Para o Leo, que me venceu no Super Trunfo
“O poeta é um ladrão de fogo”.
Rimbaud
Eu já fui assaltado vinte três vezes, na proporção de um por ano, e só me tiraram cinco reais. Aprendi a fazer as contas para o pai, a reconhecer documentos e acordos tácitos. Sei contabilizar a minha vida, falo com orgulho. Só fico calado se me abordam com arma de fogo ou faca caseira. Não sou bobo, prefiro ser palhaço em cena, exposto com consciência, mesmo que esta consciência seja um silêncio. Quando sou palhaço a palavra some, dentro e fora de cena, e eu deixo ela sumir sem choro nem vela, tenho fôlego para ser bobo por inteiro, e não tenho medo de desmanchar no silêncio: aprendi a ficar erguido com muito balé e quando caio sou ator. Improviso e sobrevivo.
“O poeta é um ladrão de fogo”.
Rimbaud
Eu já fui assaltado vinte três vezes, na proporção de um por ano, e só me tiraram cinco reais. Aprendi a fazer as contas para o pai, a reconhecer documentos e acordos tácitos. Sei contabilizar a minha vida, falo com orgulho. Só fico calado se me abordam com arma de fogo ou faca caseira. Não sou bobo, prefiro ser palhaço em cena, exposto com consciência, mesmo que esta consciência seja um silêncio. Quando sou palhaço a palavra some, dentro e fora de cena, e eu deixo ela sumir sem choro nem vela, tenho fôlego para ser bobo por inteiro, e não tenho medo de desmanchar no silêncio: aprendi a ficar erguido com muito balé e quando caio sou ator. Improviso e sobrevivo.
O que eu acho bonito é o que aconteceu num desses improvisos. Havia comida no palco vazio. Entre a comida, uma coca-cola alienígena. Um dos atores fez um furinho na garrafa, tão sem querer, e aquela espuminha foi rompendo o plástico devagar, num jato bem fininho e ácido, até ganhar uma força tão grande que tudo que estava ao redor ficou endemoniado como se deve. O acaso uniu o lixo e o gozo. Não esquecerei, nem deixarei de falar disso, até porque teve aquela outra cena em que entreguei desejo, beijo, amor e sexo, dois anos que pareceram duas horas, tanto que quando vi já era outro espetáculo. O que eu fiz depois dos aplausos não te conto, não é hora para contabilizar o passado. Próxima cena!
Esta noite bateu um desejo de querer saber porque estou num espetáculo que não tem nada a ver com aquele outro, onde eu entreguei tudo. Quis saber quem eram essas pessoas que se roubam à noite, pelos corredores esfumaçados onde a juventude goza. Entre essa gente, tinha gente que já vi na minha platéia. Cuidei para ter a cautela de saber quem era amigo e quem era ladrão, não quis perder mais do que cinco reais. O resto de mim eu arrisquei. O amor eu sei dar de graça, já falo logo, porque graça eu tenho na medida, salvo meu cabelo que amassa sob a pressão de um leve sonho, mas isso eu resolvo lavando. Tudo. Os loucos eu deixo em paz. Sorrio para quem me oferece leite com chocolate e rio quando é pouco o mistério que me oferecem. Rio pra não perder a postura dupla de palhaço e bailarino, meu mistério maior. E eu falo tudo porque falar faz bem, mesmo às seis horas da manhã quando o amigo pede ajuda e o desejo descansava quieto com o sono. E essa noite eu falei tudo e tanto. Quis dar nome aos bois, reconhecer os demônios que não sabem brincar. Porque são tantas coisas e alguém ainda veio me dizer que essas coisas todas são frias referências, quando eu quero saber do que dá calor de fato. Chega de ser assaltado pra viver uma emoção. Preferi entrar na cena desta noite, sem saber se fui como palhaço ou bailarino.
Só tremi um pouco e escorri um certo gelo quando escreveram na minha barriga, quase no final da noite. Isto aconteceu longe dos corredores, num quarto precisamente quadrado, sob o olhar crítico de uma gata no cio. Levaram-me e eu me deixei ir. Andarilho, topei com a imagem de Rimbaud, ladrão vendedor de armas de fogo e poeta errante, um século depois da morte ainda perdido num porta-retrato, como eu na lembrança do espetáculo anterior. Preciso reler Rimbaud, eu disse para me entrosar com meu próprio mistério. Aí tomaram-me nas mãos, como se eu fosse mais palco do que gente, e aí escreveram por mim a próxima cena. Da pele toda, roubaram-me uma depressão que tenho entre o coração e o estômago, e que faz barulho quando é invadida. Fiquei quieto sentindo as letras vazarem sobre o suor e abri os olhos de fininho para ver o que acontecia ao redor do meu buraco. Pra não ser roubado é preciso estar, em primeiro lugar, com os olhos abertos.
E vi: era eu que acontecia. Era eu que me espiava sendo escrito. As armas de fogo, se as havia, estavam debaixo da cama. Depois, ainda quieto, espiei a insônia de quem me sobrou no fim da noite. E sorri sem medo quando descobri que não iriam me acordar às seis da manhã para discutir o amor, e que só queriam me cobrir da noite finda, porque já era de manhã e eu havia aceitado tudo, até o sol iluminando corpos pálidos de tanta noite e tanto espetáculo.
No dia seguinte, tudo estará claro, eu sonhei antes de dormir: os bois terão nome e seu histórico será exposto na internet para quem quiser ver, como meu buraco protocolado em ponta de caneta bic. Quero aplausos. Dançarei na saída sem nenhum prejuízo, só uma camisa amassada. No bolso, guardo cinco reais e alguns cigarros que sobraram. É preciso ter pelo menos uma esperança de fogo para os ladrões possíveis. E guardarei uma última dúvida (privilégio permitido a quem espantou os ladrões pros buracos certos): preciso reler Rimbaud, esse ladrão que era frio, mas talvez fosse quente.
ALESP08MAI07
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