domingo, 6 de junho de 2010

KAFKA À BEIRA-MAR - Haruki Murakami


"Nakata descontraiu os músculos, desligou o comutador da cabeça e transformou-se numa espécie de sensor vivo. Isso era natural para ele. Nakata o fazia cotidianamente desde criança. Logo, as bordas da consciência começaram a esvoaçar como borboletas. Do outro lado da borda estendia-se um vasto e escuro abismo.  Por vezes, ele estrapolava a borda e sobrevoava esse abismo de estonteante profundidade. Mas Nakata não temia nem a escuridão nem a profundidade. Por que haveria de temê-las? Esse mundo escuro cujo fundo não avistava, assim como o pesado silêncio e o caos, há muito constituíam uma entidade amiga e repleta de nostalgia e eram agora parte dele mesmo. Nakata sabia disso muito bem. Nesse mundo não havia letras, dias de semana, temíveis governadores, óperas, nem BMWs. Nem tesouras, nem chapéus de copa alta. Mas ao mesmo tempo não havia também enguias nem pão doces. Ali havia tudo. Mas ali não havia partes. Como não havia partes, não precisava substituir certas coisas por outras. Nem tirar nem acrescentar. Não era preciso pensar em coisas difíceis, bastava apenas deixar-se impregnar por tudo. E Nakata achava que isso era mais gratificante do que qualquer outra coisa no mundo.
Às vezes, Nakata caía em leve modorra. Ele podia adormecer, mas seus cinco sentidos estavam alertas, vigiando o terreno baldio. Se algo acontecesse, se alguém ali surgisse, Nakata despertaria num átimo e entraria em ação em seguida."

Tradução do japonês de Leiko Gotoda
Editora Objetiva/Alfaguara 2008

Este é o segundo livro que leio deste grande autor contemporâneo de origem japonesa. Sua mistura de referências eruditas e pop nos levam a imersões em experiências impressionantes como a deste trecho, em que uma experiência digna de um guru oriental é vivida por Nakata, um senhor "idiota" no mesmo sentido do Quixote ou do príncipe Mishkin em Dostoiévski. A capacidade deste autor de expor com clareza, simplicidade e naturalidade as experiências mais tabu e limítrofes da vida, as mais inexplicáveis, é um assombro para o leitor. Este autor tem a rara capacidade de popularizar sem perder a profundidade e os detalhes, ao mesmo tempo em que "eruditiza" experiências cotidianas sem nome, imprimindo-lhes um significado transcendental, à la Clarice. Quando terminar a leitura volto para contar mais. Para quem quiser, dê uma uma olhada no escrevi sobre o outro livro de Marakami que li, Norwegian Wood:
http://alerabelo.blogspot.com/2009/05/norwegian-wood-haruki-murakami-e.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário