Sete anos numa cadeira de rodas produziram um ótimo escritor. E você lê as 100 páginas no mesmo dia em que compra o livro. “Enquanto os dentes”, de Carlos Eduardo Pereira, é uma bela estreia editorial, aposta certeira e corajosa da Todavia no gênero romance. A capa maravilhosa conta toda a história.
O narrador nos traz muito próximo de Antônio, cadeirante de cerca de 40 anos, em sua travessia saindo do “antigo apartamento“, como ele chama agora a casa onde morou por alguns anos e onde foi mais feliz, pintando seus quadros, fotografando e circulando pelo mundo das artes, egresso de um curso de filosofia, faculdade que abraçou após abandonar cinco anos da escola da Marinha, onde era conhecido como “libélula azul“ pelos parceiros num ambiente de disciplina e violência, com sentimentos de supremacia, machismo e hierarquização. Antônio havia seguido a carreira do pai, o Comandante, um homem branco, de pensamento militar que se casara com uma negra numa relação de quase escravidão. Ela sobrevive buscando verdades na igreja, quando o homem permite, e visita um pouco a vizinhança em Niterói, para onde Antônio agora tem de voltar. Não fala com o pai há 20 anos de ódio e afastamento. Mas foram eles que sobraram, pois o corpo em processo degenerativo não consegue mais se manter só, e a simbiose com a cadeira de rodas é um processo dolorido. É difícil se tornar cyborg, de modo que Antônio tem náusea até com o gosto metálico da maior parte dos alimentos que ingerimos. Antonio é um personagem que nos põe numa perspectiva de vida vista em plano médio, e com medo de cair ainda mais. Seus cinco sentidos estão desaparecendo, o tempo presente elástico, e a travessia de barco, de volta o lar, invadida pela memória dessas outras tantas travessias difíceis em sua vida, vai costurando, do Rio a Niterói, uma trajetória vivamente atenta aos detalhes das ruas e lugares, pontos de fuga na urbanidade densa do Rio. Essa cidade, como qualquer outra, flui a eterna presença do peso do patriarcalismo nas pequenas relações, mas também é lugar de esportes, mar, e um amor perdido que não segurou a barra do acidente e tudo que veio junto. De todo modo, naquela Rio de Janeiro de alguns anos atrás, ainda se podia ser gay mais livremente do que no mar controlado por homens. A técnica de Carlos Eduardo me lembrou muito a de Marguerite Duras, nas evocações objetivas da própria subjetividade, e nas alternâncias bruscas entre passado e presente, ambos avaliados de forma seca, porém muito elegante, crua mas alusiva, e repleta de memórias quentes. As alternâncias entre a viagem de volta o lar, que avança lentamente, e a memória que se reconstrói, é tecida com habilidade de um parágrafo outro, mudando de assunto bruscamente mas costurando os fios que ligam um tempo ao outro. Há muito da técnica cinematográfica aqui. É um livro forte que vem de uma experiência que só poderia ser considerada de marginal pela centralidade do homem branco, o qual veria esse romance apenas como um bom exemplo de representatividade na literatura, quando é mais, uma brilhante caminhada por vários desafios mortais e cruéis colocados pelo patriarcalismo, e que com ele dialogam de forma franca, sempre “muito educado“, como o próprio narrador nos diz, tentando apenas guardar tudo que se passa nas travessias, e esquecer os silêncios.
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