A História, como forma de entendimento do mundo, tem lutado nos últimos duzentos anos para se tornar uma “ciência”, com verdade e método. Os fatos, as ações humanas, assim como as pedras, teriam o seu mistério a ser desvelado. Sim, pois o curso da história, escrita e não escrita, tem conduzido os homens a se arrogarem de preencher de sentidos precisos o desconforto do silêncio universal. Para o cientista, uma pedra deve ter um lugar em algum catálogo. Para o poeta, deliberadamente mais ambíguo, a pedra também deve portar algumas palavras ocultas e bem-vindas, ainda que imprecisas. Disto podemos dizer que o poeta e o cientista encontram-se assim na mesma ambição de revelar uma luz universal, transmissível a todos os homens do presente e do futuro. Uma luz mais eterna que o tempo.Ainda bem que o mundo não é só o Ocidente com seus artistas e cientistas, e seu deserto de palavras e símbolos. Ainda bem que temos o Oriente, ainda que um Oriente mítico, criado por nosso estupor ocidental, para nos reportarmos sempre que se renova nossa sede de mistério. Lembro-me, por exemplo, de algumas práticas orientais, em que um iogue coloca-se diante de uma pedra para meditar, como uma das últimas etapas de iniciação aos mistérios universais. A este homem é dada uma única instrução mestra: fique aí, até descobrir que você e a pedra são uma coisa só. Tarefa fácil, deve responder o homem ocidental, afinal, a pedra também é feita de átomos, como se o verbo descobrir implicasse tão somente a elaboração de uma interpretação racional; como se a essência do homem fosse esta razão criadora que o torna deus. Um poeta poderia argumentar: esta pedra dura, inerte, eterna, compartilha comigo o segredo de minha morte. De fato, o estupor diante da morte é universal, e nos insere num campo de experiência comum, na história de desejos e angústias comuns, ainda que de aparências sempre diferentes. Mas, seria uma “verdade universal” o que esses iogues querem encontrar? Sua jornada com a pedra, tecendo um tempo paciente, seria para descobrir verdades? O que deseja descobrir o iogue e sua pedra?Sabemos que o objetivo último de muitas técnicas de meditação é atingir o silêncio bruto da pedra, e não uma lapidação de suas propriedades concretas e abstratas. Podemos supor, então, que ainda deve haver algo de humano para além das palavras, e isto não é nenhuma novidade, embora também não possamos dizer que exista o óbvio. Podemos facilmente aludir a momentos em que o silêncio foi uma das experiências mais plenas do estar vivo, e sabemos que tais experiências são intransferíveis e assim devem permanecer, como prova de nossa individualidade, esta sim, universal. Pois o silêncio, talvez fenômeno mais universal que o próprio universo observável onde habita, nunca é igual, como também os fatos singulares que formam a universalidade da ciência histórica. Atingir um contato renovado e constante com esses silêncios tão desiguais, talvez seja o objetivo do iogue com sua pedra. Seria outra obviedade necessária notar que é só no silêncio universal de uma pedra, de uma estrela, que encontramos nossa individualidade, e que só por esta originalidade de cada ser o silêncio se repete. Entretanto, isto não seria tão óbvio de se dizer se o homem ocidental não confundisse já há alguns séculos a afirmação da individualidade com a negação do outro, no fenômeno mais que conhecido do individualismo moderno. Ser original parece ainda assumir uma luta contra outras individualidades, ao invés de, no destaque de uma originalidade, celebrar as experiências comuns. Muitos historiadores, por exemplo, apelam a valores universais para se contraporem a outros historiadores, seja por vaidade, seja por assumirem um partido específico na luta pela verdade da justiça e da liberdade.Não estou sendo original ao destacar essas questões. Diante desta pauta em branco – minha pedra de hoje – vejo-me profundamente imerso na história: anoto verdades, defendo palavras, levanto meus olhos ao céu, convido os homens a celebrar mistérios e a fazer desta celebração uma crença quase religiosa. Mas quem, pergunto, juntou tais obviedades nesta mesma combinação de palavras? Não pretendo com esta questão afirmar minha individualidade, mas sim destacar que, se realmente não há nada de novo sob o sol, que festejemos com uma humildade quase idiota nossas repetições reelaboradas, provisórias, pretensamente universais, pois o que vale ainda é o processo, a tentativa de cada um e de todos, de cada pedra enterrada ou transformada, ainda que numa lâmina pré-histórica. O que vale não é o que fazemos com a pedra, mas o que fazemos com a observação que dela fazemos; o que fazemos, enfim, com o tempo.A história usa o tempo para descrevê-lo e empresta a filosofia para interpretá-lo. E ambas as ciências – este modo provisório, histórico, de apreensão do mundo – se unem à poesia e à meditação no que talvez seja a experiência humana mais universal: a própria invenção do tempo, esta dimensão onde destacamos nosso ser atônito. Provisoriamente universal. Pois a folha desta impressão, reciclável, também voltará a ser uma pedra, umas tantas vezes, ao menos. Mas sempre é bom ressaltar: talvez. Quem sabe mais é uma pedra.
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