quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Fragmentos de um evangelho apócrifo


Tradução de Alexandre Rabelo

3. Desditado o pobre de espírito, porque debaixo da terra será o que é agora na terra.
4. Desditado o que chora, porque já tem o hábito miserável do pranto.
5. Ditosos os que sabem que o sofrimento não é uma coroa de glória.
6. Não basta ser o último para ser alguma vez o primeiro.
7. Feliz o que não insiste em ter razão, porque ninguém a tem ou todos a tem.
8. Feliz o que perdoa os outros e o que perdoa a si mesmo.
9. Bem aventurados os mansos, porque não condescendem à discórdia.
10. Bem aventurados os que não tem fome de justiça, porque sabem que nossa sorte, adversa ou piedosa, é obra do acaso, que é inescrutável.
11. Bem aventurados os misericordiosos, porque sua dita está no exercício da misericórdia e não na esperança de um prêmio.
12. Bem aventurados os de limpo coração, porque vêem a Deus.
13. Bem aventurados os que padecem perseguição por causa da justiça, porque lhes importa mais a justiça que seu destino humano.
14. Ninguém é o sal da terra, ninguém, em algum momento de sua vida, não o é.
15. Que a luz de uma lâmpada se acenda, ainda que nenhum homem a veja. Deus a verá.
16. Não há mandamento que não possa ser infringido, e também os que digo e que os profetas disseram.
17. Aquele que mata por causa da justiça, ou pela causa que ele crê justa, não tem culpa.
18. Os atos do homem não merecem nem o fogo nem os céus.
19. Não odeia teu inimigo, porque se o fazes, é de algum modo seu escravo. Teu ódio nunca será melhor que tua paz.
20. Se te ofender tua mão direita, perdoa-na, és um corpo e és uma alma e é árduo, ou impossível, fixar a fronteira que os divide.
24. Não exagera o culto da verdade; não há homem que ao cabo de um dia não tenha mentido com razão muitas vezes.
25. Não jura, porque todo juramento é uma ênfase.
26. Resiste ao mal, porém sem assombro e sem ira; a quem te ferir na face direita, podes virar-lhe a outra, sempre que não te mova o terror.
27. Não falo nem de vinganças nem de perdões; o esquecimento é a única vingança e o único perdão.
28. Fazer o bem a teu inimigo pode ser obra de justiça e não é árduo; amá-lo, tarefa de anjos e não de homens.
29. Fazer o bem a teu inimigo é o melhor modo de comprazir tua vaidade.
30. Não acumules ouro na terra, porque o ouro é pai do ócio, e este, da tristeza e do tédio.
31. Pensa que os outros são justos ou o serão, e se não é assim, não é teu o erro.
32. Deus é mais generoso que os homens e os julgará com outra medida.
33. Dá o santo aos cães, deixe tuas pérolas aos porcos; o que importa é dar.
34. Busca pelo agrado de buscar, não pelo de encontrar...
39. A porta é quem escolhe, não o homem. 
40. Não julgue a árvore por seus frutos nem o homem por suas obras; podem ser piores ou melhores.
41. Nada se edifica sobre a pedra, tudo sobre a areia, mas nosso dever é edificar como se fosse pedra a areia...
47. Feliz o pobre sem amargura e o rico sem soberba.
48. Felizes os valentes, os que aceitam com ânimo parecido a derrota ou as palmas.
49. Felizes os que guardam na memória as palavras de Virgílio ou de Cristo, porque estas darão luz a seus dias.
50. Felizes os amados e os amantes e os que podem prescindir do amor.
51. Felizes os felizes.

texto publicado em "Elogio da Sombra" (1969)

domingo, 19 de dezembro de 2010

4 ELEMENTOS


Alegoria dos quatro elementos, Louis Finson

AR

O ar pra quem voa é lucro,
pra quem parte é pouco,
pra quem fica é luto,
pra quem respira é oco,
pra espaçonave é um lustro,
pro recém nascido é um chute;
e quem pensa o ar com custo é louco.

FOGO

O fogo mais brilhante é o incêndio;
o olho mais ardente é traiçoeiro;
beijo quente é imitação que não ofende-o;
tem fogo até nos pulsos de um coveiro.
Explode uma faísca no rosto mais cândido;
no centro desta festa em chama me desviro.
O fogo é puro no escuro como o sorriso do bandido.

TERRA

O chão bate seco na estrada real;
escorrega o deserto na superfície de areia;
O dente que morde, a pedra fatal;
De pó também se ergue quem viaja na beira.
Terra batida, terra mexida no temporal,
 terra de todos os nomes, terra só de poeira.
Mãe de todos, pai de cada funeral,
Engole o orgulho de ser tão astral quando é só rasteira.

ÁGUA

Onda que leva e engole,
gota que seca e vira céu,
mistério do fundo mais mole,
na fossa abissal o último véu.
Saliva que azeita a nota do fole,
chuva que campassa o galope do corcel,
mar que se enrola, nuvens ao léu.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

adormecer

Cansados dos ventos da noite, os finos fios de cabelo, frágeis e incomunicáveis uns aos outros pelo toque cego, tal uma raça inteira de humanos na cabeça de um deus, foram se acomodando na maciez maternal do travesseiro que, de tão justo, não prometia sonho algum.
A cabeça toda pesou sem culpa de ser só uma bola oca erguida no orgulho de um pescoço frágil que tanto se revirou para apreender as maravilhas do mundo. O peito pôde enfim suspirar a sinceridade de um cansaço ignorado durante o afã da sobrevivência de algum prazer.
A boca entreaberta aspirou um ar que se queria imaginar vindo de um tempo remoto onde não haviam homens, só terra e água revolvendo-se satisfeitas no próprio mistério.
Uma música chegou aos ouvidos, um zunido grave e suave que se reverberava como ondas de um lago calmo e habitado só por dançantes algas submersas em eterna oração.
Os olhos abriam e fechavam para comprovar se a reconfortante escuridão de fora era a mesma de dentro, de silenciosa entrega de todos os desejos ao lixo mais próximo.
As últimas palavras que a consciência soube captar foram: eu acredito. Depois, só uma revoada de pássaros translúcidos na noite fresca.  

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

HINO À NOVA ALEGRIA


Inspirado em Schiller, Goethe, Beethoven.

Amigos que não nasceram e que portanto não conheço,
São vocês que reconhecerão no rejuvenescer de meus olhos
Esta infância que eu próprio às vezes esqueço,
Mas que sorri fácil tendo na garganta os mais finos óleos
De hinos cantados com o mesmo perfume
Que nos bons e nos maus a vida resume.

Peguem das lodosas sombras o duvidoso sarcasmo
E num riso leve ao céu da manhã primeira
Riam de todo ressentimento que só vê prazer no orgasmo,
Para que os ventos confundam todos os cabelos numa só bandeira.
Pois não é de sombra nem de luz que se ergue um vitorioso,
Mas do invisível que eriça a pele num novo gozo.

Não se seduzam pelos que se pretendem retos
E que se arrogam e se afirmam por ter muito trabalho.
Nem só de pios sacrifícios se fazem os corretos,
Nem só por poder é dividido um baralho.
É por jogo também que se vive e que se espera,
E às vezes é preciso se perder para sonhar a seguinte era.

Agora esqueçam meus conselhos e atirem pro alto a moeda;
Cara ou coroa, toda escolha tem conosco um parentesco.
Um só caminho sempre as outras possibilidades veda,
E o único lar será sempre um coração fresco.
É de água que somos e nela tudo se mistura,
Seja o vil metal fundido seja a mais bela pintura.

Quem da terra conheceu todo desejo,
Pode criar um novo céu de paixão sem destino,
Onde toda ambição se resuma a um beijo
Dado ao acaso de um sopro repentino.
E só nos olhares contentes de si teremos o sexo flagrante
E será quando cada um de todos será irmão e amante.

Este foi só um sonho vão como é vã toda fama,
Mas foi num sonho como este que todo gênio se ergueu eterno;
E a todos eles coube conhecer primeiro a lama
Donde cada um nasceu e para onde escorre todo inferno.
Pois é no turbilhão entre o escuro e o iluminado que tudo se cria;
Assim, mesmo indecisos, cantemos juntos à nova alegria.