quarta-feira, 23 de setembro de 2009

clariciano

Eu procuro algum traço de sentimento com que possa me contar, mas não encontro nada. Nem frieza, nem indiferença. Antes, quando tinha preguiça de escrever-me, de inventar-me, procurava nas paixões juvenis alguma raiva que me energizasse para, enfim, vencer a dureza do papel, da caneta, da tela reluzente e do teclado. É que eu acreditava que a matéria das coisas era contra a fluidez do ser, como se o ser fosse coisa vácua, só de palavras. Agora, nem isso sinto ou faço. Talvez no fundo eu escreva para me afirmar, mas para dar voz a um instinto de bicho, uma verdade subrreptícia, e não essas verdades de palavras, essas vaidades.
E eis que, neste instante, tendo-me improvisado em um parágrafo satisfeito de si, não me vejo ainda pronto para tudo o que haja, embora me sinta a partir do coração - este mito que agora também me bate satisfeito e insatisfeito, apaixonado e subaquático. Claro que alguma lucidez me comanda também, mas esta luz não é de palavras, mas de observar, como bicho, se o ar que entra e o que sai é proporcional ao corpo que minha alma veio construindo.
Penso que se eu me identificar demais com minhas palavras, julgando-as tão minhas, estarei cansado de mim, e isto não quero nunca. Não por me amar egocentricamente, mas para amar a vida que possa desabrochar de mim. Todo mundo tem suas palavras e delas se arroga, fixando-se em imagens passadas, mortas; e percebo milagrosamente que, conforme me assoma o conhecimento da morte, prefiro cada vez mais a vida. No limite, qualquer palavra já dita é coisa morta, que só vale reavaliada, reapropriada, ainda que haja palavras vivas de homens mortos capazes de mostrar-me na atualidade do ser, de mostrar-me este "quem sou" que é apenas um "ninguém que cabe em qualquer um."
Tenho receio de palavras movidas por paixões. Pensemos. Um beijo deve durar o tempo justo do confronto. Alongar o desejo é matar o amor, desconfiar de seu poder e tentar extraí-lo no bagaço da carne, e não na carne intumescida de amor. E quero ser sempre jovem para convencer-me na busca desta inominável palavra. Para ser jovem e amar com a renovada inocência de jogos infantis, sem alongar os desejos de uma juventude sempre em fuga, tenho de me fazer de velho, e assim o faço desde criança, obstinado em vencer as idades, sem a covardia de não enfrentar o espelho, este espaço infinito onde cada ruga, ao invés de me envelhecer, me renova, mostra o novo insuspeitado, me rejuvenesce de tanta curiosidade com minhas coisas ínfimas. Talvez eu só esteja querendo dizer que tenho respirado melhor no enfrentamento da morte. Sim, não me culpo mais em temer a morte, é assim com todo bicho e me alegro cada vez mais de ser bicho antes de ser homem. Sim, não me culpo mais em aceitar a morte: existe uma indiferença de pedra em todo ser, e bicho veio da pedra também.
Talvez seja isto o que quis dizer quando quis dizer que para escrever-me, para inventar-me, não posso e nem consigo mais me agarrar desesperadamente a um "sentimento", a um logos qualquer, a uma razão que vem do fundo de uma taquicardia a que chamamos paixão, uma ansiedade sem propósito e cuja origem duvido que parta de mim, mas de nossos modernos costumes sobre o que seja o feliz. Como diria Rimbaud, o êxtase não é mais meu amigo.
Tenho o vício do cigarro, decerto. E se for possível explicar o vício como um desvio do ser em relação a seu ambiente, sim, digo que estou demasiadamente saciado desta cidade, embora nela tenha tanto me divertido, diariamente, religiosamente. É que não gosto muito de seguir uma única religião, por isso preciso partir. Não porque a cidade seja pequena de pequenez, mas porque o mundo é grande de mistérios. E quando não tenho meu mistério, que adoro encontrar nos olhos de um cão de rua, acendo meu cigarro. Mais não quero justificar. As justificativas nascem do medo não assumido, e prefiro ser inseguro com coragem. Dói menos. Já disse isso, sim. Estou tão contentamente vazio que me preencho e me atravesso até por repetições bem vindas. Às vezes repetir é necessário para aprender a sofrer menos, para aprender a aprender, para dar nomes melhores às coisas piores.
Se tem algo que me interessa de fato, que me engaja na realidade suposta, é a manhã transparente, cheia de possíveis, esta que nasce agora lá fora, no ar, no azul mutando mais rápido que a minha atenção sobre ela, no azul mutando mais devagar que esta minha aberrante transformação.
Antes eu escrevia com fome no estômago vazio, duro de certezas. Para aprender a chorar. Agora escrevo de barriga cheia, sim senhor, pois o pão deve me nutrir antes que a palavra. Sem bicho não há homem, e antes eu só queria ser homem, sem assumir o bicho. Quanta inversão de valores! Sim, sobrevivo com pão e palavra, nesta ordem. Não é para glamurizar a pobreza, estamos acostumados demais com a pobreza, e quero que esta sempre me entristeça. Até já houve um tempo sem uma coisa nem outra, sem pão e sem palavra, só de escuridão e um inseto de esperança, mas nunca fui bobo de arrogâncias, como os mendigos que impõem sua dor com ódio. Quis mais é saber-me mínimo, fazer um experimento contra minha soberba, e também porque tenho um corpo que não pega nem gripe - salve! - mas agora gosto de trabalhar simplesmente para ingerir e expelir coisas, seguindo a natureza de minha espécie, evoluindo-a, depurando-a no amor ao trabalho e no trabalho do amor, invejoso apenas das árvores, que tocam os extremos da terra e do céu com absoluta paciência.
Veja como minha escrita é perniciosa mesmo, e se a desdigo não é por charme de poeta que não pretendo ser: escrevendo aqui, pouco a pouco, bateu-me um sentimento sim, bateu-me um sim. Um amor pela minha mãe, pelo meu pai, pelos amigos e irmãos, pelos mortos e vivos, até pelos inimigos, se estes eu tiver. Está certo: foi um amor quieto, disfarçado, fugaz mas quase tátil enquanto durou, e que paro de proclamar aqui e agora. Mas que é sentimento ou ato mais valioso que as palavras que me chamaram daquele vazio com que comecei, com que tudo começa. E agora sim, posso retirar-me em paz e voltar a ser ninguém e nada. E é feliz assim, dizem meus olhos para o espelho transparente da manhã.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

para começo de festa



I don't wanna talk; a noite é para ser vivida. Sim, refrões baratos. Um caco qualquer de pensamento não vale o compasso grave dessa música. Qualquer batida do coração só vale o movimento livre desses braços e pernas. Mas, escondo o jogo, ainda. Mantenho o fogo nos olhos como se estivesse de óculos escuros. Disfarço o desejo da boca mascando um chiclete com refrescância no fundo. Sou polar, sou mistério. Faço as rodas do carro girar: leve-me para qualquer lugar. Não tenho pressa, não escolherei por desespero, mas pelo instinto, por isto deixo o desejo ruminar, tranquilo como se a noite não fosse acabar, e não vai mesmo; todas as noites são a mesma, serão sempre. Não estou aqui para um orgasmo, mas pela fantasia, permita-me colocar este ponto.
Estou pronto. Deixo a velocidade riscar as luzes da cidade em meus olhos, por falta das ondas de um mar. A camisa branca pode parecer dura demais, principalmente o colarinho no pescoço frágil, nas veias latentes. Pois a escolhi pela textura fria, acre como um cigarro. E mais: não me fantasio de palhaço à toa, sou mais é soldado da beleza, por isto o linho ancestral, de revestir múmias apegadas à ilusão do viver. Na calça, uma braguilha solta, cheia, porque me sinto livre, macho não. Macho é boca dura, e meus vermelhos são rosas esta noite. Sentiria-me vaidoso se gostasse de poses, mas pose fecha peito em estátua de pedra morta, e prefiro dançar minha dor, entregá-la ao movimento do vento que vier. Nada como a brisa de uma noite quente, de uma noite-útero a confundir os cabelos, a desfazer as marcas do estilo.
Quem vem comigo? Quem sorrir corajosamente a própria insegurança. Passem reto os que sabem das coisas, os servos da malícia. Quero mais é uma noite de encanto, porque sei que não haverá encanto algum, desses de sufocar. Noite boa é noite que se fantasia antes de acontecer. Entrando na festa, a festa acabou.
Por que sair então? Porque piso firme quando sonho alto. Por isso o tênis multicor. Cheiro fundo quando enfrento o medo. Por isso o perfume francês. Para dar coragem. Não é luxo, é o conhecimento do meu lixo, do que me é duro e fixo. Só pareço elegante quando encaro minha tristeza com dignidade. E se eu parecer belo esta noite, sorry, sou só um coração que passa batido, batendo só. Como você. Seja belo também para não sucumbir à esta sedução gratuita. A beleza não vem ao caso para quem se dança ao acaso. Sim, a beleza está em quem dança conforme a música. A beleza não está num belo nariz, mas num belo ouvido. Vai me deixar entrar por este vão?
Não, não me deixe entrar. Prefiro ver você acontecer sozinho, no meio da pista. Só assim seremos iguais. Ambos prontos para a solidão. Ambos esquecidos de que a noite é escura. Não é deslumbre, já aprendi a sofrer e agora posso brincar de ser feliz porque a felicidade não existe, é só jogo de tentar - e o melhor amor é o da manhã.
Esta noite eu vou à pista só, só para despistar.

domingo, 13 de setembro de 2009

fim de festa

um conto de qualquer década

Braços se alavancam para cruzar as serpentinas no ar. Os vinténs de confete, uma vez depostos na terra de cimento queimado, fazem sua lama triste sob o patinar de pés suados, verde e rósea como carne apodrecida.
Carolina procurava seu brinco de prata, uma peça rara, cara, recebida das mãos zelosas de sua avó já morta. Avó agora esquecida, enquanto a moça sorria seus dentes arroxeados de vinho no esgarçar parturiente de lábios que haviam perdido, já há algumas horas, a oportunidade de um beijo cauteloso. Agora só lhe restava aguardar, no recanto dos sonhos e promessas vãs, alguém que lhe extraísse da carne esgotada o sumo do sangue, o carmesim desmedido que mal se sinalizava aos olhos dos quase cegos na pista grande. Mas aconteceu. Ou quase isto.
Desistia já do brinco quando uns dedos longos, morenos, de grandes nós, resgataram-na do provável pisoteio dos pés engajados nos ritos de acasalamento. Com olhos de brilho temperados por olheiras fartas o rapaz sorriu-lhe sem grandes promessas, consciente ele próprio de que sua indiscrição, seu olhar-lhe no dentro, podia ser qualquer, como o de qualquer um ali. Ou assim ele acreditou descrente, despropositado, fora de lugar. Sua magreza, embrutecida pelo carnaval, virava também macheza, ainda que de uma brutalidade quase ressentida de si. Talvez fosse um desses tipos sensíveis; tímido não, pois mantinha umas pupilas firmes frente à indecisão ébria de Carolina, desalinhada debaixo do emaranhado dos próprios cachos. Com aquele desalinho ele podia - pensou - já  não seria o caso se ela estivesse a flutuar por uma grande avenida num final de tarde. Fosse como fosse, estavam ali, um para o outro, fundos.
Um terceiro, um tipo bem nutrido, bem tratado, bem exercitado em esportes que dispensam o juízo, um tipo que tudo podia com seu nariz de boneca virgem, pronto a romper-se o peito em desgraças nunca confessadas, tal o afã de seu êxtase sem destino, assustou-se talvez, parado que estacou defronte ao silêncio suspeito que se formara entre Carolina e o rapaz moreno, ambos jogando uma partida incômoda à obviedade caótica daquela pista de dança. O fato é que o três-tripas, o barriga-bufa, encheu-se chistoso para desdizer, ou estrebuchar, o que no fundo devia lhe maravilhar e invejar, e avançou o meio passo que bastou na direção do casal que ainda nem era tal ou tanto.
- Na boca! Na boca! – alguém gritou como quis Manuel Bandeira num poema.
Foi a deixa. Com gestos largos, o forte de delícias de diários bordados puxou a camisa do corpo fraco do moreno, pronto para qualquer estrangulamento, ainda que alguém depois comentasse que ele não teria mesmo coragem para tanto. Os olhos do magro encheram-se de todos os assassinatos, mas ele nada podia com seu peito murcho e sequer arfante, visão tal que concedeu o escárnio nos cantos dos lábios do outro, insatisfeito das mil bocas que beijara esta noite. Carolina, deslocada, com uma pena titubeante pregada na sobrancelha, querendo escorrer, mas não podendo tal era o suor, quase não teve tempo de puxar o ar em sinal de alerta. Na eclosão da tempestade, a pobre permanecia intemporal, buscando tecer a fina luz de sua alma em meio aos brilhos todos que giravam em sua cabeça, em seus braços lassos, em suas pernas impotentes.
O moreno tinha que pensar rápido, se é que o pensar resolveria a contenda a que fora impingido. A força de seu corpo não se media pela do outro, de músculos tesos, mesmo derretidos em suor alcoólico, mesmo perdidos na noite de todas as noites. A música da marchinha, bombando libido pelas artérias todas dos pescoços muitos, não deixava vez para uma palavra de fé, para uma palavra sequer.
Foi então que o defensor improvisado de Carolina teve a idéia, executando-a já enquanto eclodia entre certezas e hesitações. Brusco, no ritmo da festa, ofereceu primeiro a mão amiga ao fulano de tal, pedindo trégua muda antes da guerra declarada. E aproveitou quando o pilastra-para-ombros desentendeu tanta humildade para, assim sem mais, tascar-lhe um beijo na boca perplexa, passiva durante dois segundos diante de incoerência mais brutal que o ato que ofereceu primeiro.
Enquanto durou a aberração, a pista toda foi submergindo nas ondas de um mar noturno, surdo, lentamente mortal. Foi o tempo que bastou para que o moreno, sem emplumar-se na vanglória, retirasse dali Carolina, rasgando o primeiro desvio que lhe ocorreu entre a multidão agora conciliada numa mesma incompreensão.
Para onde foi o casal, não sabemos ao certo, só que devem ter alcançado o ar livre, serenoso, saltando, aqui e ali, sobre uns pares curvados por um orgasmo breve. Quanto ao beijado, foi acolhido por braços de músculos tais os seus, agora tesos por algo mais preciso, uma motivação pela qual rastejara a noite inteira e por fim, conquistara, ainda que a custa disso, daquilo, desse ato sem nome. Juntos, para desabafar, os amigos compartilharam os mesmos rancores guturais, disfarçados de riso, a que chamam de pilhéria solidária.
No mais, a festa continuou e, logo depois - pois não se brinca com a eternidade - a festa acabou. Não contarei sobre o salão vazio, a música fanando, as luzes já idas, refestelando no fundo da retina do último dos moicanos. Ninguém merece um fim de festa. Nem o vilão da história.

sábado, 12 de setembro de 2009

As Cidades Invisíveis de Italo Calvino

Terminei de ler AS CIDADES INVISÍVEIS de Italo Calvino (1923-85), considerado o maior escritor italiano do século XX, mas que é cubano. Nacionalidades à parte, é grande decerto. Para defender valores novos ou ancestrais para uma humanidade corrompida, ele não se apóia em intelectualismos arrogantes, mas faz da base de sua literatura tudo aquilo que é popularesco, pitoresco, burlesco. Isso é italiano sim, como o cinema de Fellini ou Pasolini, mas latino em geral, na essência, tendo como paradigma o Quixote. Talvez seja preciso uma imagem para ilustrar seu truque genial: todos sabem que não é fácil engolir uma alga marinha, ainda que mesclada em alguma iguaria da culinária japonesa. No mar, entretanto, sendo uma vez levado pelas ondas fáceis, recebendo o sol compensador, tolera-se e mesmo ama-se a estranheza de ter as pernas batidas e alisadas pelas algas em seu estado natural e vivo. Pois bem: vejamos o mar como o infinito compêndio de mitos que preenchem de graça nossas histórias, e as algas como as difíceis verdades que entrementes se anunciam. Assim é a literatura "fácil" de  Calvino.
Com muitos sorrisos agradecidos cheguei ao fim desta leitura que não se quer esgotar, só para recair no núcleo de tensão que me acomete há anos exigindo-me coragem; Calvino, generoso, coroa sua obra, ou dela dá cabo, deixando um conselho óbvio - pois nada é óbvio - a quem busque a coragem da expressão:
O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.
Que o céu exista e Italo Calvino traga-lhe algum riso e lhe amplie o horizonte imaginário.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

a pobres garotos que buscam um estilo muy rico

Para Voltaire e Oscar Wilde
Olhou-se no espelho da manhã, mediu os ângulos para verificar se a ponta do nariz permanecia levemente acima do horizonte, se cada sobrancelha erguia-se na incredulidade exata, fez biquinho para disfarçar a boca murcha de uma ressaca de anos. Oras, no mundo contemporâneo a vaidade masculina é artigo de revista, é coisa natural. Ele adorava falar do mundo contemporâneo como se fosse coisa muito natural.
O celular toca. Ele atende andando firme pela casa, de uma parede a outra, pois mesmo emerso de sonhos duvidosos que a noite lhe deixara, é sempre bom demonstrar uma paixão incontestável pelas ocupações cotidianas, ainda que expressa com certo ar entorpecido, para não parecer efusivo demais. Ele chamaria esta atitude de "equilíbrio", se já não tivesse abolido de seu vocabulário qualquer palavra que parecesse hippie demais.
- Olá! (preciso mostrar que estou contente em falar com ela) Estou bem... (um pouco de autocomplacência sempre chama a atenção). Sei...(vou mostrar que compartilho as preocupações da empresa como se ganhasse a mesma grana que ela)  Entendo... (cala a boca e me fala logo que vou substituir aquele imbecil) Que pena que ele agiu assim. (Coitado, deu uma de revoltado) Não se preocupe, eu posso fazer isso também. (eu sou bom, eu sou bom, eu sou bom) HAHAHA (não estou rindo da sua piada, mas da sua idiotice).
Sim, alguém caiu e agora ele poderia se levantar em seu lugar. É uma lei natural, e sou livre, livre, livre. Mas é melhor não dizer essas coisas em voz alta, ainda que muy justas, pois se deve ser humilde, simples, educado como os jovens de vinte anos que parecem saídos de uma piscina quente mesmo no pior dos eventos. Garotos que ele invejava, embora dissesse que "admirava", afinal existe certo charme em reclamar displiscentemente do próprio envelhecimento. Tudo é uma questão de conhecer um novo creme e de ser esperto o suficiente para não se divertir nem um pouco na balada mais recente, onde seria por isso mesmo invejado e vingado. Claro que não basta frequentar só casas noturnas, mas também aplaudir um "evento cultural" incompreensível com certa condescendência de quem sabe das coisas. O equilíbrio está, enfim, em espetar bem o cabelo para compensar a cara caída.
Já fazia um certo tempo que ele tinha medo de ser curioso, pois isto faz o peito bater e é melhor não demonstrar muito entusiasmo, emoção esta que faz o corpo parecer tenso demais. Ele perdia a inocência acreditando que perdia a burrice. E se alguém lhe dissesse que estava perdido, ok, pois está na moda ser "bem louco", seguindo pelos mesmos novos velhos circuitos, pelas mesmas novas velhas caixas de concreto superpopuladas. É bom estar na multidão, desde que não encostem nele. É bom cultivar uma dor infértil que ele acredita ser rebeldia, que faz querer ser parte de tudo um pouco, mas sem se aprofundar em nada, pois nada vale o engajamento de sua alma, só de seu corpo. E quando não consegue fazer parte de nada, quando não consegue ver a solidão como algo natural tais seus cabelos camufladamente planejados, repete com voz letárgica o mantra dinheiro, único valor concreto, realista, inteligente. Mas não dizia para os outros seu justo furor, pois não é de bom tom; ninguém dá emprego a um desesperado que pode soar como um revolucionariozinho de merda. O negócio é ser desesperadamente criativo, pró-ativo, ser melhor que os pais jamais foram, pois mais veloz - sim, ele acredita que ser inteligente é ser rápido. No fundo, aguarda ansioso o sucesso visível, não esse só de sua bela alma que se conhece. Quer um sucesso que tem a cara dos ambientes feericamente iluminados e perfumados que fazem a noite valer a pena. O sol é demais e faz suar.
Está tudo bem, pois quando está tudo mal resta ser sedutor, competir pelo melhor sorriso, passar batido por um choro de morte pois a morte não vale pena nem choro. É deselegante ser vulnerável, alguém pode ver. Há que ser forte, ou seja, duro.
Ao menos ele sabe glamurizar suas lamúrias. Ele não vê porque clamar aos céus como besta-fera inútil até para o sexo. A culpa é da cidade, mas há parques belos para percorrer. E ainda bem que tem parques com gente bonita e astral e saudável; as árvores não lhe bastariam com seu silêncio vivo.
Tudo é muito sofisticado e engraçado e interessante para que se perca tempo, para que se perca tempo em devaneios, para que se perca tempo em pensar, em pensar sobre si. Quem pensa demais parece muito egocêntrico e arrogante. E além do mais a palavra "hedonista" é mais sonora que a palavra "pensar", sem contar que uma droguinha transforma mais rápido que um livro. Livros são bons apenas para ter assunto. Para se enxergar, basta o espelho da juventude. Isto não é ser fútil, é ser antenado.
Mas, às vezes, por uma fração de segundo, o espelho lhe dói, e nem mijar com seu belo e potente pinto lhe alivia quando não suporta ver seu rosto por ângulo algum e só restam os olhos, os malditos olhos. Porque às vezes, às vezes, não dá mesmo para iludir o quão difícil é a tarefa de amar-se. Mas ele não sabe disso. Tolos somos nós que sabemos, que choramos, que somos "deprimidos". 

in between days

Hoje eu me sinto musical. Andei no ritmo certo, falei com o timbre necessário, respirei igual diante do desejo e da dor. Até cantei.
Senti saudades, revivi a infância com esperança e nostalgia para equilibrar meus mortos e os amores que ainda não sei.
Hoje eu agitei antes de usar, sacodi a poeira e dei a volta por baixo, e desdisse as instruções de uso e os adágios populares.
Tive raiva e compaixão. Pelas mesmas pessoas ilusoriamente próximas e pelos mesmos desconhecidos de coração. Acenei de leve para os compromissos e para os impulsos. Rendi-me e ergui-me. Trepei com a rua e vomitei em seu colo.
Falei com os amigos como se fosse sem querer e acariciei um cão qualquer como se ele fosse a origem do infinito.
Consegui ser cada um e ninguém, sem que ao menos tentasse algum ser. Soube quem sou e me ceguei.
Combato o tédio de amanhã, renovando algum grão de curiosidade, e não me encanto na ansiedade da incerteza do bom e do mau que enfrentarei certamente.
Por ora é só.  Por ora é tudo.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

a mais casta das cidades

Para quem não tem tem livros publicados e um fornido network, não cabe bem arrogar alguma sabedoria de próprio punho. Mas, para estes, existe um velho truque, que é o de citar, citar, citar.
Esta semana estou lendo As Cidades Invisíveis, do grande escritor italiano Italo Calvino. Aqui ele jocosamente reconta as supostas descrições que Marco Polo faz do império fantástico de Kublai Khan. As descrições de suas cidades são absurdas e por isso mesmo sábias. E se não fossem, oras, Italo Calvino já tinha bem umas boas décadas de estrada para escrever apenas a partir de uma inocência incontestável, de seu retorno ao fluxo da infância.
Pois bem, numa de suas cidades, a de Cloé, ele desenvolve uma idéia que sempre me vem à boca nas conversas informais, para sempre ser julgado de moralista, conservador, reprimido, ou coisa que o valha. Lá ele mostra como a contrição é necessária à plena expressão do desejo, que de outra forma, pela promiscuidade, retira dos homens qualquer aura de encanto, de real sensualidade. Nada de olhos famintos e explícitos.
Transcrevo este pequeno texto aos olhos de quem sabe ser o tempo precioso demais para julgar este ínfimo escrivão que vos fala.
Lá vai: 

"Em Cloé, cidade grande, as pessoas que passam pelas ruas não se reconhecem. Quando se vêem, imaginam mil coisas a respeito umas das outras, os encontros que poderiam ocorrer entre elas, as conversas, as surpresas, as carícias, as mordidas. Mas ninguém se cumprimenta, os olhares se cruzam por um segundo e depois se desviam, procuram outros olhares, não se fixam.
Passa uma moça balançando uma sombrinha apoiada no ombro, e um pouco das ancas, também. Passa uma mulher vestida de preto que demonstra toda a sua idade, com os olhos inquietos debaixo do véu e os lábios tremulantes. Passa um gigante tatuado; um homem jovem com os cabelos brancos; uma anã; duas gêmeas vestidas de coral. Corre alguma coisa entre eles, uma troca de olhares como se fossem linhas que ligam uma figura à outra e desenham flechas, estrelas, triângulos, até esgotar num instante todas as combinações possíveis, e outras personagens entram em cena: um cego com um guepardo na coleira, uma cortesã com um leque de penas de avestruz, um efebo, uma mulher-canhão. Assim, entre aqueles que por acaso procuram abrigo da chuva sob o pórtico, ou aglomeram-se sob uma tenda do bazar, ou param para ouvir a banda na praça, consumam-se encontros, seduções, abraços, orgias, sem que se troque uma palavra, sem que se toque um dedo, quase sem levantar os olhos.
Existe uma contínua vibração luxuriosa em Cloé, a mais casta das cidades. Se os homens e as mulheres começassem a viver os seus sonhos efêmeros, todos os fantasmas se tornariam reais e começaria uma história de perseguições, de ficções, de desentendimentos, de choques, de opressões, e o carrossel das fantasias teria fim."

MAKHTUB!

Oração da Manhã

Uma oração às pressas é o que me concede o tempo. Para resistir.
Quem sabe assim essas mãos já não minhas me abençoem na invenção de um deus mais puro, nunca antes pronunciado e nem por isto só meu, que "eu" é coisa que me parte.
Uma oração assim, com ponto e vírgula em lugar certo, mágico. Mas sem mistérios, que hoje quero a sabedoria da manhã de pássaros.
A árvore cresce sem pensar e assim me ouço e distendo sem vaidade, sem querer, quase no impulso que sexo nenhum pode conhecer.
Um amor. Universal, maior, que me perca em direções várias, na mesma delicadeza de uma ponta de dedo.
Para saber-me só eu choro a tristeza de quem não soube me querer. Para saber tamanho, para sentir saudade, para tomar meu banho.
Rezo sempre: amanhã talvez. A esperança é tênue, sim, e se não fosse, seria força, mas força é coisa de trilhos e trens, e quero ser fraco como lago, contido, constrito, apegado à terra, se esta for céu também. Quero aprender a ser pequeno.
As coisas todas acontecem tanto que só me cabe dormir e sonhá-las uma por vez, sem querer bater mais que o compasso de um sorriso discreto - esta chama de uma oração de tamanho ideal, fulguroso e trêmulo.
Feito isto, adeus mares, adeus olhos. A chama que me desperta é também a que me consome. Isto seria ambíguo se fosse civilizado, mas aqui quem fala é bicho que mal se põe de pé, que mal entende porque se trabalha, porque se conforta, porque se apodera. Eu vou abolir o poder tão naturalmente como um bicho a quem não se pode chamar rebelde, a quem o tempo não conta, a quem o universo perdoa e esquece.
Adeus, amor. Tua face é outra em qualquer canto. Sou livre para doer e por isto não me cabe exaltar. Meu amor não é um gozo. Meu amor não é uma história, um nome. Meu bonde é de outra era. Minha nostalgia é fraqueza dos ossos. Guardo-me assim. Assim. Assim. Que esta palavra caiba em qualquer beijo cuidadoso. A mim amém.