar este estranho evento, pois, ao que me parece, e é horrível admitir, esta segunda história revela a primeira, a do grito do gato, tão bem como se as duas estivessem misteriosamente enredadas por uma lógica tão arbitrária quanto evidente.
O fato é que, quando cravei o garfo no doce, finalmente, tão próximo da normalidade quando poderia estar, esquecido até mesmo de que eu jogara no lixo da esquina, minutos atrás, embrulhado em papel de jornal como se fosse nada, o dedo anelar de minha vítima. (Não usei o machado para outra finalidade - cabe-me acalmar alguns nervos. Envenenei-o e pronto.) Agora, eu dava com um coisa acomodada debaixo do creme de baunilha, da calda sanguínea: sim, lá estava ele, o dedo anelar de meu opositor.
Por ora, não sei se devo acreditar que já me perseguem, que fui flagrado e torturar-me-ão até o fim, ou se devo atribuir este joguete maldito a algum ser invisível capaz de dominar os gatos e os mortos. Minha angústia é constante - minha âncora de sobrevivência. Pensei, por um momento, em reclamar com o padeiro, em pedir meu dinheiro de volta, para distrair-me, como se aquele dedo não fosse comigo. Mas, saí sem correr riscos. Não paguei o doce, e deste crime arrependo-me eternamente.
Na rua, não tive mais que um minuto dessa vida: à minha frente, um táxi refreia brusco, emite o agudo som de auge dramático numa derrapada e passa por cima de um volume pesado. O gato. Que não se mexe. Que antes mesmo - assim meus sentidos quiseram ver - estava duro como se fosse morto.
- Já estava morto - confirma uma contundente profissional, enquanto, por baixo da mini-saia, alivia o elástico da calcinha na virilha.
Você pensa: será que um primeiro veículo o teria matado antes? Neste caso, porque não houve nenhum burburinho, um último esganiçar de agonia, um lamento de mulher?
Era melhor não pensar mais.
Você toma o táxi assassino.
- Para onde? - o taxista sintetiza com cumplicidade de propaganda de pasta de dente.
Você só é capaz de responder:
- Tem algum lugar em que não exista gatos?
O homem sorri felino. Você se acomoda no banco, reencontrando a anatomia apropriada, funga quase descontente mas com a preguiça de quem pede paz. Concede a vida ao homem, e por incrível que pareça, adormece todos os ódios. Sim. Dorme e tem o mais belo dos sonhos. Que é melhor não contar. Ninguém daria crédito a um assassino. Ninguém dormiria de noite.
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