sábado, 13 de dezembro de 2008

milagre da carne

Rodin - Je suis belle, baseada em poema de Baudelaire


Como pude, do inferno mais absoluto da descrença, sorrir na esperança de um sonho incerto?
Um dia antes, estrebuchado na cama, afundando a cara na baba seca, tudo pareceu demais, o sonho uma besteira, o sexo uma desgraça, a certeza da saudade um amor que não se cumpriu como se prometeu, e eu queria tanto orientar minha vida para o amor, para o mais imbecil e absoluto dos interesses humanos, mas como crer por crer se o que me bate é um coração partido, e falo sério, não só por poesia barata, mas porque este meu órgão bate demais mesmo, quer eu ache que sofro demais, quer eu diga que a felicidade não existe. Bate mesmo quando não quero sentir nada, fica rondando atrás de alguma certeza de bem-estar passado, para me sentir vivo, para me sentir outro, um estrangeiro que a família e os amigos não conhecem nem podem, um estrangeiro que ousei mostrar para você, de vez em quando, nuns relances. Agora quero ser mistério insondável, mas multiplicando minhas próprias explicações sobre a superfície das coisas, uma revelação em cada objeto novo, em cada pessoa um irmão.
Mas eu estava no dia anterior, e ardia de impaciência, como se não merecesse ainda o caos da incerteza de um amor. Eu desejava qualquer coisa familiar, outra tempestade, algum sinal, alguma crença em sinais. O pior do fogo foi na ira mesma acender a vaidade, orgulhando-me de ser belo, nos momentos poucos em que julgo respirar aliviado. Aflição? Alguma patologia? Uma simples e incongruente injustiça do mundo? Alguma explicação para o jeito que luto para respirar? Mas o escuro, a incerteza, a apatia e a euforia, são momentâneos, e eu fico triste por saber que posso suportar a espera comedida de que eu acredite em mim do jeito que aquele sonho mostrou. Tudo isso que sinto é passageiro, mesmo o que não sinto, só não enquanto dura.
O tempo que resta é para investigar a realidade, descobrir uma nova arte, sair de si e entregar os braços e pernas ao mundo, de cabeça erguida. Mas eu quis sentir saudades e até o fim, até agora, e um dia será sem tristeza. Não ontem. Ontem foi suplício. Hoje espera. Para a semana, uns amigos novos e velhos. Para depois não quero saber, pois só no escuro saberei dormir, vagar pelo mundo dos sonhos, dos objetos e prazeres ilusórios, para colher alguma visão, outro sinal, alguma nova forma de ser. Com que bichos ou coisas sonharei?
Hoje eu só quero ser “eu arderia por esta pessoa mas sou só uma vaga idéia.” Hoje eu só quero brincar com quem brinca comigo, como se eu fosse uma possibilidade de amor distante, mas não para hoje. O dia de ontem ainda está muito próximo, ontem pode retornar a qualquer momento.
Você descobre, atordoado, que o passado não morre, que todos os amores são eternos, os que foram nos atormentam de saudades, os presentes, de dúvidas, os futuros, de medo e esperança, paradoxalmente.
Hoje a palavra amor é a minha droga, pois foi a única que me salvou de tantos mares de palavras sobre os prazeres possíveis. O que eu faria? Ser um descrente já é viver numa crença, pouco criativa, aliás.
Hoje eu descobri que posso escolher nomes novos para sentimentos velhos, fazendo uma coleção mais agradável de palavras. Chamei angústia de saudade. Chamei saudade de nostalgia. Nostalgia, eu chamei "tristeza com o presente", que eu chamei de inconformismo, que eu chamei de rebeldia, que eu chamei de imaturidade, mas também de força; força eu coloquei junto com as palavras hippies. Dúvida eu chamei de descanso e para o amor eu usei teu nome de novo. Só por hoje. Para ver o que acontece. Amanhã não prometo. Passei a chamar promessa de covardia. Mas, a covardia eu converti em medo. Sei que me cago de medo e o desejo sai rasteiro pelo ralo. Em seus braços eu só quero dormir. Esta noite. Mas não hoje. Hoje ainda é ressaca de ontem. Hoje é família, guitarras, conselhos de um amigo que observamos numa distância confortável, sair por aí, em outra cidade, em outro filme, em outro planeta, em algum lugar vai ter gente como eu. Quando eu conseguir ser eu de novo, um outro, um estrangeiro cheio de sonhos, estarei livre em seus braços, apenas pelo tesão de sentir que todo aquele desejo vale a pena, aquele corpo, cada parte onde afoguei meu fio de certeza, um corpo que abre meu corpo como onda marinha, até toda dor afogar em desejo, em mais um gozo, em mais uma torrente inconstante e necessária.
Vou parar de fechar o meu peito por tristeza e deixar o ar entrar mesmo com todas as palavras duvidosas de ontem, anteontem e sempre. Eu determino que meu corpo desfaleça na entrega ao resto de sensação que me sobrou entre as pernas. Que eu suspire fundo e entregue a coluna que me organiza ao prazer de ver o que virá, me testar em você, gemendo de tristeza, de descrença, mas de vontade de sentir o coração bater na preguiça de uma nova partida do jogo.

Um comentário: