quarta-feira, 15 de julho de 2020

Leitura irmã dos “Itinerários para o fim do mundo”


Um dos melhores presentes é quando um escritor que admiramos escreve suas boas impressões sobre nosso trabalho. Essa semana, o querido Teofilo Tostes Daniel, meu colega da Editora Patuá, autor do brilhante “Trítonos, intervalos do delírio”, livro que tem tantas afinidades com o meu, veio me contar essas impressões sobre alguns mistérios formais e de enredo que regem os “Itinerários para o fim do mundo”. De certo modo, ambos buscamos alimentar nossas narrativas com o inominável da feitiçaria e magia brasileiras. Obrigado, amado! Seguem suas impressões:


“Alexandre, querido,

sou um leitor vagaroso. Há cerca de dois anos, seu livro ficou me esperando nas minhas instantes. Cheguei a pegá-lo e colocá-lo na mesinha de cabeceira da cama umas três ou quatro vezes, mas só o li agora. Bom, não exatamente agora. Na semana passada. Terminei de ler o "Itinerários para o fim do mundo" faz exatamente uma semana hoje.

Em primeiro lugar, quero dizer que não conseguia largar o livro. Sempre que estava fazendo alguma coisa, pensava na hora de pegar o livro. Tanto que o li rápido (para os meus padrões). Acho que foram uns cinco ou seis dias de mergulho. E acho que essa palavra define bem o que foi essa leitura. Um mergulho no assombro e no encanto. Se foi assim desde as primeiras páginas, na experiência do personagem na China experimentei o primeiro êxtase. Suas palavras, querido, têm o poder de nos transportar para as paisagens que você narra com uma força incrível. Desde os detalhes mais simples sobre como o personagem conheceu sua conterrânea praticamente à beira da Grande Muralha até o ritual repleto de detalhes. Preciso dizer que encontrei no seu livro todo, e em especial nessa parte, uma identificação imediata. Ali estava muito do que eu desejo fazer com a linguagem, quando escrevo. E essa identificação com os procedimentos narrativos de um autor não são coisas que acontecem frequentemente.

Outra forte identificação, dessa vez pessoal, com o seu personagem, foram as referências de infância. Acho incrível como você condensa praticamente num único acontecimento "desimportante" elementos que poderiam estar dispersos em anos de experiência. E essas referências têm a ver com a geração. Afinal, também conheço as mesmas referêcias infantis do personagem -- também fui criança nos anos oitenta. Quase pude ouvir o chiado das televisões, os sons e timbre das vozes dos apresentadores dos programas. Tudo ali criou uma escrita sinestésica avassaladora. 

Achei fantástica a forma como é apresentada, de maneira quase impessoal, a história do personagem com a Clara. Ao ponto de a narrativa ir declaradamente para uma terceira pessoa -- dada a distância do personagem com aquele fato. Ao mesmo tempo, como é viva não só a narrativa do encontro dele com Clara, mas principalmente a da única paixão de Clara.

No curso da apresentação de personagens arrebatadores, o Don Juan foi para mim não só o personagem mais apaixonante, como também uma perfeita síntese do tempo. Em sua fala sobre o envelhecimento, acabei encontrando mais o meu memento mori dentro do seu livro do que na morte do seu protagonista, páginas à frente.

Minha sensação é que o livro vai se construindo por meio das narrativas do personagem mais velho. O personagem da mochila vermelha parece sempre meio fugidio. E esse contranste é constitutivo no livro inteiro. E o curioso foi que nas primeiras páginas, achei que o livro seria a história desse personagem, que se apaga (e acaba sendo), mas ele some engolido nas narrativas do marinheiro. Embora volte com uma força e uma presença espantosa no fim -- tanto na cena da morte do outro personagem, quanto a seguinte, em que ele aparece mais velho, quase como um mendingo ou um viandante.

Tive apenas um tropeço em toda leitura, um momento em que o fluxo narrativo me estancou, em vez de fluir. Foi pouco antes de o navio se prender e os dois se lançarem no mar escuro. Quando o personagem da mochila vermelha se anuncia assassino diz que vai estrangular o outro. Talvez seja o momento mais obscuro, para mim, de toda narrativa. E por mais que no fim eu consiga supor uma série de coisas sobre esse trecho, o leitor que sou ainda deseja ter viajado sem ouvir esse anúncio. Talvez porque esse anúncio me desestabilize, e a gente não sabe o que há de verdade naquilo que foi enunciado. Enquanto escrevo, penso que talvez eu não pudesse passar sem essa provocação. Que toda esse enovelamento de identificações precisasse ser cortado. E esse trecho pequeno (entre as páginas 114 e 116) corta forte em mim esse novelo. Tanto que passei todo o trecho posterior com mais medo de os personagens se salvarem, para que ocorresse um estrangulamento na praia, do que deles se afogarem no breu líquido da noite marítima. rs

Querido, talvez essa mensagem te chegue tateante. Ela é uma tentativa de dizer o quanto amei ler seu livro! O quanto ele me falou, em muitas camadas. De muitas formas diferentes. Chegando ao fim da leitura, senti com muita força que quero ler seu livro anterior, Nicotina Zero, e todos os próximos que certamente virão. Porque seu "Itinerários para o fim do mundo" me fez desejar ser teu leitor. Constante...

Um beijo, repleto de carinho,
Teo”