quarta-feira, 15 de abril de 2020

As lâminas absurdistas de Marcelo da Silva Antunes


Fazia tempo que eu queria ler a produção do Marcelo da Silva Antunes, não só pela qualidade cortante e lapidar de seu fluxo (“A vida não é teste, é texto”), como também por seu atrevimento na hora de vender o próprio peixe. É daqueles autores independentes que se destacam em meio a tanta gente gritando na quebrada, e chega abrindo seus diálogos com o tal do meio literário (elitista) como um todo. Longe de ser daqueles autores, jovens ou não, que incomodam ao querer aparecer a qualquer custo, sobretudo pela vitimização do discurso, Marcelo é seguro da urgência e justeza de seu grito, da força de seu humor lúcido, e sabe que os espaços (jaulas) que lhe seriam reservados precisam ser contestados. Tem fogo e água nos olhos, e não vai deixar barato. Recebeu a benção do mestre Marcelino Freire. Os resultados são visíveis. Com sua parceira de vida e arte, Aline Macedo, criou a Borboleta Azul, selo independente responsável pela produção de seus próprios livros e de parceiros. Mostrei os livros deles para alguns amigos que trabalham com design de produtos e todos foram taxativos ao afirmar o quanto são muito mais bonitos que as capas insípidas e clean da maioria dos livros das grandes casas editoriais.  Esse par da Zona Norte de São Paulo é a prova viva do quanto a revolução da democratização dos meios de produção no mercado editorial é uma das soluções mais certeiras para o futuro de nossa arte, com muita qualidade.
A revolução não é só forma, claro, mas conteúdo. Já em VIVACA percebemos um hibridismo muito feliz poucas vezes permitido nos meios oficiais, mesmo quando se dizem muito experimentais. Aqui temos um livro que mistura receitas vegetarianas escritas ao modo literário, mescladas com poemas urgentes sobre o dia a dia nas periferias da vida. É o que o estômago engole e o que ele devolve, em harmonia difícil de tecer. Aliás, faltam livros assim, obras que misturam a poética de um cotidiano mais prosaico do que os dramas de apartamento que normalmente são celebrados, com as utopias de um novo mundo onde o Brasil de fato acontece (“gosto quando tem placas de oferta e você sempre/ diz que oferta é oferecer/e me dá uma aula de promoção, propaganda e reforma agrária”). Como eu sempre gosto de dizer, só acredito em macho de esquerda que saiba fazer a própria comida e limpar a própria sujeira, e Marcelo não só sabe, como fez um livro sobre isso.
Mas o que impressiona mesmo é seu livro de contos OUTROS CORTES. É um projeto que começou como zine e ganhou corpo em livro. Não é qualquer voz falando da fome, do trabalho precarizado, das mães guerreiras, da ética outra que existe nos territórios onde a lei não chega. É a voz de alguém que reconhece a malícia que ganhou cedo demais, mas não se orgulha disso, como normalmente se vê por aí. Ao contrário, tenta preservar um olhar de criança e sabe o quanto esse equilíbrio é frágil, sujeito à luta diária. Talvez por isso tantos de seus contos  nos revelem as relações não como simples denúncia, como os autoproclamados escritores marginais, mas como absurdos inerentes à própria condição humana, como um bom escritor de qualquer classe ou geração é capaz de fazer. Aqui o nonsense vem para ressaltar o que o embrutecimento, tanto dos algozes quando das vítimas, tende a naturalizar. O olhar de Marcelo se irmana ao de autores como Camus e Beckett. O caso mais flagrante é o conto “Lembrança”, um diálogo entre dois maninhos tentando reconstruir a memória de tempos melhores que talvez nunca tenham existido. Aqui está o grande salto de seus contos.
Outro traço marcante que o diferencia dos autores ditos marginais de outras gerações é o cuidado em não criar seus próprios heróis, principalmente se estes forem homens. Como autor sensível de uma nova geração, Marcelo não glamuriza a luta e chega mesmo a apontar, em muitos contos, o machismo que fragiliza seus iguais. Essa perspectiva se reforça quando vemos tantos contos representando as mulheres guerreiras das quebradas não como santas abnegadas, mas como verdadeiras feiticeiras revoltadas, nada puras e muito conscientes de seu próprio fogo.
Por essas e outras, é bem perceptível o quanto a voz jovem de Marcelo da Silva Antunes se destaca e promete. Como um Geovani Martins no Rio de Janeiro, esse autor paulistano nos revela o absurdo tragicômico de uma realidade em que a naturalização de uma guerra civil de décadas tenta ocultar, esses pequenos gestos de violência quase invisíveis que insistimos em deixar passar batido para nos comover com desgraças maiores. Ele nos lembra o tempo todo de que, apesar dos esquartejamentos que muitas vezes poupam o sofrimento, são esses “outros cortes” que nos matam diariamente e também nos permitem renascer mais fortes.

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