quarta-feira, 27 de abril de 2022

Para não esquecer (Gui Nascimento 88-22)

Agnaldo de Assis Nascimento, um de meus amigos mais amados, o escritor vivo brasileiro que eu mais admirava, decidiu partir no último dia desse carnaval fora de época. Fiz um compilado de nossas conversas feitas em diversos meios. porque é urgente, porque não tenho uma razão para isso, e sem razão as coisas se movem com outra importância que nos cabe respeitar. 

[foto tirada no lançamento de Horses, em 2019]


***

15/10/18

Alê,

Reler Nicotina Zero acabou coincidindo com algumas coisas que ando (andamos) lidando nos últimos dias. Nós sabemos: tão amargos quanto o peso fuliginoso da nicotina têm sido esses dias de incerteza (ou quase certeza de que o pior está por vir), esses dias de fascismo batendo à porta, essa sensação putrefata de impotência. Enfim.

A pausa do DJ coincidiu com a pausa que eu precisei fazer. Uma pausa da exposição cotidiana às absurdas coisas que estão acontecendo. Eu precisava dessa pausa, pois sinto que o meu filtro nem de longe consegue lidar com tanta desgraça ao mesmo tempo. E o resultado foi esse. Espelhei minha pausa na pausa do DJ e entendendo que essa pausa não significa, em hipótese alguma, aderir ao estático. É puro movimento, trânsito, tudo contabilizado dentro do bojo do grande relógio no topo das páginas que iniciam cada capítulo do teu romance. Engraçado que imaginei o relógio da Paulista guiando essa madrugada, pois não dá pra não pensar em São Paulo nesse teu romance filhadaputamente paulistano. Adoro os cognatos: Rua Áurea, Praça Alta. Os lugares entrelaçados com maestria aos monólogos do DJ formam uma arquitetura única dentro de Nicotina Zero (gosto em especial da “viagem” que ele tem ao lado de Alice e com a descrição dos grafites e da festa sonhada na Praça Alta).

Nicotina Zero é desses romances que possuem um núcleo próprio, que criam um mundo-que-só-dura-uma-noite, como o dia do Sr. Bloom ou o mundo singular de Graça Infinita de David Foster Wallace. Acho que é assim com todo grande romance. Também me chamou a atenção o fato de o encontro com o diabo ser uma espécie de “só mais uma dentre as tantas possibilidades que ocorrem numa noite urbana”. Sim, há muita relevância nesse episódio, mas não é o ápice do livro, o que seria empobrecedor já que estamos saturados de relatos sobrenaturais em nossa quebrada ocidental. Esse diabo vestido de mauricinho gótico se alinha ao anjo da Cristina Judar no panteão das criaturas místicas despidas de misticismo (o que eu acho um escândalo!). Também a sua mania de escrever deus com minúscula meio que me ajudou a entender certa desmistificação dos seres sobrenaturais quando dentro de um contexto urbano-noturno.

Um capítulo que talvez eu não tenha apreciado tanto foi o “Faces esfumaçadas”, talvez por estar meio cansado dessas análises sócio filosóficas dos “personagens” da noite. Mas isso é coisa minha. Não considero um defeito e, se não me engano, até o próprio DJ ironiza o fato de estar sentado na mesa do bar, bancando a julgatiely do rolê. Enfim, provavelmente eu também tenha uns trechos igualmente sociologizantes tanto em Horses quanto em outros textos.

Também algo que eu poderia apontar, e sempre esses apontamentos são tardios, uma vez que teu percurso de escritor já se aprimorou desde Nicotina Zero, é a questão dos diálogos. Eu, enquanto apaixonado por Cortázar, sempre acho que os diálogos são aquela espécie de vitrine do romance (quando ele possui diálogos, é claro), por isso, acho que no teu romance, poderia ter rolado um desenvolvimento mais aprofundado, não necessariamente no conteúdo dos diálogos, que são incríveis e profundos, mas sim em sua construção estética. Coisa boba mesmo, piração minha de sempre querer fugir da fala comum e cotidiana. Ao mesmo tempo gosto do tom “vago” das falas entre o DJ e Alice, pois é um vago que diz muito e coincide com a solidão do ser noturno. Claro que, como eu já disse, essa é uma crítica anacrônica, provavelmente você já deve ter aprimorado muitas coisas desde a publicação do Nicotina, e dentre elas, possivelmente o diálogo, que é a coisa mais difícil pra todo escritor a meu ver.

Os capítulos em primeira pessoa, que são raríssimos, eu apelidei de “capítulos emparedados”, são como uma pausa dentro da pausa do DJ e aparecem na hora certa. Fiquei de cara com essas ocorrências e acho que aliviou certo peso na estrutura geral do livro.

Gosto da paixão com a qual você descreveu o encontro do DJ com Daniel, paixão essa que se espalha por todo o livro. Acho que todo primeiro romance tem isso e é justamente por essa razão que ele possui uma espécie de coerência interna capaz de criar um mundo à parte que é, ao mesmo tempo, tão verossímil.

Uma coisa que eu ainda não te revelei é que Nicotina Zero é irmão gêmeo do romance que acabei de reescrever “A Cabeça do Herói Mitológico”. Acho que nossa proximidade com autores como Caio F, além de nossa vivência na noite paulistana possibilitou essa coincidência.

No meu romance há um personagem não nomeado, que é fotógrafo, que se vê guiado por outro personagem chamado Alexandre (!), um estudante de História da Arte. Ambos saem noite adentro tentando enxergar com novos olhos os já batidos roteiros noturnos. Fiquei muito feliz quando li o Nicotina pela primeira vez e encontrei essa similaridade que, a meu ver é muito positiva, pois só reforça que nossos textos, junto com os da Judar, dialogam numa esfera de intensidade única.

Por hora, essas são só algumas das impressões causadas pelo “efeito” do teu Nicotina, ainda quero aprofundá-las e, claro, futuramente faremos aquela reunião pra falar dos nossos livros.

Aguardando ansioso pelo Itinerários!

 

Beijo.

Agnaldo de Assis Nascimento.


30/01/19

Alê: Gui, meu Deus!!! Acabei de ler seus Horses. Como você conseguiu escrever esse livro, cara?????? Estou chocado com a sua genialidade. Esse país não está preparado pra você, cuidado.


16/03/19 

Alê: Gui, por favor, guarde a receita desse drink: “Ele é Dark e Ela é Storm” (woodford reserve bourbon, extrato de gengibre, essência de amburana, limão e club soda)


20/04/19

Gui: Tá por aqui?

Alê: Não, tirei essa foto no dia que fui na sua casa kkkkk

Gui: 😂😂


16/05/19

A realidade sempre um passo atrás, atrasada, beijando os calcanhares desses diálogos de porão. Tome fôlego para acompanhar de perto as galopadas de calma-fúria que nos guiam por essa espécie de epopeia de punk art que marca a bela estreia de Agnaldo Assis Nascimento como romancista. Temos que bater forte os cascos no chão se quisermos acompanhar os traços de fogo deixados por esse carrossel narrativo formado de vozes de garotas e garotos suburbanos, cada qual com uma história familiar um tanto sombria, circulando por cantos escuros e barulhentos como o OK Rock Bar e o casarão antigo onde moram dois de seus frequentadores, irmãos órfãos que acolhem comparsas desajustados. São personagens com um riso onde o prazer e a dor não cansam de brindar. Autoexilados não só da família, mas de outros parâmetros de realidade, cada qual vivendo sua própria epopeia subjetiva, sempre mordendo o outro lado das coisas do mundo, no esforço contínuo de priorizar o prazer do instante presente e da força da juventude, embora nos seja revelado em muitos momentos que ter um corpo animal, se abrindo em flor, cansa. Esses cavalos selvagens se tornam quase seres míticos que se cruzam e se contradizem, podendo representar muitas outras gerações de jovens perdidos, de forma que só o leitor saberá recriar o enredo com liberdade, com suas próprias lembranças. Como os jovens de qualquer idade, esses Horses tentam achar espaço entre um fanatismo por tudo que é vivo e uma apática indiferença. Munidos dos melhores discos e livros clássicos da cena de rock internacional e local, suas conversas ácidas são fortalecidas por referências que vão de Homero a Patti Smith, cujo álbum seminal nos é lembrado desde o título. Esse livro é tão grande em tantos aspectos que esperamos que sua amplitude eletromagnética chegue até os ouvidos da grande bruxa novaiorquina. Horses é um romance sobre cruzar fronteiras.


Alexandre Rabelo


04/07/19

Gui: A Bíblia chegou [Horses] 😂😂😂 Ainda bem que no papel pólen vai dar metade disso.

Alê: Amém 😂😂😂


23/08/19

Alê: Viu que fiz um vídeo lendo um trecho?

Gui: Siiiiim. Ficou demais 💜💜💜 Vc e a Felina [personagem de Horses] são duas desaforadas 😂😂😂


24/08/19

Gui: [Dedicatória ao meu exemplar de Horses]: Ale, obrigado por estar ao meu lado nessa trilha punk art. Espero que nossos caminhos sempre se cruzem dentro e fora da literatura. Torço por cada livro que você publica. Sempre uma satisfação estar ao teu lado. Agnaldo


27/10/19

Gui: 


Alê: Acredita que tinham duas pessoas que não estavam acreditando que não pude entregar as coisas no prazo porque estou doente?

Gui: Foto de soro é o novo atestado 😂 Nunca pensou em retirar as amígdalas?

Alê: Teve aquela moda nos anos 80 e 90 né. Depois passaram a falar que não pode tirar porque é uma defesa do corpo. Como eu adoro chupar uma rola, amigo, resolvi deixar, mesmo sabendo que quem não tem amígdala chupa melhor hahahaha

Gui: hahahahahahaha prioridades


15/10/19

Alê: Esse seu amigo é gato, PQP

Gui: meu hétero de estimação 😂😂😂


10/03/20

Gui: Não é que o escritor tenha que ser o bicho místico vivendo numa cabana recusando prêmios de reconhecimento, eu gostei desse trecho porque parece resgatar uma essência perdida, um escrever porque é vital, como comer e dormir. Estar satisfeito com o ato de escrever, acho que muita gente nem sente isso, termina um livro já entra na paranoia de publicar e ter leitores e ganhar prêmios, etc.

Alê: Vou te falar que você é um daqueles amigos que eu conto nos dedos de uma mão que realmente se interessam em conversar sobre literatura e não sobre o meio literário. Aliás, já faz um tempo que estou querendo ter uma conversa eu e você, você e eu, sobre literatura. Acha um tempinho pra vir aqui!

Gui: Quero muito. Vou achar esse tempinho.


25/07/20

Alê: fiquei pensando num texto que você escreveu esses dias sobre uma pessoa que não consegue nenhum tipo de transcendência, que só fala de coisas cotidianas. Queria saber quem é. Quero muito me tornar essa pessoa Kkkkkk

Gui: 😂😂😂 Eu estou nessa fase foda, mas acho que sempre foi assim. Não quero aprovação literária nem puxar o saco de ninguém, acho a cena literária deprimente, não é esnobismo, eu simplesmente não me encaixo. É como ser viado no mundo hétero.

Alê: Acho que ainda vamos conversar muito sobre isso. Trabalhos da qualidade do seu merecem a luta.

Gui: Sim, essa é uma conversa clariciana: sem sinal fechado. 


02/10/20

Gui: No meu “A cabeça do herói mitológico“ o personagem Alexandre é o ser que guia o narrador noite adentro ❤️

Alê: ❤️❤️❤️ Não estou na sua vida à toa kkkk



05/10/20

Alê: Estou ouvindo a playlist do seu livro. Você costuma escolher músicas suaves dentro de discos clássicos, muito precioso.

Gui: ❤️


16/10/20

Alê: Se eu sumir, me encontrem aqui [ilustração distópica]

Gui: Vai ser dona da taberna que eu sei 😂😂😂


30/10/20

Gui: Queria esse livro, çokorru! [cartas pornográficas de James Joyce]

Alê: Credo, que delícia!


26/01/21

Gui: Aêê. Felicidades, meu querido🤘❤🍸

Alê: Obrigado, meu amor, continuo com muita saudades de ti. Beijos


12/03/21

Alê: Nossa, 54 anos é muito tempo, Gui. Daqui a pouco rock vai fazer 100 anos kkk

Gui: E estar morto, amém 😂

Alê: Bom é assim, morto que ninguém esquece 😅


03/07/21

Gui: Vc tá na paulista? Avisa se descer. Estou na Roosevelt.

Alê: Ah que pena! Estou morrendo de saudades…. Eu passei pela Roosevelt de bike antes de ir pra Paulista, voltando da ZN. Depois subi a Augusta, agora já estou em casa. mas…… fds que vem, tô por aí :)


29/07/21

Alê: O Ariel acabou de me falar do encontro de vocês, fiquei extremamente feliz.

Gui: Amay. Mas confesso q fico nervoso perto dele, parece q estou do lado de uma Clarice ou algo do tipo😂 mas ele é um amor.

Alê: E eu não sei? Por isso que eu converso com ele pelo -2 vezes por semana pelo telefone, nossas conversas duram uma hora e meia no mínimo kkkkkkkk Você é um grande escritor, Gui. Se toca logo se não vou dar na sua cara kkkkkk

Gui: Mas vc é atrevidíssimo, adoro kkkk

Alê: E você tem que ser mais um pouquinho também Kkkk vou dar na sua cara, cuidado Kkkk

Gui: Só com dorgas kkkk

Alê: Então prepare logo o seu kit atrevimento-químico, vai entrar na roda sim kkk

Gui: ❤️ kkkkk


17/08/21

Alê: Amando suas poesias, um pouco como trocar a profusão pela imagem única, bela aprendizagem da síntese pelo Bolaño, quero muito ler esse livro de poesias dele.

Gui: Depois de tanta influência verborrágica o Bolaño me ajuda a enxugar até o osso😂😂😂

Alê: Sim, nossa, que máximo você experimentar o oposto agora, foi visível.


27/11/21

Gui [no meu ouvido na mesa do bar]: Ganhei o concurso da Biblioteca Pública do Paraná…

Alê [agarrando a mão do Gui, boquiaberto]: Seu filho da puta genial! Como você conseguiu o primeiro lugar com um romance gay num dos estados mais conservadores do país???

10/12/21

Alê: Nossa, que incrível! [sobre uma foto do Gui se bronzeando no alto do prédio]

Gui: Criarei uma rotina pra pegar um bronze na hora saudável🙂

Alê: Ajuda muito na questão do humor que a gente estava conversando, além de que vai ficar mais gato.

Gui: 

Alê: hahahahahahahahahahahahahaha


15/12/21

Gui: ❤️❤️❤️ obrigado pelo carinho!

Alê: Alguém tem que te divulgar, amigo hahaha

Gui: ❤️


28/12/21

[Alê pública em seu blog uma resenha de “Marte em Áries”]:

http://alerabelo.blogspot.com/2021/12/uma-leitura-de-marte-em-aries-de.html


27/01/21

Alê: Gui, vamos pra praia esse fds, pelamor??

Gui: Oba! Vamos! 


10/03/21

Gui: Alê, reescrevi o primeiro capítulo de “A Cabeça do herói mitológico”. Veja se você acha que está mais inteligível agora. Mandei para o concurso José Saramago.

Alê: Oba! Mas porque você não me mostrou antes de fazer a inscrição?

Gui: rsrsrsrsrsrs


01/04/22

Gui: Queria botar fogo nessa porra toda de dependência virtual 🔥🔥🔥 E na elite literária e artística paulistana😂😂😂

Alê: Kkkkkkk. Sim, são dois grupos puristas insuportáveis, os biscoiteiros fúteis e os escritores brancos paulistanos. Uma menina acabou de fazer esse comentário. De que os escritores também devem odiar ver os meus biscoitos. Eu quero mais é que se foda kkk

Gui: Amigo, meu único interesse é em escrever, e nisso não tem nenhum excentrismo. Só não curto o que vem depois e acho as pessoas da literatura insuportáveis 😂😂😂 Eu sei q vc planeja e pensa o seu caminho literário segundo os seus termos, e não está errado, porquê não existe certo ou errado nisso. E estou feliz pelas suas conquistas🤘 Tem quem queira se envolver e quem tá cagando e andando pq isso nunca vai mudar e eu pertenço à segunda classe, desculpe se soo alienado😂

Alê: Quando eu tinha 30 anos como você eu não tinha estômago pra essa luta que estou fazendo agora. Talvez seja também uma questão de fase da vida.

Gui: Só não jogo nada. Nem entendo disso. E quem joga não julgo pq sei q tem uma trajetória por trás. Vc joga e te entendo. Sem julgamentos. É muito inteligente e te admiro. Pelo estômago.

Alê: Sim, haja estômago. Mas eu também não acho nossas atitudes opostas. Eu acho que são bem complementares, nós nos fortalecemos juntos, é um coletivo. Mas eu realmente falo com quem eu gosto. Daqui 10 anos a gente conversa de novo sobre isso 😂😂😂😂😂 Se você já escreve esses livros agora, imagina com a minha idade 🥰

Gui: Talvez eu não escreva mais e tá tudo bem. Não é drama. Só cheguei no muro. 

Alê: São bons esses impasses, leva pra um outro nível. Você realmente foi até o fundo numa proposta.

Gui: E talvez depois dos 40 eu descubra novas coisas.

Alê: Aliás, tomara né :)

Gui: Mas agora não quero nada com a literatura.

Alê: Super te entendo. Te respeito, Gui.

Gui: ❤️



terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Uma leitura de “Marte em Áries”, de Agnaldo de Assis Nascimento



O Gui é um daqueles escritores tão talentosos que as críticas de seus livros parecem sempre insossas, insuficientes sequer de captar os fios principais. Desse mesmo jeito foi a orelha que escrevi para seu romance de estreia, o “Horses”, e não sem certo orgulho meio constrangido tenho visto nesses dois anos desde então outros poucos corajosos usando um ou outro de meus conceitos-cortes provisórios para também abrir algum desvendamento sobre a arquitetura e o fluxo encantado de Agnaldo de Assis Nascimento. Provavelmente essas linhas sobre seu novo “Marte em Áries”, 1º lugar no Prêmio da Biblioteca Pública do Paraná em 2021, também não fugirão muito de uma perplexidade besta. Nem ele fala direito sobre seus livros, admite humildemente ter subido nos ombros de uns quantos gigantes, quando muito. Só grita na folha em branco e em sua banda punk, a Versus Mare. Que ódio! Ainda bem que ele admira um pouco meu trabalho também, assim me resolvo no amor da amizade.

“Horses” nos apresentou um carrossel narrativo do mal em que cabeças punk-líricas se elevam uma a uma numa dança circular coletiva muitas vezes deliciosamente contraditória, passeando por redutos da cultura rock no subúrbio paulistano com um olhar tão genuinamente épico, homérico mesmo, engolindo tudo em sua “fúria-calma”, a cidade e todas suas subjetividades possíveis, na bela tradição de Joyce e outros modernistas que só agora realmente parecem estar sendo absorvidos por autores brasileiros de modos mais criativos e sem muitas vênias. É também um romance que se constrói incorporando de forma muito potente, com fluxo, fôlego e sintaxe mais modernas a herança da literatura brasileira até os anos 80, sem passar pelo período mais monocromático dos anos 90 e 2000, com exceção para as influências de obras tardias de Noll e Hilst. Essas influências representam mais que escolhas estilísticas ou decalques de clássicos como se vê por aí, mas uma urgente – e emergente - perspectiva de mundo, um posicionamento político-cultural-existencial diante do desencantamento do mundo, mas sem chororô e sem cinismo, o que é raríssimo, só mesmo pra esses escritores-xamãs-encantadores-de-serpente. Não é à toa queele é músico. “Horses” também me fez descobrir uma nova era nas disputas literárias: agora o subúrbio e o “submundo” são cultos e eruditos, e todo mundo já entendeu o que existe de perversamente excludente nas categorias de literatura marginal, underground, identitária ou coisa que o valha. Sobretudo, o Gui percebeu o essencial: namorar o modernismo é tematizar o enfrentamento do tempo. Cada um de seus capítulos nos coloca no centro das ações por um fluxo de emaranhados internos safadamente hipnóticos que não deixa de explicitar, no verbo e na carne, que o pior mesmo é sempre a espera pelo retorno a um mundo mágico onde talvez nunca tenhamos pisado. Ou então a percepção de que o pesadelo é não conseguir dar corda no relógio no País das Maravilhas.

“Marte em Áries” se alimenta dos mesmos fluxos de pensamento lírico para mastigar a épica da máquina do mundo e nos contar uma história de paixão que orbita principalmente ao redor de um par de estranhos duplos um do outro: Ivan, o narrador, um jovem instrutor de academia de ginástica, morador do centro de São Paulo e, como muitos habitantes desse território de identidades partidas, alguém que parece estar ali para se desenraizar de alguma origem suburbana; seu outro e objeto de sua paixão é Ravi, menino loiro-lindo, bem cuidado, de boa família, violinista, alguém que parece querer preencher certo vazio de sua formação privilegiada com os mesmos desvios hedonistas-utópicos que o centro proporciona. É nesse circuito perigosamente fluido que cruzam seus destinos. Também vale notar que o centro da cidade é adotado aqui não só como um território onde os gays podem existir “naturalmente”mas onde percebem que esta é também uma narrativa forjada, uma liberdade de consumo. Paradoxo a que nos atiramos com fúria diante da consciência de que qualquer outra construção-instituição acolhedora envolve algum desmoronamento interno. Esse é apenas um dos pontos que destacam esse livro muito além de um romance gay. Tolo daquele que não aproveitar esse romance-romance para, inclusive, conhecer melhor os gays. Não é uma narrativa da bolha pra bolha e essa característica pode torná-la desconcertante. Juntar viado e literatura experimental pode ser demais para algumas cabeças formadas pela dinâmica excludente dos nichos mercadológicos. A escrita de Gui não se seduz por uma literatura identitária com mocinhos e vilões. Ivan é um narrador que já se acostumou com o fato de que no centro da cidade toda violência é banal, apenas recompensa pra cachorro faminto, tanto quanto toda celebração já nasce meio de ressaca. Vive no meio fio desesperado entre a busca pelo outro na paixão-sujinha que pontua alguma transcendência no cotidiano e as multidões de sinais pipocando o tempo todo num fluxo que só uma alma um tanto resignada e ainda assim maravilhada poderia suportar. Essa sensibilidade epifânica torna o tempo circular e artificial para os moradores deste território, como se os moradores do centro emulassem o mito de Penélope tecendo eternamente sua mortalha apenas para desmanchar o trabalho na próxima ressaca. É também uma sensibilidade como a que se refere o título, uma conjunção astrológica explosiva, dominada por ímpeto, instinto de sobrevivência, talento para os prazeres, certo misticismo vago como nos lúcidos-melancólicos de Caio F. ou nos tolos-puros de Clarice. 

Com tanta arte enredada, não precisamos muito de enredo, embora o Gui tenha articulado uma escalada dramática de tirar o fôlego, mesmo numa prosa tão densa poeticamente, alternando capítulos em que Ivan narra suas melhores memórias com Ravi e outros em que descobrimos que o violinista loiro está há semanas desaparecido. A técnica da memória involuntária como algo que nos assalta a consciência é usada com habilidade causando constrastes que desafiam o leitor ao mesmo tempo em que oferecem um respiro: o idílio na praia, onde a paixão assume seu mito, e o enterro de Marta, irmã de Ravi, são os pólos extremos que nos colocam em total suspensão. Mas é sobretudo na indefinição da rua que os personagens buscam rasgar suas identidades, ato necessário à sobrevivência de alguma força primal que se descobre indispensável.

 É por isso que a paixão aqui não é uma narrativa banal de bom entendimento entre duas partes civilizadas, mas um milagre entre forças brutas precariamente convergentes. Existiria melhor modo de enfrentar o tempo?Durante a espera por algum sinal do paradeiro de Ravi, enquanto não sabemos se o anjo fugiu por amor demais ou por falta dele, Ivan busca sentido em outros corpos, paixões, aventuras, festas, frestas, vapores, só para admitir que tudo apenas realça o vazio deixado pelo desaparecimento e que, mesmo antes da aparição, as não-palavras estavam lá, desde um tempo muito antigo. Me lembrou um pouco o diário “A Dor”, da Marguerite Duras, em que ela aguarda o marido retornar da guerra e sua espera nos faz entender o próprio nonsense do conflito global, tão secundário na narrativa. Também me parece um diálogo muito original com “A obscena sra. D.”, da já citada Hilda. Lá a memória da paixão faz a protagonista sobreviver parca e porcamente entre o ressentimento da injustiça do outro e o ressentimento de sua própria incapacidade em ser o suficiente para a paixão. Grande enigma ao qual Gui está atentíssimo. Em “Marte em Áries” a paixão é, num primeiro plano, um estudo da paixão gay, as entregas repentinas e inflamadas, uma possibilidade de romper com os ditames familiares repressores, também um jogo narcísico complexo em que pau e cu são apenas marionetes de uma cena maior em que homens transam brigando pra se descobrir menos homens. Paixão de se jogar no abismo, e para tanto a procura até na sarjeta. Sem dúvida, é uma redenção da cidade. O final é belíssimo, não posso contar de jeito nenhum, mas posso dizer que é como se o Thomas Mann ressuscitasse só para esfregar o livro do Gui na cara do Aciman e seu “Me chame pelo seu nome”. Para o autor egípcio, o idílio era exceção, pro nosso tupiniquim a loucura da fuga é uma regra sensata. Sobretudo, o que resta mesmo da experiência de leitura de “Marte em Áries” é a imensa satisfação de não conseguir reconhecer todos os truques de um grande escritor, para quem é evidente que arte e mistério têm suas conjunções secretas.

 


 

domingo, 26 de dezembro de 2021

Duas estreias literárias que não cabem na crítica tradicional



Dois autores gays e seus marcantes romances de estreia, um de Salvador, Rafael Gurgel e seu “Dark Room”, Editora Escaleras, o outro de Rio Claro no interior paulista, Thiago Loureiro e seu “Vinco”, Editora Viseu. 

Para os advogados inflamados das linguagens puras, vanguardas transgressoras e estéticas revolucionárias como foco totalitário da crítica, essa apresentação inicial, geográfica, pode parecer superficial. Mas reparem: só quem defende livro exclusivamente pela linguagem é escritor e crítico hétero, branco, de elite, e suas cobras criadas. Brigam entre si por um reflexo do brilho de James Joyce – tadinhos de nós - talvez para disfarçarem o tédio de sua matéria histórica, as circunavegações ao redor de uma consciência burguesa em seu apê desmoronado mas impecável, o pai que não serve e o filho frustrado, um ressentimento homérico com relação às coisas da rua, vistas com melancolia e nobres idealismos em crise, expressos pelo cinismo e deboche com um sabor de confissão criminal. Sempre haverá os guardiões inférteis dessa ou de outra literatura. E Joyce permanece vivo, entre milhares de anônimos geniais. 

Mas também não posso ser leviano e reduzir livros a seus temas sociais (psicanalíticos não, por favor, dá uma canseira ver essa ciência-arte incrível aparecer tanto como falso mistério na mão da elite paulistana culta). Provavelmente as críticas mais honestas são aquelas que buscam não ranquear os novos gênios da arte, mas reviver a trama tecida entre linguagem e matéria histórica, localizando o autor em algum ponto de uma teia sem centro e sem nenhuma aranha-Joyce para nos comer no final. Sobretudo, no caso de autores gays já dissidentes no próprio gueto, tenho a responsabilidade não só de localizá-los num mapa de interesses políticos que extrapolam a arte, como também devo ampliar esse mapa da produção queer brasileira quando suas tendências não forem o suficiente para expressar as novidades, tudo isso sem reduzir a nova produção à uma arte identitária vista como de segundo escalão. Até porque a maioria da arte identitária dos últimos 15 anos - seu justíssimo momento de glória – não tem mesmo força sozinha para ocupar o centro das discussões mais interessantes sobre uma literatura como contradição e não tese, e é visível como muitos autores novíssimos de nossa comunidade, assim como autores negros, mulheres, indígenas, já perceberam que não basta colocar as ditas minorias como vítimas do Grande Homem Branco. Esse ponto cego dificulta encarar um nó fértil para a literatura, a constatação jocosa de que ninguém presta mesmo. Também precisamos entender os problemas específicos de nossa comunidade sob uma perspectiva mais abrangente, olhar pra fora de nosso umbigo cheio de glitter e bandeiras. Precisamos não só peneirar as ideias fora de lugar para nos alimentarmos delas, como também precisamos com muita urgência entender as corporalidades em espaços específicos para quem sabe superarmos a crise da crítica formalista que tem sido tão perversa com novos autores e independentes brilhantes. 

            “Dark Room” e “Vinco” guardam uma característica recorrente em boas ou más estreias, são livros conduzidos como narrativa de autodescoberta para seus autores. Ambos também usam o território livre da literatura para dar um sentido à memória. Esses fios condutores quase inescapáveis são urdidos com talento em diferentes camadas, desde o enredo até a forma adotada, tanto por Gurgel quanto por Loureiro, ambos já estreando pelo romance e todo o fôlego que exige essa forma em constante construção.

 Em “Vinco”, acompanhamos a trajetória de Otávio como moldura geral de um romance polifônico. Esse narrador-autor é um jornalista branco e heterossexual frustrado com o trabalho e o casamento e que, em dado momento, recebe a missão de conseguir uma entrevista picante com uma autora lésbica em Paraty, durante a Flip. Otávio vê a oportunidade como um respiro tanto de São Paulo quanto de sua formação conservadora no interior do estado. O acolhimento com que a autora lésbica e sua companheira recebem Otávio, leva a entrevista para um outro rumo, o da empatia pelo afeto, a busca do outro como busca de si. É raro ver na produção contemporânea brasileira um personagem hétero que se transforme assim pela presença de um membro da comunidade queer, ainda mais de forma tão mediada. Normalmente são as intransigências da sociedade para com esses corpos coagidos pelo conservadorismo o que prevalece nas narrativas, tema que não deixa de ser importante, sem dúvida tambémpresente nesses dois livros complexos e diretos. No romance de Loureiro, o que encanta o personagem hétero não é o dó pela dor do outro, mas o modo como ele se deixa atravessar por novas formas de amor, novos arranjos familiares, religiosos, de gênero. O jornalista em crise decidtornar essa jornada um livro de entrevistas, e entre os capítulos em que acompanhamos sua busca pessoal, encontramos diferentes vozes expressando a si mesmas a partir de um trabalho literário feito com entrevistas reais e outras imaginárias. Mesmo não sendo membro da comunidade queer, é nela que Otávio se inspira para mudar de vida. Que ponto importante. Também é interessante o autor ter utilizado o recurso de nos revelar uma traição por parte da mulher do protagonista, uma designer fútil e ascendente a faria-limer; nem sempre o homem é o vilão da história, embora Otávio tenha coragem o suficiente para encarar seus próprios limites. É quase como se esse livro tivesse a generosidade de ensinar aos leitores héteroscomo sentir amor ao invés de medo, vulnerabilidade ao invés de força, embora essa também se faça valer nos rasgos de nossas imperfeições, e todo mundo é imperfeito na obra de Thiago, uns mais perversos, outros mais empatas. Sem dúvida, a busca por uma expansão do conceito de amor é um eixo forte do livro, e a constatação de que mesmo arranjos familiares inusitados como trisais, relacionamentos poliafetivos ou abertos podem construir casas harmônicas em que um cotidiano muito simples é vivido na maior parte do tempo como em qualquer lar brasileiro. E Thiago nos faz entrar nas casas dessa maneira, humanizando os personagens por suas carências materiais mais imediatas e o foco na sobrevivência,  no trabalho, também em pequenos privilégios porque não somos vítimas. Fazemos bolo, cuidamos de nossas crianças, limpamos nossas casas, construímos a sociedade. Termina muito bem com a voz oracular de uma travesti, e só faz sentido depois de toda a jornada. Com uma história assim, não é à toa que Thiago tenha querido ampliar sua possibilidade de leitores, para além de nossa bolha, e conquistar também o público heterossexual. Este é um dos maiores trunfos de “Vinco”, o público que têm conquistado. É aquele livro pra você dar pra sua mãe, mesmo praquele seu amigo monogâmico  e ele não vai se assustar, ainda quecolocado diante de uma honestidade e uma franqueza acachapantes.

No caso de “Dark Room”, franqueza seria uma palavra eufemística para expressar a caixa preta aberta por Rafael Gurgel, e será lamentável se interessar apenas a leitores gays. Esse romance também nos apresenta, assim como fez Thiago, um narrador-autor, desta vez jovem e gay, igualmente em busca de um outro, no caso André, um professor-amante, homem cis gay branco de uma geração mais velha que conhecemos em primeira pessoa na construção literária assumidamente forjada por seu narrador-autor. Impossível não lembrar de meus “Itinerários para o fim do mundo“, de conflito semelhante e raramente explorado. Teria sido incrível conhecer a obra do Rafael antes de publicar o meu. O narrador é lúcido, rancoroso e admirado o suficiente para desconstruir uma paixão que foi enganosamente chamada de desconstruída quando surgiu entre o mestre “descolado” e o aluno “livre”. Por mais que o professor André também se lembre da repressão que sofreu desde a infância na sociedade soteropolitana, seu ponto cego é não perceber que sua liberdade foi conquistada pela máscara do gay ativo. Mas ainda que duvidosas, essas experiências, tantas e tamanhas, não deixam de seduzir o jovem narrador, em busca de sua própria corporalidade, consciente das projeções sociais de sua paixão pelo professor que prefere Björk à praia. Com tantas camadas, a narrativa de Gurgel se instaura muito mais na desconstrução do gênero homoerótico ao modo da linhagem fértil de Genet, Roberto Piva e tantos outros românticos obscuros geniais, mesclando grotesco e sublime, dentro de um referencial do romance contemporâneo que explora o fragmento da memória de forma não linear e mais associativa, pagando alguns tributos diretos  a Caio F., cada vez mais perto, cada vez longe. Como autor de uma nova geração, Rafael utiliza esse erotismo errante que encanta e ao mesmo tempo denuncia para tematizar o falocentrismo presente mesmo em pessoas cultas e alternativas. Com issocapta uma camada muito mais sutildesse tipo de violência e ainda nos ambienta uma Salvador fora do clichê de um remelexo solar, muito mais ligada à uma urbanidade deliciosamente distópica-nostálgica que não deixa de se referir ao famoso bairro boêmio da Santa Cecília em São Paulo, ou a uma Nova York cosmopolita e noturna onde podemos encontrar algum duplo de Madonna. Sob um olhar ora debochado, ora sacralizante, Rafael não deixa de se filiar à famosa linhagem das narrativas sobre a libertinagem baiana – o desejo aqui é o grande motor que encadeia os fragmentos, em disputa com a memória, enquanto que mais para o sul do país parece que a memória domina o desejo - sem deixar de ironizar o clichê baiano de liberdade, como no momento em que expõe personagens em disputa para ver quem será o grande substituto de Raul Seixas como anjo caído da cidade. E como resolver esse impasse? Na segunda e última parte do livro, de apenas algumas páginas preciosas e chamada de “Glory Hole”, Rafael nos propõe um caminho tão inusitado quanto profeticamente óbvio: uma ontologia poética-profética do cu. Com tom evocativo, muitas vezes invocatório, certamente com pitadas tanto de poesia lírica quanto épica, Gurgel mobiliza diferentes recursos para conceituar e exaltar o cu não só como o órgão sexual sem gênero por excelência, espécie de deus salvador do corpo cercado de couraças, mas sobretudo como boca que emite as mensagens que o rosto não quis dizer. A erótica do cu é também uma ética, uma política, o final oportunamente aberto para um ótimo romance de estreia.

Fiz questão de escrever esse texto não só para inserir essas duas boas estreias numa perspectiva crítica que julgo urgente e necessária, mas sobretudo para que não caíam no vácuo das correntes críticas hegemônicas e para que todos possamos usufruir do modo como esses autores tensionam os gêneros não por serem livros identitários, ou independentes, ou imaturos, mas por criarem pontes em potencial que podem interessar todo tipo de literatura. E sociedade.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

“Conectados & Desconectados”, de Daniel Manzoni


Li em dois tempos a novela “Conectados & Desconectados”, recentemente publicada pelo amigo Daniel Manzoni. Confirmo minha intuição: esses autores que aprenderam a vida na área da saúde e das biológicas têm uma agudeza de olhar sobre as relações humanas deliciosamente cruel. E Manzoni foi esperto em casar esse olhar cortante com nossa melhor linhagem melodramática, aquela que vira a chave e enfia o pé na jaca da desgraceira como Nelson ou Cassandra, nas mãos dos quais tudo vira tragicomédia. Bem difícil alcançar esse tom, só pra quem tem bastante consciência de nossa brasilidade, de nossas paixões doentias a esmo por um país sem força de lei. Essa novela intensa de 70 páginas usa de forma bem pontual a estrutura das narrativas rocambolescas e policiais para falar da cisheteronormatividade dos gays paulistanos, com especial ênfase para os rapazes de classe média baixa que se ressentem por não ter os mesmos privilégios que os rapazes da Bela Vista e Jardins. Rapazes para quem nenhum amor é destinado, que dirá uma bela união civil com festa e bailado. Claro, sua arena não é só a cena de bares, boates, restaurantes e academias de ginástica que vão do alto ao baixo gueto da cidade, mas principalmente as redes sociais. Os capítulos da novela são estruturados como posts públicos em que um narrador misterioso é quem nos conta essa história que chega às raias do crime. Destaque para as reações abobalhadas de supostos internautas nos comentários que também fazem parte do livro. Gosto bastante como o Daniel consegue apresentar o lado perverso dos homens gays, sem apresentá-los como vítima ou vilões estanques, mas analisando o background social de cada um sem ser pedante. Além da escrita talentosa, creio que este é o ponto que mais destaca essa novela em meio aos dramalhões gays que circulam por aí. Ansioso por mais histórias assim. Abaixo deixo um gostinho da novela:




quarta-feira, 15 de julho de 2020

Leitura irmã dos “Itinerários para o fim do mundo”


Um dos melhores presentes é quando um escritor que admiramos escreve suas boas impressões sobre nosso trabalho. Essa semana, o querido Teofilo Tostes Daniel, meu colega da Editora Patuá, autor do brilhante “Trítonos, intervalos do delírio”, livro que tem tantas afinidades com o meu, veio me contar essas impressões sobre alguns mistérios formais e de enredo que regem os “Itinerários para o fim do mundo”. De certo modo, ambos buscamos alimentar nossas narrativas com o inominável da feitiçaria e magia brasileiras. Obrigado, amado! Seguem suas impressões:


“Alexandre, querido,

sou um leitor vagaroso. Há cerca de dois anos, seu livro ficou me esperando nas minhas instantes. Cheguei a pegá-lo e colocá-lo na mesinha de cabeceira da cama umas três ou quatro vezes, mas só o li agora. Bom, não exatamente agora. Na semana passada. Terminei de ler o "Itinerários para o fim do mundo" faz exatamente uma semana hoje.

Em primeiro lugar, quero dizer que não conseguia largar o livro. Sempre que estava fazendo alguma coisa, pensava na hora de pegar o livro. Tanto que o li rápido (para os meus padrões). Acho que foram uns cinco ou seis dias de mergulho. E acho que essa palavra define bem o que foi essa leitura. Um mergulho no assombro e no encanto. Se foi assim desde as primeiras páginas, na experiência do personagem na China experimentei o primeiro êxtase. Suas palavras, querido, têm o poder de nos transportar para as paisagens que você narra com uma força incrível. Desde os detalhes mais simples sobre como o personagem conheceu sua conterrânea praticamente à beira da Grande Muralha até o ritual repleto de detalhes. Preciso dizer que encontrei no seu livro todo, e em especial nessa parte, uma identificação imediata. Ali estava muito do que eu desejo fazer com a linguagem, quando escrevo. E essa identificação com os procedimentos narrativos de um autor não são coisas que acontecem frequentemente.

Outra forte identificação, dessa vez pessoal, com o seu personagem, foram as referências de infância. Acho incrível como você condensa praticamente num único acontecimento "desimportante" elementos que poderiam estar dispersos em anos de experiência. E essas referências têm a ver com a geração. Afinal, também conheço as mesmas referêcias infantis do personagem -- também fui criança nos anos oitenta. Quase pude ouvir o chiado das televisões, os sons e timbre das vozes dos apresentadores dos programas. Tudo ali criou uma escrita sinestésica avassaladora. 

Achei fantástica a forma como é apresentada, de maneira quase impessoal, a história do personagem com a Clara. Ao ponto de a narrativa ir declaradamente para uma terceira pessoa -- dada a distância do personagem com aquele fato. Ao mesmo tempo, como é viva não só a narrativa do encontro dele com Clara, mas principalmente a da única paixão de Clara.

No curso da apresentação de personagens arrebatadores, o Don Juan foi para mim não só o personagem mais apaixonante, como também uma perfeita síntese do tempo. Em sua fala sobre o envelhecimento, acabei encontrando mais o meu memento mori dentro do seu livro do que na morte do seu protagonista, páginas à frente.

Minha sensação é que o livro vai se construindo por meio das narrativas do personagem mais velho. O personagem da mochila vermelha parece sempre meio fugidio. E esse contranste é constitutivo no livro inteiro. E o curioso foi que nas primeiras páginas, achei que o livro seria a história desse personagem, que se apaga (e acaba sendo), mas ele some engolido nas narrativas do marinheiro. Embora volte com uma força e uma presença espantosa no fim -- tanto na cena da morte do outro personagem, quanto a seguinte, em que ele aparece mais velho, quase como um mendingo ou um viandante.

Tive apenas um tropeço em toda leitura, um momento em que o fluxo narrativo me estancou, em vez de fluir. Foi pouco antes de o navio se prender e os dois se lançarem no mar escuro. Quando o personagem da mochila vermelha se anuncia assassino diz que vai estrangular o outro. Talvez seja o momento mais obscuro, para mim, de toda narrativa. E por mais que no fim eu consiga supor uma série de coisas sobre esse trecho, o leitor que sou ainda deseja ter viajado sem ouvir esse anúncio. Talvez porque esse anúncio me desestabilize, e a gente não sabe o que há de verdade naquilo que foi enunciado. Enquanto escrevo, penso que talvez eu não pudesse passar sem essa provocação. Que toda esse enovelamento de identificações precisasse ser cortado. E esse trecho pequeno (entre as páginas 114 e 116) corta forte em mim esse novelo. Tanto que passei todo o trecho posterior com mais medo de os personagens se salvarem, para que ocorresse um estrangulamento na praia, do que deles se afogarem no breu líquido da noite marítima. rs

Querido, talvez essa mensagem te chegue tateante. Ela é uma tentativa de dizer o quanto amei ler seu livro! O quanto ele me falou, em muitas camadas. De muitas formas diferentes. Chegando ao fim da leitura, senti com muita força que quero ler seu livro anterior, Nicotina Zero, e todos os próximos que certamente virão. Porque seu "Itinerários para o fim do mundo" me fez desejar ser teu leitor. Constante...

Um beijo, repleto de carinho,
Teo”

quarta-feira, 15 de abril de 2020

As lâminas absurdistas de Marcelo da Silva Antunes


Fazia tempo que eu queria ler a produção do Marcelo da Silva Antunes, não só pela qualidade cortante e lapidar de seu fluxo (“A vida não é teste, é texto”), como também por seu atrevimento na hora de vender o próprio peixe. É daqueles autores independentes que se destacam em meio a tanta gente gritando na quebrada, e chega abrindo seus diálogos com o tal do meio literário (elitista) como um todo. Longe de ser daqueles autores, jovens ou não, que incomodam ao querer aparecer a qualquer custo, sobretudo pela vitimização do discurso, Marcelo é seguro da urgência e justeza de seu grito, da força de seu humor lúcido, e sabe que os espaços (jaulas) que lhe seriam reservados precisam ser contestados. Tem fogo e água nos olhos, e não vai deixar barato. Recebeu a benção do mestre Marcelino Freire. Os resultados são visíveis. Com sua parceira de vida e arte, Aline Macedo, criou a Borboleta Azul, selo independente responsável pela produção de seus próprios livros e de parceiros. Mostrei os livros deles para alguns amigos que trabalham com design de produtos e todos foram taxativos ao afirmar o quanto são muito mais bonitos que as capas insípidas e clean da maioria dos livros das grandes casas editoriais.  Esse par da Zona Norte de São Paulo é a prova viva do quanto a revolução da democratização dos meios de produção no mercado editorial é uma das soluções mais certeiras para o futuro de nossa arte, com muita qualidade.
A revolução não é só forma, claro, mas conteúdo. Já em VIVACA percebemos um hibridismo muito feliz poucas vezes permitido nos meios oficiais, mesmo quando se dizem muito experimentais. Aqui temos um livro que mistura receitas vegetarianas escritas ao modo literário, mescladas com poemas urgentes sobre o dia a dia nas periferias da vida. É o que o estômago engole e o que ele devolve, em harmonia difícil de tecer. Aliás, faltam livros assim, obras que misturam a poética de um cotidiano mais prosaico do que os dramas de apartamento que normalmente são celebrados, com as utopias de um novo mundo onde o Brasil de fato acontece (“gosto quando tem placas de oferta e você sempre/ diz que oferta é oferecer/e me dá uma aula de promoção, propaganda e reforma agrária”). Como eu sempre gosto de dizer, só acredito em macho de esquerda que saiba fazer a própria comida e limpar a própria sujeira, e Marcelo não só sabe, como fez um livro sobre isso.
Mas o que impressiona mesmo é seu livro de contos OUTROS CORTES. É um projeto que começou como zine e ganhou corpo em livro. Não é qualquer voz falando da fome, do trabalho precarizado, das mães guerreiras, da ética outra que existe nos territórios onde a lei não chega. É a voz de alguém que reconhece a malícia que ganhou cedo demais, mas não se orgulha disso, como normalmente se vê por aí. Ao contrário, tenta preservar um olhar de criança e sabe o quanto esse equilíbrio é frágil, sujeito à luta diária. Talvez por isso tantos de seus contos  nos revelem as relações não como simples denúncia, como os autoproclamados escritores marginais, mas como absurdos inerentes à própria condição humana, como um bom escritor de qualquer classe ou geração é capaz de fazer. Aqui o nonsense vem para ressaltar o que o embrutecimento, tanto dos algozes quando das vítimas, tende a naturalizar. O olhar de Marcelo se irmana ao de autores como Camus e Beckett. O caso mais flagrante é o conto “Lembrança”, um diálogo entre dois maninhos tentando reconstruir a memória de tempos melhores que talvez nunca tenham existido. Aqui está o grande salto de seus contos.
Outro traço marcante que o diferencia dos autores ditos marginais de outras gerações é o cuidado em não criar seus próprios heróis, principalmente se estes forem homens. Como autor sensível de uma nova geração, Marcelo não glamuriza a luta e chega mesmo a apontar, em muitos contos, o machismo que fragiliza seus iguais. Essa perspectiva se reforça quando vemos tantos contos representando as mulheres guerreiras das quebradas não como santas abnegadas, mas como verdadeiras feiticeiras revoltadas, nada puras e muito conscientes de seu próprio fogo.
Por essas e outras, é bem perceptível o quanto a voz jovem de Marcelo da Silva Antunes se destaca e promete. Como um Geovani Martins no Rio de Janeiro, esse autor paulistano nos revela o absurdo tragicômico de uma realidade em que a naturalização de uma guerra civil de décadas tenta ocultar, esses pequenos gestos de violência quase invisíveis que insistimos em deixar passar batido para nos comover com desgraças maiores. Ele nos lembra o tempo todo de que, apesar dos esquartejamentos que muitas vezes poupam o sofrimento, são esses “outros cortes” que nos matam diariamente e também nos permitem renascer mais fortes.

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Resenha - Um presidente para um tempo de egoístas humanitários



O Ditador Honesto é o quarto livro de Matheus Peleteiro, autor jovem, prolífico, cheio de gás, apaixonado. Acabou de ser lançado com sucesso na Bienal de São Paulo e na Livraria Cultura, em Salvador e nos mostra a imagem de um ditador honesto, um advogado que pensa ter a solução para todo o Brasil, cheio de carisma, entusiasmo, ingenuidade e bons ideais, e inteligência para agregar em sua figura todas as pautas mais importantes das minorias e da maioria pobre, sendo exaltado tanto pela esquerda dividida e arrasada, quanto por uma direita que se entrega ao movimento de crescimento econômico que suas novas leis de impostos trazem a todo Brasil, tornando seu líder, Gutenberg Faria, um ícone e mártir internacional.
Quem nos conta sua trajetória é um homem muito simples que sempre havia sido seu secretário, desde os tempos das firmas de advocacia. Este narrador apenas recebe as tarefas de seus superiores, intercede em poucos casos e, anos depois dos fatos, num futuro quem sabe ainda mais sombrio, nos conta sua história de encanto pelo chefe e líder da nação. Gutenberg é extremamente sedutor, tem lábia e fé no resgate dos ideais de justiça dos grandes democratas românticos, vindos de família pobre. Não deixa de ser uma figura egoísta em sua paixão cega, mas sua ambição não parece tamanha como veremos.
Ele não tem a força totalitária de um Grande Inquisidor, personagem célebre do último romance de Dostoievski, que aprisiona Cristo por julgar que este não poderá oferecer liberdade, igualdade e fraternidade senão para uma pequena minoria de alguns milhares. Estabelece a dialética do pão e da pedra. O grande inquisidor nos diz: se eles do povo se organizarem por si mesmos, nas mãos deles o pão do trabalho se transformará em pedra de guerra, enquanto que, organizados por nossa hierarquia, e por nossas mãos, dos totalitários, as pedras se transformarão em pão em nome de seus valores humanitários, pois o ser humano só é capaz de ser regido pela autoridade, pelo mistério e pelo milagre. Já o Ditador Honesto, que dá nome ao romance de Peleteiro, precisa mistificar a si mesmo, tanto como Cristo quanto como Inquisidor. A população brasileira não dá conta do milagre quando Gutenberg ascende ao poder e faz todas as conquistas impossíveis. 
Ele é mais um anti-herói trágico como o Gatsby de Fitzgerald e, como neste clássico americano sobre o poder, é narrado por seu amigo e admirador que o vê como o próprio mistério. O jovem nos narra uma trajetória política e familiar angustiada, de um líder tentando entender seu próprio limite e que, após todas as conquistas, perde a sede de mudança, chegando a desistir de uma reeleição. Nobre. Entretanto, o que nos interessa em sua ascensão ao poder é o modo como o idealismo que chega ao poder sutilmente coopera ou não com a corrupção.
A história se passa num futuro próximo, não há alusões a inovações tecnológicas, não há discussão com políticos administradores ou cabeças importantes do mercado financeiro de capital mundial. O livro é focado no Brasil em tom de fábula. Vemos quase que um rei das antigas, criando leis e revisando impostos, como se isto só fosse possível num governo centralizado e forte como a monarquia. Sua trajetória é a do diabo vaidoso e compassivo aos homens, como o Dr. Fausto de Thomas Mann. Numa eleição milagrosa, cresce nas redes sociais e num partido novo, fantasma como todos os outros. Ganha base parlamentar suficiente para não ser incomodado por nenhum grupo radical. Nesta fábula, o foco está em chamar a responsabilidade para o leitor-eleitor, ao invés de apenas culpar os políticos e focar em suas artimanhas corruptas. A pergunta é para nós: o quanto conseguiríamos suportar um sistema de igualdade e livre circulação?
Matheus Peleteiro tem aprendido com fabulistas modernos como Saramago, Camus e Hilda, de leve. Os três trazem como foco a ambiguidade do homem em situação de poder, os três trazem a sombra do mais humilde e do mais poderoso como lição. Ao redor do ditador honesto é revelado um teatro de máscaras, como nos descreve Artaud em seu texto O teatro e a peste, o qual se casa com a narrativa fantástica La peste, de Camus, onde uma sociedade acometida pela corrupção e doença, deixa cair suas máscaras, e como membros de cada instituição importante que rege a sociedade acaba invertendo seus valores para sobreviver à urgência do caos.
Gutenberg poderia ser definido como um ufanista egoísta, segundo o próprio Matheus, e quer mudar a própria realidade. Neste sentido, a crítica caberia a muitos de nossos atuais governantes, não só a um ou outro. Este livro iguala todos os rivais. Não se resume a uma intriga policial de nível governamental como no romance Agosto, de Rubem Fonseca, mas numa metáfora fabulesca da relação deste líder com seus assessores idealistas imediatos e a população civil brasileira.
É um acerto de contas para nossas consciências, vindo de um jovem escritor e pesquisador das leis, egresso de uma faculdade de Direito, como grandes nomes do nosso romantismo literário mais rebelde, um Álvares de Azevedo, um Castro Alves, um Gonçalves Dias, e até um Fagundes Varella. No mundo de hoje, temos que ter mais armas contra o cinismo, as quais Peleteiro não deixa de buscar num Bukowski, sempre que necessário. Fico feliz que um rapaz tão jovem tenha dedicado a escritura do seu quarto livro a trazer a questão mais urgente do nosso país com ironia tão fina, tentativa só alcançada com o mesmo porte por Ricardo Lísias, no livro sobre Eduardo Cunha.
Li O Ditador Honesto em apenas dois dias, embora nos traga tantas questões. Tem a urgência dos nossos tempos, e imagino que conquistará muitos leitores interessados em reconhecer as próprias ambiguidades neste momento tão sombrio para política brasileira. Este livro se coloca na mistura entre um romance histórico e uma ficção distópica, assumindo o extremo da fábula de um passado que já nos condena a um futuro cada vez mais fechado. Quem substituirá nosso ditador honesto?, nos resume.
Este potente neófito das letras de Salvador, Matheus Peleteiro, joga a resposta para todos nós, trabalhadores de um país ainda amador. E salve Jorge Amado, seu conterrâneo mais célebre, que sempre foi direto em suas críticas políticas, com a verdadeira vocação satirizante de um brasileiro terno e sábio que conhece sua gente.

Alexandre Rabelo é autor dos romances Nicotina Zero, Hoo Editora, 2015, Itinerários para o fim do mundo, Editora Patuá, 2018, e tem sua base em São Paulo.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018


AMORTALHA (Editora Patuá, 2017) é o primeiro livro de Matheus Arcaro que leio. São contos alinhavados por este conceito-contradição fundamental que o título sugere, a descoberta do amor no confronto com a morte, a descoberta da morte na experiência limite do amor. Se este livro nos contasse uma única história, com poucos personagens e um herói, o título seria pretensioso, pois estaria tentando buscar esse imenso universal que hoje é cada vez mais denunciado como ideológico. Porém, ao final da leitura, perdoamos e aplaudimos o autor, pois percebemos que ele conseguiu reunir personagens dos mais díspares em torno desse tema central, dando a cada um deles uma combinação distinta e bem escolhida de gêneros literários que vão do monólogo interior à distopia, com destaque para um realismo justo, sintético, fruto de um olhar concentrado mais que de um exercício estilístico vazio, como encontramos aos montes por aí. 
De modo geral, Matheus se debruça por tipos dos mais comuns, aqueles que não ganham muita visibilidade para nosso gosto colonizado que só se interessa pelo pobre enquanto pitoresco, bufão ou vítima. São professores, policiais, operários, evangélicos, enfermeiros, um engenheiro amargo, um gay amargurado e suicida, duas lésbicas que tomam a iniciativa de tentar resolver um mistério fantástico que aflige a todos, mais algumas mães com desgosto, mas que nunca deserdam seus filhos, além de crianças perplexas diante do mundo adulto, filhos ingratos, pais de primeira viagem, amantes ambíguos, animais domésticos vivendo o amor e a morte num cotidiano inglório, sem os melodramas novelescos que esses mesmos brasileiros gostam, sempre julgando que suas próprias vidas não são dignas de ser representadas na tevê ou no Castelo de Caras dos Alternativos. A maioria vem de famílias brasileiras médias, pobres. E sobre elas Matheus busca um olhar empático que não olha de cima, já que vem desse mesmo meio e para ele retorna após uma sólida formação literária e filosófica (apenas seu ateísmo me parece um pouco panfletário). Acolhe sem idealizar, ao mesmo tempo que explora seu lado patético sem cinismo. Quase como um encontro entre Guimarães Rosa e Nelson Rodrigues, ou entre Machado e Rubem Fonseca. Aqui a família brasileira é defendida e denunciada ao mesmo tempo. Ninguém tem salvação e por isso mesmo todo mundo é lindo. Seus traços são predatórios e egoístas, meio bonachões, típicos do capitalismo numa sociedade pós-escravista, um pouco na tradição do Sargento de Milícias, mas há sempre o refúgio numa certa compaixão, mesmo que o brasileiro só seja solidário no câncer, como disse Nelson. 
A prova de que este livro é grande é dada pelas questões que ele me pede para fazer à sua escrita: até quando a mulher brasileira demonstrará sua força apenas para defender famílias em frangalhos? Até quando gays e outros desenraizados quererão a salvação num grande amor, e sem isso se tornam cínicos e suicidas? Nesse contexto, pergunto a Matheus também até que ponto ter um filho e constituir família no século XXI pode ser o conforto e a solução final? Deixo essas provocações para que ele explore, em seu olhar tão rico e abrangente, outras formas de união e desafeto que não passem pelo familiar. Fale dos ricos também, Matheus, vamos adorar. Fale mais dessas mulheres que não sejam sempre vítimas por serem fortes demais para nós ou fracas demais para si mesmas, homens que não precisem idolatrar um feminino ideal para ser validarem num outro tipo de sensibilidade diferente da decadência que o arquétipo do macho hétero representa. Mas esses são desafios para o futuro de sua escrita, pois o presente está muito bem alicerçado, com destaque para as imagens poderosas onde entrelaça o concreto com o espiritual ou existencial, sobretudo no olhar sobre os movimentos individuais do corpo, onde suas contradições são melhor captadas que na exploração sistemática de seus dramas interiores, ainda que esses sejam deliciosamente pontuais.  Gostaria também de ver mais esse tipo de olhar tão preciso na criação de diálogos tão incisivos quanto suas descrições, ou tão surpreendentes quanto seus enredos com finais impactantes ao modo da literatura policial. Tenho certeza que ao praticar estas últimas emancipações em seu espírito inquieto, Matheus Arcaro será cada vez mais recebido com um dos nomes mais promissores deste momento borbulhante e desafiador da literatura brasileira.

P.S.: adorei o diálogo entre Freud e Sócrates, pelo olhar de Foucault. Gostaria de ver a continuidade desta terapia, com menos paródia, com Freud menos Nietzsche e um Sócrates menos Woody Allen. Poxa, a gente ama esses caras. Seus limites não devem apagar seus méritos. 

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Resenha-Carta para o romance "A Resistência", de Julián Fuks


Julián, esta resenha sobre seu romance “A Resistência” não poderia aparecer no formato corrente, com questões e assertividades que tentam se validar numa política e num circuito do conhecimento. Meu acerto de contas é com você, para romancearmos um pouco. Alguém que não conheço e não gostaria de abordar como autor, mesmo porque você nos lembra no livro o quanto a forma romance resiste em despontar como o lugar onde os gêneros textuais exploram seus limites e confluências. Além do mais, não podemos nos esquivar de abordar “A Resistência” como um romance que dialoga com isso que se convencionou chamar de autoficção. Sobretudo, preciso encontrar delicadeza para forjar uma proximidade que me permita contar minha própria resistência a um livro, de forma fraterna, como você merece por ter explorado as dificuldades da alteridade, mesmo entre familiares e nações, passado e presente. 
Antes de chegar na página em que seu irmão grita que vocês falam, falam, falam e nunca veem, eu próprio havia levantado essa questão. Sabe, sou um cara que não conseguiu resistir aos problemas de duas graduações da nossa FFLCH, História e Letras. Lá tenho muitos amigos, admiração de professores, tenho uma pesquisa em teoria literária, e também sou ovelha negra da família. Porém, até o presente ponto, minha resistência nesse caso foi desistir da academia, assim como desistir do teatro, do cinema, do magistério, da música. Abandonei as duas graduações e hoje moro entre dois mundos distintos. De um lado, em nossas prateleiras de livros, de outro, moro no quarto do seu irmão. Na sala, sou escritor, no quarto, sou seu irmão. Por um um lado, admiro sua busca pelo valor da sinceridade, por um real impossível que não seja mero recorte de nossas projeções, e por um diálogo em forma de abraço como ação mágica por excelência. Admiro sua franqueza e brilhantismo em apresentar um romance cujo centro não está nem na história, nem na memória, nem na ficção, mas na contradição de qualquer discurso positivador. Nesse sentido, até esperei que você desmontasse um pouco mais os pressupostos da psicanálise, essa profissionalização da intimidade burguesa, que tanto amo e odeio. 
É lindo como, ao repor a trajetória de sua família numa história que lhes foi roubada, você faz do silêncio enclausurado de seu irmão a ferida de um exílio herdado. Ao mesmo tempo, fiquei me perguntando por que vocês não procuraram visitar e ocupar os circuitos de rua onde o irmão se buscava. Fiquei imaginando-o numa aventura de descobrir o corpo, de sentir-se corpo, resistindo a existência no prazer, medindo a dor na saúde da carne, na sensação, mais do que se perdendo em subjetividades bem elaboradas e compreensões firmes.
Você sabe, acabou na história do romance o apelo à aventura exterior. O mundo já foi conquistado, pelo menos na ótica do hemisfério norte. Você próprio, muito justamente, é cauteloso para não romantizar resistência política de seus pais como uma aventura. E quando nos aponta o quanto eles acharam um outro modo de resistir no exílio, fiquei me perguntando: será que o irmão queria se mostrar parte da família ao resistir com um silêncio corporal ainda mais perturbador que aquele de sua própria família? Será que houve uma disputa de silêncios de naturezas diferentes? Talvez o silêncio do seu irmão seja a resistência de um corpo contra a civilidade. Não deve ser fácil ter uma família bonita e estruturada, e ainda devedora de um país acolhedor em seu exílio.
Muito tem se discutido sobre como a história do romance teria uma linha mestra, que seria o devassar da noção da intimidade burguesa. Desde as cartas de Pamela, de Richardson, os romances foram abrindo portas proibidas neste conceito de lar como proteção, conforto, centro da vida, e ainda não ousamos abrir todos os cômodos. Em Flaubert, não vemos o sexo, vemos a carruagem trêmula e protetora que conduz os corpos pelas ruas caóticas de uma grande civilização. 
Eu acredito muito que as tensões do corpo elétrico são a narrativa em que o romance ainda não chegou. A descrição do sexo ainda é fetichista e subliterário. Vivendo a desafiante experiência de ser gay numa época de questionamento milenar do patriarcado, e sendo escritor, penso que ainda destacamos muito uma dignidade para o invisível, seja essa uma religiosidade conservadora, seja uma militância de outras formas mais inclusivas de discurso, sem perceber sua violência à existência imediata dos corpos. O jogo, na esquerda e na direita é muitas vezes o mesmo: afirmar identidades perante o fantasma do homem universal. Assim, a afirmação da subjetividade pode representar resistência ou morte. 
Não percebemos o quão corporais são as palavras. Corpo e palavra ainda não se reencontraram desde a dupla revolução do iluminismo racionalista e do tecnicismo industrialista. Vivemos acreditando que o mundo interior, o universo da subjetividade, é um espaço de respiro e resistência, sobretudo quando questionamos valores e afetos, identidades e ideologias. Ainda reiteramos, mesmo entre os maiores dissidentes, a filosofia aristocrática e masculina dos gregos antigos.
Existe uma corporalidade tácita em seu livro que eu adoraria ver mais, uma corporalidade que resiste como lugar de refúgio para os traumas. Uma timidez aqui, o desejo de um abraço ali, a paciência na hora do chá acolá, o constrangimento físico no museu das avós, o não pertencimento ao corpo de nenhuma cidade. Julián, eu queria te dizer, em tom de gratidão por seu belo livro, que todos nós somos herdeiros de uma série de exílios. A alienação, como você bem deve saber, é estrutura constitutiva da subjetividade nesse sistema produtivo. Todos estamos sendo estrangeiros, e quem mais está em crise identitária é o homem branco, seja o "bruto", seja o "sensível", seja hetero, seja gay, seja rico, seja pobre, estamos todos cada vez mais desalojados de um patriarcalismo em crise que nos colocava no centro do discurso de universalidade forjada e naturalizada. Nossa sensibilidade hoje, quando queremos ser sensíveis, é a da mea culpa apenas, o que é triste. Até que ponto não reproduzimos em nossos próprios exílios subjetivos impossíveis a violência que combatemos na objetividade possível da história como narrativa do patriarcado, seja de esquerda, seja de direitaSob esse contexto, não seria a própria história da subjetividade uma narrativa romanceada e profissionalizada desta crise do homem universal, que narra seu mundo como se fosse o de todos?
Sei que são questões que convidam a longas conversas, a uma luta de muitas gerações ainda, e espero que possamos caminhar juntos. Por ora, espero apenas deixar meu convite a uma amizade franca entre duas pessoas instaladas em lados diferentes da porta de um quarto. A casa ainda é a mesma. 

Grande abraço, 
Ale

sábado, 16 de dezembro de 2017

A vida vista em plano médio

Resenha do romance enquanto os dentes, de Carlos Antonio Pereira, Editora Todavia, 2017

Sete anos numa cadeira de rodas produziram um ótimo escritor. E você lê as 100 páginas no mesmo dia em que compra o livro. “Enquanto os dentes”, de Carlos Eduardo Pereira, é uma bela estreia editorial, aposta certeira e corajosa da Todavia no gênero romance. A capa maravilhosa conta toda a história. 

O narrador nos traz muito próximo de Antônio, cadeirante de cerca de 40 anos, em sua travessia saindo do “antigo apartamento“, como ele chama agora a casa onde morou por alguns anos e onde foi mais feliz, pintando seus quadros, fotografando e circulando pelo mundo das artes, egresso de um curso de filosofia, faculdade que abraçou após abandonar cinco anos da escola da Marinha, onde era conhecido como “libélula azul“ pelos parceiros num ambiente de disciplina e violência, com sentimentos de supremacia, machismo e hierarquização. Antônio havia seguido a carreira do pai, o Comandante, um homem branco, de pensamento militar que se casara com uma negra numa relação de quase escravidão. Ela sobrevive buscando verdades na igreja, quando o homem permite, e visita um pouco a vizinhança em Niterói, para onde Antônio agora tem de voltar. Não fala com o pai há 20 anos de ódio e afastamento. Mas foram eles que sobraram, pois o corpo em processo degenerativo não consegue mais se manter só, e a simbiose com a cadeira de rodas é um processo dolorido. É difícil se tornar cyborg, de modo que Antônio tem náusea até com o gosto metálico da maior parte dos alimentos que ingerimos. Antonio é um personagem que nos põe numa perspectiva de vida vista em plano médio, e com medo de cair ainda mais. Seus cinco sentidos estão desaparecendo, o tempo presente elástico, e a travessia de barco, de volta o lar, invadida pela memória dessas outras tantas travessias difíceis em sua vida, vai costurando, do Rio a Niterói, uma trajetória vivamente atenta aos detalhes das ruas e lugares, pontos de fuga na urbanidade densa do Rio. Essa cidade, como qualquer outra, flui a eterna presença do peso do patriarcalismo nas pequenas relações, mas também é lugar de esportes, mar, e um amor perdido que não segurou a barra do acidente e tudo que veio junto. De todo modo, naquela Rio de Janeiro de alguns anos atrás, ainda se podia ser gay mais livremente do que no mar controlado por homens. A técnica de Carlos Eduardo me lembrou muito a de Marguerite Duras, nas evocações objetivas da própria subjetividade, e nas alternâncias bruscas entre passado e presente, ambos avaliados de forma seca, porém muito elegante, crua mas alusiva, e repleta de memórias quentes. As alternâncias entre a viagem de volta o lar, que avança lentamente, e a memória que se reconstrói, é tecida com habilidade de um parágrafo outro, mudando de assunto bruscamente mas costurando os fios que ligam um tempo ao outro. Há muito da técnica cinematográfica aqui. É um livro forte que vem de uma experiência que só poderia ser considerada de marginal pela centralidade do homem branco, o qual veria esse romance apenas como um bom exemplo de representatividade na literatura, quando é mais, uma brilhante caminhada por vários desafios mortais e cruéis colocados pelo patriarcalismo, e que com ele dialogam de forma franca, sempre “muito educado“, como o próprio narrador nos diz, tentando apenas guardar tudo que se passa nas travessias, e esquecer os silêncios.