quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Se o nariz de Cleópatra...


Nem sempre a escrita da História é composta de asserções de intenção esclarecedora; às vezes a humanidade soma também a este legado alguns enigmas divertidos, como o que nos deixou Pascal, sem qualquer explicação adicional, em meio aos seus mais edificantes Pensamentos. Ele nos diz, no fragmento 162 de seu mais famoso livro: se o nariz de Cleópatra tivesse sido menor, a face da terra teria sido outra. E nos sentimos tentados a especular, numa atitude contradicente a dos cautelosos cientistas da História: se o rosto de Cleópatra fosse um outro, talvez menos belo, teria conquistado os corações dos donos do mundo, Júlio César e Marco Antônio? O destino do mundo estaria impresso no acaso de um traço físico, e a inteligência da rainha do Egito contaria pouco neste caso? E os senhores de Roma, livres da sinuosidade irresistível da exótica soberana, teriam tido mais força para contribuir para a manutenção de uma permanência maior do grande império, livrando-nos da Idade das Trevas e outras conseqüências mais drásticas?
Os historiadores de hoje, analistas de grandes movimentos estruturais das sociedades antigas, nos diriam que poucos fatos isolados poderiam alterar decididamente tendências históricas de longa duração. Sob essa perspectiva, o declínio de Roma não seria de responsabilidade de alguns de seus administradores, mas sim um fruto necessário de estruturas sociais difíceis de mudar, como a constatação de que o poder dos romanos foi secularmente calcado numa administração de cunho militar, dependente de uma expansão e exploração colonial sempre ativas. Soma-se a esta característica mais geral uma distribuição de títulos meritórios, geradora de uma inflada classe de parasitas improdutivos e escravos. Deste modo, sendo o nariz de Cleópatra um outro ou o mesmo, o Egito, afamado celeiro do mundo antigo, teria sido conquistado de uma forma ou de outra e, do mesmo modo, se esgotaria sem suprir as crescentes necessidades dos romanos. Assim, podemos pensar que há um limite razoável para as espetaculares especulações que nos sugerem os enigmas como o que nos provocou o pensador francês.
Uma questão similar a esta de Pascal, freqüentemente repetida pelos brasileiros é: seria o Brasil um país melhor se tivesse sido colonizado pelos ingleses? A resposta geral dos brasileiros ressentidos é que sim. Interroguemos esta possibilidade. Em primeiro lugar, o Brasil jamais receberia o mesmo modelo colonizador das Colônias Inglesas do Norte, grandes responsáveis pela formação da democracia norte-americana, já nossas condições geográficas eram propícias à exploração de produtos tropicais, mais valorizados no mercado europeu e mais compensadores para os comerciantes de alto escalão, os únicos que podiam arriscar-se numa empreitada tão dispendiosa quanto a travessia transoceânica. Assim, se os ingleses tivessem chegado aqui primeiro que os portugueses, possivelmente adotariam a mesma estrutura exploratória que condicionou nossa história. E se assim fosse, os ingleses não sofreriam concorrência com os países ibéricos e talvez não tivessem investido na produção de algodão, menos valorizada que o açúcar e, com isto, não teriam a necessidade de otimizar a produção de tecidos com a invenção das máquinas que abriram as portas da revolução industrial e conduziriam o mundo para o capitalismo industrial. Além disso, se os ingleses tivessem se tornado grandes proprietários de terra, como foram os ibéricos, sua nobreza de terra permaneceria quem sabe ainda fortemente ligada às antigas estruturas medievais, permanecendo católicos como a maior proprietária de terras da Europa, a Igreja. Na Inglaterra dos Tudor, a nobreza de terra aliou-se à burguesia mercantil por não poder concorrer com os grandes proprietários europeus, tornando assim necessária a criação de uma religião mais livre dos interesses hegemônicos no continente. É sabido que a revolução protestante aconteceu em mãos de comerciantes inimigos do clero feudal, e foram esses protestantes, aliás os mais radicais entre os ingleses, que foram banidos para o mundo novo, fundando as colônias do norte nos atuais EUA, uma região sem grandes interesses econômicos para a coroa, mesmo porque esta terra de segregados, geograficamente similar a Europa, não podia produzir algo que o velho mundo já não produzisse, com menor custo. E foi devido a este quase abandono que os colonos protestantes puderam organizar-se em pequenas propriedades independentes que estimularam a ética individualista necessária às novas formas predatórias de capitalismo, como bem descreveu o sociólogo Max Weber. Finalmente, os apelos revolucionários vindos da França empobrecida, jamais gerariam um eco tão forte no Brasil como aconteceu nos EUA, uma vez que os senhores daqui viviam ainda muito bem com sua economia baseada na antiga estrutura agrária e predatória, apesar das frotas inglesas terem já dominado o comércio marítimo à época das revoluções.
Mas, como os enigmas debatidos acima, essas análises também não passam de especulações. E não pretendem, de modo algum, desvalorizar a importância das instigantes inquisições das mesas de bar, taxistas e pescadores. Se, por um lado, esses enigmas nos fazem incorrer em preconceitos, por outro ativam nossa imaginação para a renovação das utopias. Pois não seriam com perguntas semelhantes que os historiadores abordam o passado, questionando-o com perguntas do tipo “por que não somos diferentes do que somos”?
Lembro-me do país ideal imaginado por Thomas More em sua obra-prima Utopia, que nos deu o conceito para a imaginação de paraísos modernos. Teria este pensador, aliás um crítico dos interesses ingleses, criado o grande sonho das repúblicas modernas, em forma sábia e ao mesmo tempo divertida, se não valorizasse igualmente as críticas prudentes dos nobres analistas de sua época e as fantasias insensatas de um mundo melhor, de ilhas maravilhosas, sonhadas nas cabeças dos marinheiros mais ingênuos?
Se essas inquisições acerca dos rumos do tempo são lícitas ou ilícitas, não nos cabe julgar, desde que continuem a provocar nossa imaginação para relativizar com mais leveza a concretude de nossas necessidades presentes, estas sim grandes enigmas a serem resolvidos com o melhor dos humores possível.

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