quarta-feira, 16 de junho de 2010

Haruki Murakami entre aventuras juvenis e silêncios extemporâneos


William Blake, em seu livro Canções da Inocência e da Experiência nos devolve sempre à encruzilhada entre os mitos "ocidente" e "oriente". Mito ocidental é o da experiência da razão, da ciência da palavra que é magicamente lógica, científica, histórica, explicativa. Mito oriental é o de um misticismo inocente, de um paraíso perdido, de uma palavra que é, no anverso da história e do tempo, logicamente mágica, revelada. A graça deste livro de Blake, que tomamos como exemplo de uma problemática, é exatamente justapor os mitos sem hierarquizá-los, é transmitir em cada metade de seu livro o mesmo conjunto de experiências por duas chaves; aquela que abre um quarto de adulto para que uma criança o veja e ali sinta os aromas de putrefação animal que a palavra esconde, e aquela outra chave posta na mão do adulto que espera encontrar no quarto da criança  um mistério que ele se esqueceu de sonhar, e que talvez nunca soube.
É nesta encruzilhada que o escritor japonês Haruki Murakami constrói sua obra trans-hemisferial Kafka à beira-mar. Ali, um oriente ocidentalizado tem nostalgia de sua própria inocência no olhar do outro, bem como um ocidente orientalizado vê a si mesmo em suas experiências com o mistério, a escuridão, o oculto, ou, em outras palavras, com o deslumbre iluminado da fantasia. Este livro é eruditamente irônico e melancólico e popularescamente palhaço e triste. Em Kafka à beira-mar, os extremismos de um paraíso perdido e de um inferno presente são tão pitorescos quanto burlescos, e o que nos resta - se cabe-nos buscar um substrato, uma síntese - é um limbo criado entre os universos fantásticos de Alice no País das Maravilhas e Cem Anos de Solidão.
Nesta impressiva obra de Murakami, a infância e a velhice do mundo tentam se encontrar entre fantasias extremas (ou extremistas), justapostas como a inocência e a experiência, entre o menino de quinze anos Kafka Tamura e o ancião Satoru Nakata. O menino, que foge de casa enfeitiçado por uma profecia edipiana, nos representa a descoberta do mundo como uma aventura desencantada. Kafka Tamura é já um velho que sabe. Nakata, o velho imbecilizado por um evento misterioso da natureza inexplicável, é o Quixote, o Idiota de Dostoiévski. Tem a inocência da ignorância que não deixa de ser ética. Essas duas trajetórias paralelas, que só convergem num infinito fora deste mundo, mas pleno de sentido, nos levam a devorar o tempo de cada página como se a eternidade pudesse enfim ser retida, mesmo ao ser abandonada por nossas desilusões. De que lado está a verdade? Na canção do Radiohead repetidamente ouvida em silêncio pelo menino Kafka? Na língua dos gatos que Nakata domina e depois esquece? Nesta obra fantástica (nos dois sentidos), a fantasia é refúgio e ao mesmo tempo desilusão.
De Tóquio a uma floresta encantada na ilha de Shikoku, o inocente ancião e o experiente menino só encontram fantasmas, mas é no limbo da busca que o humano deixa o testemunho mínimo de sua dignidade. Murakami não cai na cilada de explicar os mistérios. São muitas as imagens que se sucedem freneticamente nesta ficção contudo tão mortalmente silenciosa quanto a realidade mais dura: uma chuva de peixes, uma pedra que fala, um menino chamado corvo, um velho que fala com gatos, uma flauta de almas, uma profecia edipiana, as sombras da guerra, os labirintos da cidade e da mata e, sobretudo, os prazeres simples e intensos, de um prato de arroz ao sexo cru. 
A pretensão de Murakami parece ser um compêndio das ilusões humanas, de tabus primitivos, como o incesto e o assassinato, à elaboração mais intricada de um suposto mundo espiritual, visando paradoxalmente pelo excesso um esvaziamento da memória do mundo. É de um conforto incômodo. É a certeza do poder da incerteza do sonho em que o poder deixa de se impor.
A busca por identidade, que conduz as personagens, se torna mais importante quanto menos elas buscam se afirmar. Só importa a busca, que nesse universo ficcional tão rico e imaginativo, não pretende nos levar a nenhum lugar conhecido, embora se construa com imagens deliberadamente familiares. Finalmente, a consciência de si só ganha densidade ao se reconciliar com  a presença inominável do mundo:

"- Mas ainda não sei o que significa viver - digo.
- Olhe o quadro - diz ele - Ouça o vento.
Aceno a cabeça positivamente.
- Durma um pouco - diz o menino chamado Corvo - E, quando acordar, será parte de um novo mundo.
E então, você adormeceu. E, quando acorda, é parte de um mundo novo."

Um livro para todos.

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