quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

grandiloqüente epistolário elisabetano

Millais, Ophelia


Carta de Ofélia a Hamlet,

castelo de Elsinor, paisagem bergmaniana,

música incidental "somewhere there's a feather", Nico

Entre as cartas que te devolvo, deixo esta entreaberta, para que vejas logo o que tua loucura ainda permite ver, para que não rasgues, no impulso de uma esperança de esquecimento, um caminho que te valeu as penas, já entre tantas que nos acometem.
Vejo a arte em teus jogos de segredos e provérbios cifrados. Defendes o sentimento da revolta plena contra a injustiça da morte, não querendo mascarar com nenhum sentimento ideal de salvação a dor de ter de viver aprisionado nesses muros frios, detentores de tantos poderes. Calejas-te na dúvida, cruel, rancorosa, e desdenhas com soberba as fracas alternativas dos que te acompanham. O que eu e tua mãe, únicas mulheres neste antro de lobos famintos, poderíamos fazer a não ser defender nossas penas com sussurros de amor ou surtos silenciosos? Tua dúvida e desdém contra a própria vontade, violentada pelo conforto de ter as honras, tua revolta contra o desejo emancipador não te livra do ciclo de prazer e dor, girando onipotente sobre a umidade tediosa de nossos destinos marcados. Ou teremos salvação em terra estrangeira?

Aqui já houve quem jurasse o amor, por esquecimento também, pelo luto até, pela certeza de que, num homem, um futuro rei, uma visão ideal do paraíso e uma verdade de anjo que visitou o inferno reinariam no unguento único que é o compartilhar da dor, este momento de doce dificuldade que antecipa a comunhão das almas perdidas.

Mas não descobrimos a paciência. Nem nós, os amantes, nem eles, os inimigos, os mercadores. Agora, fingindo uma loucura maior do que todas, tu te orgulhas de se isentar da hipocrisia. Qual de nossos orgulhos será o mais justo e verdadeiro?

Que fantasmas domam o teu nome, Hamlet? Que palavras afora o desgosto, a vingança, a frieza, alijam teus pensamentos nas noites longas de nossos invernos?

Enquanto o passado nos paralisa, cada um desce o próprio fosso, preparando já a própria cova, ebulindo venenos, dando nós em armadilhas, escarrando maldições.

Com teu pai morto, mataste o meu. Aquele adulador não guiará meus caminhos mais, pois que me amaram por um instante breve e preciso como a morte que me mostrou. Ganhei coragem para ser louca, mas de verdade Hamlet.

Resta-me a mesma razão enlouquecedora que embruteceu teus sentidos ou o vão desepero de cantar as lembranças boas, como se nada mais existisse. O que eu escolheria?

Você ainda pode escolher em se deixar distrair pelos palhaços que te põem ao redor, enquanto crê na leveza do entrelaçar de uma vingança que faça precipitar um traidor para tornar outro traidor igual, bandido, entronado. Quais liras e jogos de espelho e jovens te distraem nesses dias?

A adulação e a falsa cumplicidade sitraem-te da incerteza de um amor precipitado, ele também, nos abismos de sonhos grandes, e por isso mesmo nobres, em terras novas. Quando fugiremos, Hamlet? Por que não fugimos, príncipe dos mares do norte? Em que praia realizaremos as imagens ditadas pela lua? Que sofros funéreos o astro noturno bafeja em tua cara nessas noites de tempestade?

Antes do dilúvio, era a certeza da carne, animada pela vida que nos restou. Meu colo era terra e chamas. Inquietos, procurávamos nos aperfeiçoar para o futuro. Agora, o passado. Devem ser só essas noites de infindas festividades. Ninguém sabe se chora o luto ou celebra o jubileu.... Vamos esperar Hamlet, guardemos nossas canções, essas outras canções, para depois, quando nos encontrarmos de novo no átrio do silêncio, para experimentarmos juntos, sem espanto ou ilusão, as magias universais.

Eu não tenho mais em que acreditar a não ser em milagres, Hamlet. Quero me lembrar de tantos sonhos juvenis, impetuosos, ousados, que foram capazes de salvar a história dos homens, distribuindo o pão, tornando ao menos compatível com a natureza nossa natureza excessiva.

Não quero tua atenção para que cuides de mim, mas para que deixe provar só o que for amor, chame isto uma coisa boa, sem juras, sem segredos, mas plena do silêncio confortável que só cumplicidade mais sobrenatural pode mobilizar.

Acredite-me sem ardis ou confissões, caro amigo, o que tinha para te dizer como amante já foi dito por outros amantes, agora falo como amiga, por amor dos homens, na hora urgente e atual, das celas que nos destinaram. Sim, o amor está para fora daqui, deve estar, mas o que faremos de nós mesmos, ainda que por jogo? É só angústia agora, de não fluir a imagem certa de um amor que assaltamos dos bolsos de nossos inimigos. Esperemos, Hamlet, Esperemos.

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