O desespero não é o desespero. É a oportunidade do amor, do gesto novo.
Caio caiu. Quando viu os truques que moviam suas ilusões, já era tarde demais. Tarde demais para recuperar o passado. Um a um os truques que lhe davam prazer envelheceram, envileceram, perderam a cor. O brilho da beleza se escondeu em outro lugar, numa espécie de reservatório particular, a fonte da imaginação. O brilho da beleza revelou-se no pulso sem controle, na entrega impensada do simples corpo. O brilho da beleza também incendiou os vícios, tornando-os uma face ofuscante de deus. A carne, enfim, tornada revelação. O coração como mestre, o amor como guia, a alma como resultado. Mas isto foi depois da queda.
Enquanto caía, Caio emplumou-se orgulhoso de medo, respiração de ninguém, de coitado. Parou no ar e ninguém o acolheu. Suspirou alto para crer vantagens de si perante os outros. Quase desaprendeu de sorrir. Ocupou-se em construir a máscara perfeita para o que julgava ser sua dor. Tornou-se mais carinhoso do que de costume, rendendo-se a melancólicas saudades, espremendo as lembranças felizes, parando o olhar numa beleza incerta, esvanecente. Segurou o queixo numa queixa firme e assim ficou até o fundo da preguiça quando, enfim, no ato impensado de pensar, acreditou no óbvio das coisas, no silêncio puro do agora. Soube perdoar, soube aceitar-se, soube ver o peso do mundo nos objetos ao redor, caindo sólidos sobre suas ilusões, sobre sua ordem invertida. Passou a correr no sentido do tempo, conforme o desejo e a angústia, a fome e a sede, a preguiça e o sono, o sonho e a revelação de milênios ancorados na noite trevosa.
Mas tinha coisas a fazer. Enquanto caía, lembrava-se com pavor de obrigações, compromissos, dívidas que lhe sugavam do excesso de suas fantasias. E enquanto obrigava-se a viver, tal como o mais genérico dos homens, a vida o convencia de mansinho, sem maiores choques, noutro lugar, longe do emaranhado dos fatos, perto do sonho da verdade. Para seguir o seu sonho, Caio passou a obedecer a todos, treinou a humildade, seguiu os conselhos, praticou o silêncio. Estudou o que não podia, trabalhou o que não queria, comeu o pão que o diabo – mais preocupado com catástrofes maiores - esqueceu de amassar. Treinou sua rebeldia destilando-a suavemente pelos cantos, como um gato que passa. Seguia com seu olhar de horizonte de pedra, que só quebrava ao menor olhar curioso de alguém. Então sorria o mistério, cada vez mais discretamente, sem o desperdício da juventude.
Desse jeito conservava-se criança, brincando de errar, casando gestos, sem autoridade, vagando pelas ruas, pelos quartos, passeando pelo tempo, sem hora nem dever nem compromisso a não ser consumir-se no instante de cada coisa, abstrato, distanciado dos assuntos humanos, envelhecendo sem saber até ser tarde demais para sofrer com isto – ou cedo demais para chegar ao desespero final da morte de toda consciência, a queda final.
Caio caiu quando imaginou que o desespero fosse algo que ele não desejava imaginar. O que desejava então? Uma pergunta sincera, enfim. Ohou para o seu corpo após a queda e, parado na oportunidade do desejo, se levantou e, pelo gesto, atirou-se no abismo do amor.
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