segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Resenha - Um presidente para um tempo de egoístas humanitários



O Ditador Honesto é o quarto livro de Matheus Peleteiro, autor jovem, prolífico, cheio de gás, apaixonado. Acabou de ser lançado com sucesso na Bienal de São Paulo e na Livraria Cultura, em Salvador e nos mostra a imagem de um ditador honesto, um advogado que pensa ter a solução para todo o Brasil, cheio de carisma, entusiasmo, ingenuidade e bons ideais, e inteligência para agregar em sua figura todas as pautas mais importantes das minorias e da maioria pobre, sendo exaltado tanto pela esquerda dividida e arrasada, quanto por uma direita que se entrega ao movimento de crescimento econômico que suas novas leis de impostos trazem a todo Brasil, tornando seu líder, Gutenberg Faria, um ícone e mártir internacional.
Quem nos conta sua trajetória é um homem muito simples que sempre havia sido seu secretário, desde os tempos das firmas de advocacia. Este narrador apenas recebe as tarefas de seus superiores, intercede em poucos casos e, anos depois dos fatos, num futuro quem sabe ainda mais sombrio, nos conta sua história de encanto pelo chefe e líder da nação. Gutenberg é extremamente sedutor, tem lábia e fé no resgate dos ideais de justiça dos grandes democratas românticos, vindos de família pobre. Não deixa de ser uma figura egoísta em sua paixão cega, mas sua ambição não parece tamanha como veremos.
Ele não tem a força totalitária de um Grande Inquisidor, personagem célebre do último romance de Dostoievski, que aprisiona Cristo por julgar que este não poderá oferecer liberdade, igualdade e fraternidade senão para uma pequena minoria de alguns milhares. Estabelece a dialética do pão e da pedra. O grande inquisidor nos diz: se eles do povo se organizarem por si mesmos, nas mãos deles o pão do trabalho se transformará em pedra de guerra, enquanto que, organizados por nossa hierarquia, e por nossas mãos, dos totalitários, as pedras se transformarão em pão em nome de seus valores humanitários, pois o ser humano só é capaz de ser regido pela autoridade, pelo mistério e pelo milagre. Já o Ditador Honesto, que dá nome ao romance de Peleteiro, precisa mistificar a si mesmo, tanto como Cristo quanto como Inquisidor. A população brasileira não dá conta do milagre quando Gutenberg ascende ao poder e faz todas as conquistas impossíveis. 
Ele é mais um anti-herói trágico como o Gatsby de Fitzgerald e, como neste clássico americano sobre o poder, é narrado por seu amigo e admirador que o vê como o próprio mistério. O jovem nos narra uma trajetória política e familiar angustiada, de um líder tentando entender seu próprio limite e que, após todas as conquistas, perde a sede de mudança, chegando a desistir de uma reeleição. Nobre. Entretanto, o que nos interessa em sua ascensão ao poder é o modo como o idealismo que chega ao poder sutilmente coopera ou não com a corrupção.
A história se passa num futuro próximo, não há alusões a inovações tecnológicas, não há discussão com políticos administradores ou cabeças importantes do mercado financeiro de capital mundial. O livro é focado no Brasil em tom de fábula. Vemos quase que um rei das antigas, criando leis e revisando impostos, como se isto só fosse possível num governo centralizado e forte como a monarquia. Sua trajetória é a do diabo vaidoso e compassivo aos homens, como o Dr. Fausto de Thomas Mann. Numa eleição milagrosa, cresce nas redes sociais e num partido novo, fantasma como todos os outros. Ganha base parlamentar suficiente para não ser incomodado por nenhum grupo radical. Nesta fábula, o foco está em chamar a responsabilidade para o leitor-eleitor, ao invés de apenas culpar os políticos e focar em suas artimanhas corruptas. A pergunta é para nós: o quanto conseguiríamos suportar um sistema de igualdade e livre circulação?
Matheus Peleteiro tem aprendido com fabulistas modernos como Saramago, Camus e Hilda, de leve. Os três trazem como foco a ambiguidade do homem em situação de poder, os três trazem a sombra do mais humilde e do mais poderoso como lição. Ao redor do ditador honesto é revelado um teatro de máscaras, como nos descreve Artaud em seu texto O teatro e a peste, o qual se casa com a narrativa fantástica La peste, de Camus, onde uma sociedade acometida pela corrupção e doença, deixa cair suas máscaras, e como membros de cada instituição importante que rege a sociedade acaba invertendo seus valores para sobreviver à urgência do caos.
Gutenberg poderia ser definido como um ufanista egoísta, segundo o próprio Matheus, e quer mudar a própria realidade. Neste sentido, a crítica caberia a muitos de nossos atuais governantes, não só a um ou outro. Este livro iguala todos os rivais. Não se resume a uma intriga policial de nível governamental como no romance Agosto, de Rubem Fonseca, mas numa metáfora fabulesca da relação deste líder com seus assessores idealistas imediatos e a população civil brasileira.
É um acerto de contas para nossas consciências, vindo de um jovem escritor e pesquisador das leis, egresso de uma faculdade de Direito, como grandes nomes do nosso romantismo literário mais rebelde, um Álvares de Azevedo, um Castro Alves, um Gonçalves Dias, e até um Fagundes Varella. No mundo de hoje, temos que ter mais armas contra o cinismo, as quais Peleteiro não deixa de buscar num Bukowski, sempre que necessário. Fico feliz que um rapaz tão jovem tenha dedicado a escritura do seu quarto livro a trazer a questão mais urgente do nosso país com ironia tão fina, tentativa só alcançada com o mesmo porte por Ricardo Lísias, no livro sobre Eduardo Cunha.
Li O Ditador Honesto em apenas dois dias, embora nos traga tantas questões. Tem a urgência dos nossos tempos, e imagino que conquistará muitos leitores interessados em reconhecer as próprias ambiguidades neste momento tão sombrio para política brasileira. Este livro se coloca na mistura entre um romance histórico e uma ficção distópica, assumindo o extremo da fábula de um passado que já nos condena a um futuro cada vez mais fechado. Quem substituirá nosso ditador honesto?, nos resume.
Este potente neófito das letras de Salvador, Matheus Peleteiro, joga a resposta para todos nós, trabalhadores de um país ainda amador. E salve Jorge Amado, seu conterrâneo mais célebre, que sempre foi direto em suas críticas políticas, com a verdadeira vocação satirizante de um brasileiro terno e sábio que conhece sua gente.

Alexandre Rabelo é autor dos romances Nicotina Zero, Hoo Editora, 2015, Itinerários para o fim do mundo, Editora Patuá, 2018, e tem sua base em São Paulo.

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