quinta-feira, 10 de abril de 2003

Ode aos Loosers

Hoje eu acordei, vi esse dia feio, me olhei e no espelho e me senti feio também. Me senti gordo, sujo, com uma barba enorme, cansado. Enfim, fodido. Aí me deu uma saudade imensa do Nirvana. Eu me lembrei de quando tinha 13 anos e ouvi pela primeira vez Smells Like Teen Spirit. Fiquei estarrecido. E nem gostava tanto assim de rock. Pelo menos até aí. Era 1991. Naquela época tudo chegava via rádio e pela MTV, que estava no começo. Não existia internet para nós. Principalmente para eu e meus amigos da E.M.P.G Professor Antonio Prudente. Eu me lembro de que ninguém, nem mesmo a MTV, conseguiu classificar aquele som e aquele clip
e aquele tal do Kurt Cobain. Mas todos amamos. Numa época em que ainda estávamos tentando nos livrar das coisas fakes e alienadas que os anos 80 nos legaram (e que hoje são cultuados), aquela música tinha um apelo absurdo. Eu me lembro de ter visto a estréia deste vídeo clip. O VJ disse que em um lugar chamado Seattle existiam umas bandas que tentavam resgatar algumas coisas do punk. Mas não nos convenceu. Todo mundo que nem sabia o que era punk, seis meses depois tinha o seu exemplar de Nevermind. Mesmo as meninas que só curtiam a tal
da House Music. Ninguém entendia porque, mas todos gostávamos muito. Descobrimos que aquele videoclipe tinha sido feito com pouquíssimo dinheiro. A banda tinha reunido uns fãs de Seattle que já conheciam o trabalho das casas noturnas bagaceiras e colocou-os para agirem exatamente como agiam nesse lugares. O cenário, todos se lembram, era uma quadra de basquete de escola, com direito a todos aqueles funcionários loosers de escola pública. Provavelmente pais daquela galera. E todos eram completamente desleixados para o senso comum. Entretanto, nós, que éramos adolescentes, achávamos eles incríveis. Eram puros, sem artifícios, com aquelas roupas de looser, aqueles cabelos de looser, aquela voz e aquela guitarra de loosers. Como nós, completos loosers. Mas até que enfim, no meio daquela artificialidade da
época, comandada pelo hit Black or White de Michael Jackson, e por Groove is in the Heart do Deee Lite, eles cantavam coisas sobre nós mesmos. Finalmente! Sobre adolescentes que alguém tentou chamar de Geração X, mas não colou. Somos de uma geração completamente perdida em termos ideológicos e de perspectiva de vida. Mas o que o Nirvana mostrou foi nossa dignidade de admitirmos isso, e ao mesmo tempo, mostrar que nós nos divertíamos muito mais do que as outras pessoas. E mais do que isso, nós nos revoltávamos contra isso. Tínhamos muito ódio de tudo o que fosse artificial, só não sabíamos o que fazer a respeito disso. Muitas pessoas até hoje não entendem o Nirvana. Acham que é uma simples descarga de testosterona, quando na
verdade aquelas músicas mostram o quanto nós éramos legais, apesar de completamente perdidos. Quando nos acusavam de perdidos, e alienados, a resposta era: NEVERMIND! Deixa pra lá (subtexto: mal sabem eles...). Mesmo que não entendêssemos as letras, fossêmos de língua inglesa ou não, estávamos representados naquela sonoridade que traduzia plenamente nossa força vital, que era assassina de tão grande, e vontade de que tudo desse certo. E se não desse, foda-se. Já não tínhamos nada a perder mesmo. Kurt, em sua humanidade sabia disso. Escreveu em IN BLOOM: "He's the one who likes all our pretty songs, and he likes to sing along, and he likes to shoot his gun, but he knows not what it means and I say yeah..." Ele desafiou a cultura mainstream a tentar nos entreter, nós, os loosers, agora que tínhamos o referencial de Seattle: "Here we are now, entertain us!". Quando eles lançaram o segundo hit, Come As You Are, já estávamos completamente dominados. Amamos a crueldade expressa com muita sutileza no vídeo clip. Radicalizou o discurso de nossa desorientação e nos plasmou no que para mim é a melhor imagem da nossa geração: o vira-lata perdido, molhado, com medo, sem poder olhar para os lados com aquele cone na cabeça amplificando o som da idiotice e nos impedindo sequer de se coçar. Todos entendemos, mesmo sem entender, que aquele cachorro estava descendo a escada do inferno enquanto Kurt Cobain se via atado a um trapézio instável. E no clip ele nos oferece o revólver que poderia oferecer-nos uma solução simples, como a que ele tomou anos depois, por todos nós. Sim, ele é nosso mártir. Na letra ele nos conclama a assumirmos que
somos perdedores de nascença e a tomarmos um partido diante disto: "Come as you are, as you were, as I want you to be: as a friend, as a friend, as an old enemy. TAKE YOUR TIME, HURRY UP, THE CHOICE IS YOURS, DON'T BE LATE". Em seguida, não sei se veio In Bloom ou Lithium. Seja como for, eles já tinham virado celebridade e não aceitaram esta posição, como faziam 100% dos artistas na época. Num desses clipes, satirizaram a histeria de fãs que os curtiam porque estavam na moda, imitando aquelas bandas assépticas da década de 60. E num show na MTV, ao vivo para o mundo todo, trocaram a música combinada com a produção por uma fictícia RAPE ME, que quase matou os empresários. Adoramos! Mas depois, surgiram todas aquelas bandinhas pseudo-Seattle, imitando o estilo Nirvana, convertendo toda aquela
contundência em mero estilinho. Por isso eu me irrito com essas bandinhas de filhinhos de papai, que se embebedam e cantam Smells like teen spirit. O que me deixa feliz é que eu vivi intensamente esse disco NEVERMIND, enquanto ele acontecia, com meus maravilhosos treze, quatorze anos. E felizmente, estou marcado por esse "fedor de espírito adolescente" como define o título de Smells like teen Spirit. Esse álbum é sem dúvida nenhuma o álbum da minha geração, ou dos loosers da minha geração que se assumiram como tais, como eu. Os que poderiam plantar uma árvore, para serem politicamente corretos, como diz a letra de Breed, mas não tem o
menor interesse em fazê-lo, e foda-se. Foram vocês que nos fizeram assim. Por isso,
com toda a força vital que as melodias desse disco expressam, com toda sua humanidade
doída, eu tomo para mim as palavras de Kurt em Lithium, nesse dia em que acordei me
sentindo feio: EU SOU FEIO, MAS TUDO BEM, PORQUE VOCÊ TAMBÉM É.
NÓS QUEBRAMOS OS NOSSOS ESPELHOS.