domingo, 26 de dezembro de 2021

Duas estreias literárias que não cabem na crítica tradicional



Dois autores gays e seus marcantes romances de estreia, um de Salvador, Rafael Gurgel e seu “Dark Room”, Editora Escaleras, o outro de Rio Claro no interior paulista, Thiago Loureiro e seu “Vinco”, Editora Viseu. 

Para os advogados inflamados das linguagens puras, vanguardas transgressoras e estéticas revolucionárias como foco totalitário da crítica, essa apresentação inicial, geográfica, pode parecer superficial. Mas reparem: só quem defende livro exclusivamente pela linguagem é escritor e crítico hétero, branco, de elite, e suas cobras criadas. Brigam entre si por um reflexo do brilho de James Joyce – tadinhos de nós - talvez para disfarçarem o tédio de sua matéria histórica, as circunavegações ao redor de uma consciência burguesa em seu apê desmoronado mas impecável, o pai que não serve e o filho frustrado, um ressentimento homérico com relação às coisas da rua, vistas com melancolia e nobres idealismos em crise, expressos pelo cinismo e deboche com um sabor de confissão criminal. Sempre haverá os guardiões inférteis dessa ou de outra literatura. E Joyce permanece vivo, entre milhares de anônimos geniais. 

Mas também não posso ser leviano e reduzir livros a seus temas sociais (psicanalíticos não, por favor, dá uma canseira ver essa ciência-arte incrível aparecer tanto como falso mistério na mão da elite paulistana culta). Provavelmente as críticas mais honestas são aquelas que buscam não ranquear os novos gênios da arte, mas reviver a trama tecida entre linguagem e matéria histórica, localizando o autor em algum ponto de uma teia sem centro e sem nenhuma aranha-Joyce para nos comer no final. Sobretudo, no caso de autores gays já dissidentes no próprio gueto, tenho a responsabilidade não só de localizá-los num mapa de interesses políticos que extrapolam a arte, como também devo ampliar esse mapa da produção queer brasileira quando suas tendências não forem o suficiente para expressar as novidades, tudo isso sem reduzir a nova produção à uma arte identitária vista como de segundo escalão. Até porque a maioria da arte identitária dos últimos 15 anos - seu justíssimo momento de glória – não tem mesmo força sozinha para ocupar o centro das discussões mais interessantes sobre uma literatura como contradição e não tese, e é visível como muitos autores novíssimos de nossa comunidade, assim como autores negros, mulheres, indígenas, já perceberam que não basta colocar as ditas minorias como vítimas do Grande Homem Branco. Esse ponto cego dificulta encarar um nó fértil para a literatura, a constatação jocosa de que ninguém presta mesmo. Também precisamos entender os problemas específicos de nossa comunidade sob uma perspectiva mais abrangente, olhar pra fora de nosso umbigo cheio de glitter e bandeiras. Precisamos não só peneirar as ideias fora de lugar para nos alimentarmos delas, como também precisamos com muita urgência entender as corporalidades em espaços específicos para quem sabe superarmos a crise da crítica formalista que tem sido tão perversa com novos autores e independentes brilhantes. 

            “Dark Room” e “Vinco” guardam uma característica recorrente em boas ou más estreias, são livros conduzidos como narrativa de autodescoberta para seus autores. Ambos também usam o território livre da literatura para dar um sentido à memória. Esses fios condutores quase inescapáveis são urdidos com talento em diferentes camadas, desde o enredo até a forma adotada, tanto por Gurgel quanto por Loureiro, ambos já estreando pelo romance e todo o fôlego que exige essa forma em constante construção.

 Em “Vinco”, acompanhamos a trajetória de Otávio como moldura geral de um romance polifônico. Esse narrador-autor é um jornalista branco e heterossexual frustrado com o trabalho e o casamento e que, em dado momento, recebe a missão de conseguir uma entrevista picante com uma autora lésbica em Paraty, durante a Flip. Otávio vê a oportunidade como um respiro tanto de São Paulo quanto de sua formação conservadora no interior do estado. O acolhimento com que a autora lésbica e sua companheira recebem Otávio, leva a entrevista para um outro rumo, o da empatia pelo afeto, a busca do outro como busca de si. É raro ver na produção contemporânea brasileira um personagem hétero que se transforme assim pela presença de um membro da comunidade queer, ainda mais de forma tão mediada. Normalmente são as intransigências da sociedade para com esses corpos coagidos pelo conservadorismo o que prevalece nas narrativas, tema que não deixa de ser importante, sem dúvida tambémpresente nesses dois livros complexos e diretos. No romance de Loureiro, o que encanta o personagem hétero não é o dó pela dor do outro, mas o modo como ele se deixa atravessar por novas formas de amor, novos arranjos familiares, religiosos, de gênero. O jornalista em crise decidtornar essa jornada um livro de entrevistas, e entre os capítulos em que acompanhamos sua busca pessoal, encontramos diferentes vozes expressando a si mesmas a partir de um trabalho literário feito com entrevistas reais e outras imaginárias. Mesmo não sendo membro da comunidade queer, é nela que Otávio se inspira para mudar de vida. Que ponto importante. Também é interessante o autor ter utilizado o recurso de nos revelar uma traição por parte da mulher do protagonista, uma designer fútil e ascendente a faria-limer; nem sempre o homem é o vilão da história, embora Otávio tenha coragem o suficiente para encarar seus próprios limites. É quase como se esse livro tivesse a generosidade de ensinar aos leitores héteroscomo sentir amor ao invés de medo, vulnerabilidade ao invés de força, embora essa também se faça valer nos rasgos de nossas imperfeições, e todo mundo é imperfeito na obra de Thiago, uns mais perversos, outros mais empatas. Sem dúvida, a busca por uma expansão do conceito de amor é um eixo forte do livro, e a constatação de que mesmo arranjos familiares inusitados como trisais, relacionamentos poliafetivos ou abertos podem construir casas harmônicas em que um cotidiano muito simples é vivido na maior parte do tempo como em qualquer lar brasileiro. E Thiago nos faz entrar nas casas dessa maneira, humanizando os personagens por suas carências materiais mais imediatas e o foco na sobrevivência,  no trabalho, também em pequenos privilégios porque não somos vítimas. Fazemos bolo, cuidamos de nossas crianças, limpamos nossas casas, construímos a sociedade. Termina muito bem com a voz oracular de uma travesti, e só faz sentido depois de toda a jornada. Com uma história assim, não é à toa que Thiago tenha querido ampliar sua possibilidade de leitores, para além de nossa bolha, e conquistar também o público heterossexual. Este é um dos maiores trunfos de “Vinco”, o público que têm conquistado. É aquele livro pra você dar pra sua mãe, mesmo praquele seu amigo monogâmico  e ele não vai se assustar, ainda quecolocado diante de uma honestidade e uma franqueza acachapantes.

No caso de “Dark Room”, franqueza seria uma palavra eufemística para expressar a caixa preta aberta por Rafael Gurgel, e será lamentável se interessar apenas a leitores gays. Esse romance também nos apresenta, assim como fez Thiago, um narrador-autor, desta vez jovem e gay, igualmente em busca de um outro, no caso André, um professor-amante, homem cis gay branco de uma geração mais velha que conhecemos em primeira pessoa na construção literária assumidamente forjada por seu narrador-autor. Impossível não lembrar de meus “Itinerários para o fim do mundo“, de conflito semelhante e raramente explorado. Teria sido incrível conhecer a obra do Rafael antes de publicar o meu. O narrador é lúcido, rancoroso e admirado o suficiente para desconstruir uma paixão que foi enganosamente chamada de desconstruída quando surgiu entre o mestre “descolado” e o aluno “livre”. Por mais que o professor André também se lembre da repressão que sofreu desde a infância na sociedade soteropolitana, seu ponto cego é não perceber que sua liberdade foi conquistada pela máscara do gay ativo. Mas ainda que duvidosas, essas experiências, tantas e tamanhas, não deixam de seduzir o jovem narrador, em busca de sua própria corporalidade, consciente das projeções sociais de sua paixão pelo professor que prefere Björk à praia. Com tantas camadas, a narrativa de Gurgel se instaura muito mais na desconstrução do gênero homoerótico ao modo da linhagem fértil de Genet, Roberto Piva e tantos outros românticos obscuros geniais, mesclando grotesco e sublime, dentro de um referencial do romance contemporâneo que explora o fragmento da memória de forma não linear e mais associativa, pagando alguns tributos diretos  a Caio F., cada vez mais perto, cada vez longe. Como autor de uma nova geração, Rafael utiliza esse erotismo errante que encanta e ao mesmo tempo denuncia para tematizar o falocentrismo presente mesmo em pessoas cultas e alternativas. Com issocapta uma camada muito mais sutildesse tipo de violência e ainda nos ambienta uma Salvador fora do clichê de um remelexo solar, muito mais ligada à uma urbanidade deliciosamente distópica-nostálgica que não deixa de se referir ao famoso bairro boêmio da Santa Cecília em São Paulo, ou a uma Nova York cosmopolita e noturna onde podemos encontrar algum duplo de Madonna. Sob um olhar ora debochado, ora sacralizante, Rafael não deixa de se filiar à famosa linhagem das narrativas sobre a libertinagem baiana – o desejo aqui é o grande motor que encadeia os fragmentos, em disputa com a memória, enquanto que mais para o sul do país parece que a memória domina o desejo - sem deixar de ironizar o clichê baiano de liberdade, como no momento em que expõe personagens em disputa para ver quem será o grande substituto de Raul Seixas como anjo caído da cidade. E como resolver esse impasse? Na segunda e última parte do livro, de apenas algumas páginas preciosas e chamada de “Glory Hole”, Rafael nos propõe um caminho tão inusitado quanto profeticamente óbvio: uma ontologia poética-profética do cu. Com tom evocativo, muitas vezes invocatório, certamente com pitadas tanto de poesia lírica quanto épica, Gurgel mobiliza diferentes recursos para conceituar e exaltar o cu não só como o órgão sexual sem gênero por excelência, espécie de deus salvador do corpo cercado de couraças, mas sobretudo como boca que emite as mensagens que o rosto não quis dizer. A erótica do cu é também uma ética, uma política, o final oportunamente aberto para um ótimo romance de estreia.

Fiz questão de escrever esse texto não só para inserir essas duas boas estreias numa perspectiva crítica que julgo urgente e necessária, mas sobretudo para que não caíam no vácuo das correntes críticas hegemônicas e para que todos possamos usufruir do modo como esses autores tensionam os gêneros não por serem livros identitários, ou independentes, ou imaturos, mas por criarem pontes em potencial que podem interessar todo tipo de literatura. E sociedade.

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