quarta-feira, 25 de abril de 2007

INCÊNDIO NO CIRCO



SP23ABR07


Sim, eu juro, eu só queria gozar, mas foi outra coisa que aconteceu. Acordei sentindo ameaças de prazer, de baixo pra cima, de dentro pra fora, e todo ‘vice-versa’ verificado em qualquer corpo são ou só. O tesão acumulado da noite anterior, melhor esquecer. Ninguém te deixou de pau duro e você diz que é porque ninguém te interessou. Agora acorda sem se caber. E você se toca. Mas antes de se tocar, se toca de que você foi egoísta pra caralho. E o caralho tá morto. Quanto amor pra dar, você queria que dissessem, mas ninguém fala de amor numa segunda-feira, pobrezinho. Sim, você quer se acreditar especial, pensar em coisas nobres, mas só sabe arder. O amor não combina com sua respiração sufocada. Foi fumaça demais na pista de dança. Você se espreguiça para relaxar e provar para si mesmo que dormiu bem, mas sente quando o corpo retorce como só faz com outro corpo. O amor. Meu saco.

Batem na porta. Que bom, alguém te salva dos pensamentos tortos que só o desejo traz. Essas coisas meio abstratas que a gente tem pressa de ler. Entra a atriz loira. A atriz morena dorme no quarto ao lado. De camisola rosa, ela se entrega e diz: quem é o meu palhaço? Preciso de uma música, um poema e uma dança para dizer o ‘quem sou eu’ do meu palhaço. Limpo a sujeira dos olhos na frente dela para deixar claro que achei o problema difícil e que sou apenas bicho. O palhaço sou eu, penso. Ela abre um livro de Carlos Drummond e derrama aquela melancolia de ladeira mineira. Ouço as buzinas lá fora. Não consigo rir nem sorrir. Disse que preferia Vinícius, mais dionisíaco, eu chutei. Não chegamos a uma conclusão. Ela arriscou Cecília, pura, mas consciente demais para um palhaço. Insisti em Manuel Bandeira e Mário Quintana, tão bobinhos e profundos. Não chegamos a uma conclusão. E eu pensei: ai meu saco, eu só queria gozar, ser desejo sem forma nem definição, e lá me vem você, pra te fazer lembrar uns poemas que só falam de amor, pra achar o amor do teu palhaço quando o palhaço aqui sou eu, já bravo, meio chato, monossilábico, com tesão demais pra ser sábio em alguma coisa a essa hora.

Você fala do amor como se fosse descartável, mas todas as poesias eram boas mesmo, e competem o amor entre si, é o que você descobre. E se lembra de ontem à noite: primeiro sentiu o amor banido dos corpos urgentes quando te puxaram os quadris com fúria e te disseram no ouvido coisas que um homem não diz. Era amor, mas você se lembra de outros corpos e umas almas até. E seu desejo foge do amor. Vai para dois lábios úmidos, doce criança suspira que sonhos juvenis de música e sucesso.Você já ouviu isso antes, mas não hoje, pensa, não desta boca sem fim. Era amor, mas você descarta essa possibilidade porque nessa hora da noite e nesse estado de estômago, não vale a pena lutar pra descobrir. Você só quer gozar com quem saiba rir quando falta um sonho juvenil. Viu só como você sabe o que quer? E isto é amor, respira aliviado. Tolo, você se diz, você respirou aliviado dizendo amor. E se justifica: sou obrigado a ouvir historinhas coloridas desta boca bonita quando eu já sei que é amor. O amor é o fim da boca. Cala a boca, por favor.

E a passos largos, você escorrega pra um outro drink que te lembrará daquele dia especial de anos atrás, quando jurou amor eterno para alguém que você já sabia que estaria longe demais para o amor. Foi mais fácil assim, você diz, e mais bonito até. Tenho algo puro, constante, marcado na certeza da memória. Que lixo! Olha onde eu estou. As pessoas se aglomeram em frente aos garçons atrás do balcão. Isso é o amor hoje à noite, você assume e cai na pista. Cruza com um sorriso que te repetem já faz meses, sempre o mesmo. Aquela afirmação tensa nos lábios, entre o desejo e a linda dúvida que mascara o medo e dá algum tesão. Você sorri de volta a dúvida, mas fecha os olhos como quem diz: eu só quero gozar. E o que tá te impedindo? O amor? O que eu tenho é maior, você se afirma e passa reto.

Você vai para o centro da pista para ter certeza de que sua dança de amor fique visível, e se não for amor, que seja o que vocês quiserem chamar, você já não se importa mais a essa hora da noite. Por fim, dá de cara com aquela pessoa que você tinha até esquecido que iria encontrar, aquela pessoa que lhe ofereceu várias possibilidades de amor, inclusive as já citadas. Beija porque tem que beijar, porque é assim que se faz quando o amor tem muitas faces ou é louco demais pra ser apenas essa coisinha chamada amor, como diz o rock’n roll. O beijo pergunta: cadê o desejo nesse amor todo? Sem palavras, duas bocas entram em combate. Sai a sentença: cadê o amor nesse desejo pouco? Depois olham-se com olhos de quem diz: porco velho! Você vai ao banheiro e vomita o beijo. Hora de escapar: o amor está vazando.

Você foge para a saída, não sem antes cruzar, estratégica e friamente, o caminho de cada um dos amores possíveis desta noite que já virava ontem. Hoje você acorda de saco cheio e reclama porque a atriz loira veio te consultar para questões amorosas. E deu a ela todos os poemas de amor que você vivera antes de dormir. Poemas contraditórios e verdadeiros como a noite insana. Drummond, Vinícius, Cecília, Mário e Manuel. Cada qual num canto da pista de dança. Mesmo na música eletrônica Vinícius samba miúdo de braços abertos. Mário e Manuel fazem gracinhas ao longe para duas irmãs até que bonitinhas. Cecília fixa o olhar num rodopiante foco de luz azul, desafiando a criação, muito além do amor. Drummond bate os pés, de cabeça pensa, concentrado no chão rasteiro. Esta noite os poetas não se deixam ouvir.

Se Rimbaud estivesse lá, estrangeiro que é, acenaria de longe e, com o olhar de quem viu algum deus solar, repetiria: é preciso reinventar o amor. Mas ninguém sabe por onde anda o francês ultimamente. Deve estar perdido no bolso de algum jovem insensato. Um dia você lerá Rimbaud sem amargar, você sonha, então encontrará o tal do palhaço nessa experiência que é o amor reinventado - e entre mágicos e palhaços, o circo pegará fogo e os bichos sairão à solta. Os macacos subirão nos prédios e de lá atirarão merda na cara dos desatentos e preocupados. Os elefantes pisotearão a cabeça dos atrasados e preguiçosos. Belo sonho, mas não faz o seu desejo secar.

À tarde, a atriz morena aparece. Também precisava de um texto para a sua personagem. Mulher da vida. E quem sou eu para saber disso? Sou homem trancado no quarto, e não mais. Ontem estive na rua, hoje quero esquecer. Não encontrei o amor que gera. Encontrei-me homem mais uma vez, sucumbido ao desejo infértil do mais fraco. Porco velho! E ainda me fiz de santo numa pista de dança. E hoje duas atrizes me enredam para a tal da profundeza das palavras...

Do fundo da estante acho Hilda Hilst. Velha, louca, trancada num sítio com dezenas de cães uivando pra ela. Mais que homem e mulher, Hilda foi o turbilhão que me salvou das palavras que me tirava a liberdade de amar sem objeto, cegamente. Achei um texto que ela escreveu numa segunda-feira: e se eu ficar lúdica, pastosa, permissiva, sonora, casta e contundente e não disser mais nada congruente, se eu ficar esmolando pelas ruas, lúcida espirocando, se eu levitar enquanto sobre o meu texto tu flutuas...

Mudei o gênero para o masculino e me encaixei: e seu ficar moleque, ereto, invasivo, conquistador, tímido e contundente e não disser mais nada congruente, se eu ficar esmolando pelas ruas, lúcido espirocando, se eu flutuar sobre as tuas palavras enquanto tentas levitar...

Assim, guiado pela louca, insensato com as palavras, puro com o desejo, esqueço todas essas palavras que transformei na historinha de antes e depois de uma noite de sono e volto para o começo, que é onde eu queria chegar, afinal: sim, eu juro, eu só queria gozar, mas foi outra coisa que aconteceu.

3 comentários:

  1. Bobinhos, profundos e conscientes demais. Nos dias em que acordo querendo adormecer gozando nada funciona assim. Puxam meus quadris de um jeito que não me faz responder. Cadê o desejo nesse amor todo? Cadê o meu desejo ao ouvir o que o homem não diz? Bobinha, profunda e consciente demais, me vi em cada uma das suas linhas.

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  2. adoro esta estória toda que a gente faz nesta e desta vida!... palhaço, mulher da vida... no final todos temos um pouco de tudo...
    tá tudo só na espera pra entrar me cena...
    seria melhor se no final de todas as cenas chegassemos ao fim e gozassemos muito...

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  3. Cara! Caí aqui por acaso e... lindo! Era exatamente o que eu estava procurando! Amei! Vou entrar sempre!

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