segunda-feira, 30 de julho de 2007

OS GUERREIROS DE NINGUÉM - um conto chinês

Uma homenagem a Guy de Maupassant
Sei que a história que tentarei relatar da forma mais simples possível parecerá de todo inverossímil. Não posso considerar-me alguém que foi gratificado com dotes literários. Sei também que este relato parecerá mero produto de uma mente em devaneio, mesmo porque serei obrigado a ocultar certos detalhes que decerto contribuiriam para tornar esta história merecedora de mais crédito. A simples necessidade de manter o meu nome oculto revestirá esta narrativa com uma máscara imperfeita de mistério; máscara, aliás, muito melhor utilizada por autores de outras épocas. Mas eu não sou um autor; o que relato de fato me aconteceu. Se eu conto esta história sem revelar-me por completo é porque não posso mais guardar este segredo que todos os dias me lembra de sua existência, mesmo no silêncio da carne. Só hoje compreendo que talvez eu não tenha sido o único. Há, quem sabe, toda uma dinastia milenar de anônimos que, sem pedir, foram estigmatizados pela mesma experiência que eu. É para que estas pessoas que escrevo esta história. Se chegarem a essas páginas, que não se sintam sozinhas. Já faz três anos que me vi enredado nesta estranha série de eventos, e ainda hoje minha razão duvida de sua veracidade, não fosse pela marca indelével deixou em mim, como logo ficará explícito.

Aos trinta anos de idade eu podia ser considerado o que se chama ‘homem de sucesso’. Aos vinte e dois anos eu concluía com grande êxito meus estudos universitários que me garantiram o título de engenheiro eletrônico. Logo fui contratado por uma das maiores empresas de informática, e aos vinte e sete anos eu já havia conquistado o que muitos passam a vida toda para conquistar e, na maior parte das vezes, não conseguem. Aos vinte e oito eu contraíra um feliz casamento com uma jovem publicitária de sucesso. Todos nos consideravam um casal de sorte e desfrutávamos desta bem-aventurança de todas as formas possíveis. Tínhamos muito amigos e nunca éramos dispensados de qualquer evento social. Por mútua decisão, planejávamos gerar a nossa progenitura só quando tivéssemos consumido toda a nossa juventude num luxo que se abria cada vez mais diante de nós. Éramos, como se diz, um casal perfeito, fruto de um casamento realizado a um só tempo por amor e por conveniência.

Aos trinta anos meus superiores me julgaram confiável e impetuoso o suficiente para que eu representasse nossa empresa no exterior. Eu e minha esposa já conhecíamos vários países da Europa, as cidades imprescindíveis da América do Norte, e colecionávamos uma ou duas aventuras nos Andes. Mas eu nunca tivera a menor pretensão de visitar a China. Eu guardava uma impressão respeitosa, mas quase indiferente deste país milenar. Quando me avisaram que a minha primeira viagem como representante internacional seria para a China, eu não soube muito bem o que pensar. Limitei-me a comprar um guia de viagens. Não tinha muito tempo para percorrer os vastos territórios chineses, e nem pretendia. Eu visitaria a Grande Muralha e uma ou duas curiosidades instaladas nas proximidades de Pequim. Eu sabia pouco ou quase nada sobre a cultura chinesa. Conhecia sua impressionante tecnologia e tinha ouvido alguma lenda absurda de que a Grande Muralha seria a única construção humana visível da lua.

Durante o vôo planejei toda a minha estadia. Decorei algumas frases essenciais em chinês e assinalei em meu guia de viagens algumas informações que me preveniriam de roubos e outros acidentes.

O avião aterrissou numa noite quente e perfumada. Parti imediatamente para o hotel e estendi-me na cama para aliviar-me um pouco do peso do fuso horário. Durante todo o dia seguinte cumpri minhas obrigações profissionais de forma tão eficiente que nem merecem serem relatadas. Uma nova reunião estava marcada para dali a dois dias, o que me daria tempo para fazer algumas compras e visitar a Muralha. A cidade estava cheia de turistas, principalmente americanos e japoneses. Consultei a recepcionista do hotel para informar-me sobre como eu deveria proceder para visitar a muralha. Felizmente o hotel estava preparado para encaminhar-me para uma visita guiada, o que me poupou trabalho e me deixou muito satisfeito. O guia informou-me que devido à alta temporada, um passeio pelo trecho mais visitado da muralha, chamado Ba Da Ling, precisava ser agendado com três dias de antecedência. Como eu não dispunha deste tempo, e por julgar que um muro é apenas um muro, pedi ao guia que me indicasse um outro ponto da muralha. Ele apresentou-me três ou quatro alternativas. Por fim, decidi-me por um trecho apelidado de Grandes Ventos, ou Mutianyu, instalado em altos cumes que recaem sobre vales profundos, recheados de grandes árvores antigas, e famoso por seu aglomerado de três torres que formam uma espécie de palácio no alto de um dos pontos da muralha. A cada cem metros, torres de observação velam a paisagem. A Passagem de Mutianyu, como é conhecida, foi reconstruída durante a dinastia Ming. Como se localiza aproximadamente a setenta quilômetros a nordeste de Pequim, no condado de Huairou, eu marquei a visita para logo depois do almoço, o que me permitiria descansar um pouco. Mas eu não esperava por uma longa peregrinação. O guia já havia me informado de que a muralha agora de dispõe de serviço de teleféricos que conduzem as pessoas para o alto da muralha. O folheto turístico ainda revelava que para as crianças havia sido montado um tobogã que descia da muralha pelo encosto da montanha.

No dia seguinte, após um almoço rápido e uma hora de viagem, durante a qual fui obrigado a ouvir em três línguas diferentes a longa história da construção da muralha, finalmente eu alcancei o meu destino. Confesso que não senti grandes emoções. As máquinas fotográficas e o burburinho dos americanos e japoneses não me permitiam vivenciar em silêncio toda aquela solidez ancestral. Pensei nos soldados que, há centenas de anos atrás, consumiram suas vidas no alto daquelas torres na espera de um inimigo que nunca vinha. Talvez esses soldados, tão minimizados pela grandiosidade daquela construção e dos vales sem fim, conhecessem a verdadeira dimensão da existência humana. Depois de pensar nessas sentinelas anônimas, não quis mais saber da muralha. Informei ao guia que eu estaria no ônibus no horário combinado e, aliviado, apartei-me de meus companheiros provisórios e desci em direção ao centro da cidade de Huairou. De volta ao conforto da terra, pensei que nem todos deveriam ter o direito de subir ali e vigiar de forma tão displicente aqueles vales dominados pela Grande Muralha, inclusive eu próprio.

Na região de central de Huairou estendia-se um grande galpão antigo, talvez uma reminiscência do passado maoísta. Por toda a extensão desse galpão inúmeras portas se abriam para a rua. Por essas frestas se entrevia um interior apinhado de pequenas barracas cercadas por uma multidão de turistas que buscavam algum belo souvenir da muralha. Os comerciantes gritavam uns mais alto que os outros para cativar a atenção dos possíveis compradores. Resolvi entrar e percorrer as galerias estreitas que se formavam ao acaso da distribuição aleatória das barracas. Tudo era vendido ali, exceto talvez algo realmente útil. Os turistas eufóricos também gritavam uns para os outros. Venha ver isto... Venha ver aquilo...

Num canto, uma cena estática chamou a minha atenção. Um pequeno senhor chinês de pele queimada – talvez o sobrevivente de algum acidente doméstico – estava sentado num banco baixo de madeira com uma folha de papel sobre o colo e um pincel numa das mãos. Parecia muito concentrado. Em pé, a sua frente, uma linda mulher o observava em silêncio. Não parecia curiosa, desconfiada, encantada, ou coisa que o valha. Estava simplesmente em silêncio, quase triste, quase paciente. Apenas observava. Num dado momento esboçou um leve movimento com a cabeça para afastar dos olhos seu cabelo escorrido e loiro. Aproximei-me.

Parei do lado da moça e tentei ver o que o homem pintava. A princípio meus olhos divisaram um grande borrão negro de detalhes mínimos. Depois pude ver uma mulher no centro, de longos cabelos lisos, sob o alto de uma das torres da muralha. Pequenas borboletas exameavam a atmosfera. Apesar de ocupar o centro do desenho, a mulher não parecia ocupar maior destaque que as borboletas. Apenas a torre se impunha sobre todos os outros objetos diminutos e transitórios.

- Gosta do desenho? – disse a mulher dirigindo-se a mim em bom e velho português com um leve meneio de cabeça. Seu olhar era quase chinês.
- É muito bonito. E que paciência... – eu disse.
Ela sorriu em concordância.
- Como você sabia que eu era brasileiro?
- Eu dei uma camisa igual a sua para o meu marido – ela disse com extrema graça.
- Então você e minha mulher devem ter se cruzado na mesma liquidação...
Ela riu. O velho permanecia absorto em seu trabalho.
- É você no desenho? – eu quis saber.
- É sim... Este senhor é incrível. Ele pede para que você diga um lugar em que se sinta bem, e desenha esse lugar.
- Pelo visto você gostou muito da muralha.
- É... É impressionante...
- E as borboletas?
- Ele me disse que cada um vê a muralha de um jeito, e me perguntou como eu me senti enquanto estava lá. Eu disse que tinha me sentido como uma borboleta... Na verdade, eu acho que ele deve estar cansado de desenhar as pessoas na muralha...
- É verdade – eu me limitei a dizer.
- É a primeira vez que você vem à China?
- É sim... É um país impressionante – eu comentei de forma genérica. A verdade é que eu ainda não tinha uma opinião formada sobre tudo aquilo. – E você?
- Eu sempre venho...
- Trabalho?
- É – ela disse sem acrescentar maiores detalhes.
- Eu também. Qual é o seu nome?
- Ma...

Antes que ela pudesse completar seu nome, fomos surpreendidos por um estranho evento. O velho, que até então parecia não ter desviado os olhos de seu desenho, levantou-se com um único movimento brusco e agarrou com força o braço de um menino para quem emitiu algum vitupério antes de livrá-lo. O menino correu para dentro da multidão. Depois o velho disse alguma coisa em chinês para ela, que respondeu com visível alívio. Em seguida, ele voltou a concentrar-se no desenho.

- O que aconteceu? – eu quis saber.
- Esse menino tentou levar a minha bolsa, mas esse senhor foi mais rápido.
- Nossa! Como ele percebeu o menino?
- Os chineses são muito discretos.

Alguns segundos depois o velho segurou o pincel com seus dentes apodrecidos e, com as mãos livres, enrolou rapidamente o desenho, atando-o com uma fita vermelha. Entregou-o à moça que agradeceu muitíssimo e lhe devolveu uma quantidade mais do que razoável de dinheiro. O velho curvou a cabeça várias vezes, sempre com muita ênfase. Sua pele retorcida esticava na região da nuca. Quando a moça estava prestes a ir embora, ele suspendeu a despedida com um gesto de mão. Ela calou-se esperou. De um saco velho e sujo que mantinha debaixo do banco, ele retirou um envelope impecavelmente branco onde se podia ver algumas letras maravilhosamente caligrafadas. Ela recebeu o envelope com uma curiosidade atenta. O velho disse algumas palavras enquanto sorria com os olhos apertados. Num dado momento, ele apontou em minha direção. Ela olhou para mim, depois para ele, sorriu e despediu-se com derradeiro aceno de cabeça. O velho não olhou mais para mim. Senti-me deslocado, mas logo em seguida ela dirigiu-se a mim, enquanto nos afastávamos dali:

- Você recebeu um convite...
- Convite? – eu repeti sem entender.
- É... Ele me agradeceu várias vezes por eu ter pago mais do que o combinado pelo desenho. Eu lhe expliquei que eu só queria recompensá-lo por ter impedido que minha bolsa fosse roubada. Mesmo assim ele me convidou para uma festa... E disse que eu poderia levar meu amigo. Ou seja, você.
- Obrigado. Que tipo de festa é essa?
- Acho que tivemos muita sorte. É uma festa muito especial. A cada cinco anos alguns membros de sua comunidade têm permissão para realizar uma cerimônia milenar de primavera na muralha. Será amanhã à noite. Acho que será uma experiência imperdível. Quer ir?
- Por que não? - eu respondi, sem avaliar muito bem no que este privilégio me privilegiaria.

Eu associava este tipo de experiência a um espetáculo folclórico que apenas expressa as idiossincrasias remanescentes de uma cultura popular já agonizante. Folclore era para mim uma palavra associada a valores ultrapassados que nada diziam sobre a minha própria vida. Na minha condição de cidadão metropolitano bem-sucedido, politicamente correto, eu afetava respeito por este tipo de manifestação popular apenas por julgá-las importantes para a afirmação da identidade dos grupos que as realizam, mas, no fundo, eu encarava este tipo de festa como uma tentativa vã de ressuscitar crenças mortas. Se a muralha ainda se mantinha em pé, é porque era feita de pedras, e não de crenças. Mas a despeito de minhas próprias crenças, eu aceitei o convite de bom grado por reconhecer a qualidade estética que esta festa prometia, afinal, seria instalada num cenário luxuriante. Além disso, eu contava com excelente companhia.

- Aqui diz que devemos estar lá às dezoito horas – disse minha conterrânea, após verificar o conteúdo do envelope.
- Combinado... Então, até amanhã.
- Até amanhã.

Cumprimentamo-nos com um leve aperto de mãos e, embora eu não tivesse ainda um rumo definido, parti na direção oposta à dela. Enquanto caminhava para o ônibus eu pensei nesta estranha solidariedade que se estabelece entre conterrâneos que se encontram na condição de estrangeiros. Depois me lembrei mais uma vez da quieta solidão das antigas sentinelas da muralha. Entretanto, quando cheguei no ônibus, só consegui pensar no cansaço de minhas pernas, tão exigidas pela Grande Muralha. Sentei no meu confortável assento, produto da mais alta tecnologia, e adormeci. Nem me lembrei de que minha bela conterrânea havia partido sem dizer seu nome...

No dia seguinte, ainda com meu relógio biológico desregulado, acordei em torno do meio-dia, almocei algo leve no restaurante do hotel, e logo comecei a tomar as providências para meu novo encontro com a Passagem de Mutianyu. Os ônibus para Huairou saíam apenas na parte da manhã, o que me obrigou a alugar um carro e comprar um mapa. Cheguei aos arredores da muralha pouco antes das seis horas. O horário de visitação já estava encerrado e não havia mais ninguém, salvo alguns vigilantes noturnos. Agora é muralha quem precisa ser vigiada. Ainda tentei usar o teleférico, mas como era de se supor, suas atividades também estavam encerradas. O acesso à muralha agora só poderia ser feito à moda antiga, ou seja, mediante uma escalada de, no mínimo, quinhentos metros altura. Procurei a trilha que me permitiria subir sem que eu me perdesse na floresta densa e escura. A trilha estava selada por um guardião vestido com uma leve túnica de seda branca. Estava prostrado entre duas bandeiras altas, uma vermelha e outra branca, que ricocheteavam do alto de bambus que cediam ao vento daquela noite. Tentei explicar-lhe que eu fora convidado para a tal festa, mas de nada adiantou. Ele parecia não entender uma palavra em inglês. Nesse instante, quando eu estava pronto para desistir, fomos interrompidos pela minha conterrânea que estava mais bela do que nunca. Por uma feliz coincidência, ela também estava vestida de branco, com um vestido que lhe descia até os joelhos. Calçava sandálias leves de couro cru e seus cabelos esvoaçavam livremente, presos na fronte por pequenas libélulas prateadas de olhos vermelhos.

- Pensei que eu não iria chegar a tempo – ela disse um tanto esbaforida, e logo entregou o envelope ao guardião que nos permitiu passar após ter-nos provido com uma daquelas lanternas de papel vermelho.

Eu não disse nada. Apenas sorri um tanto atordoado por aquela beleza que seria difícil de suportar, não fosse equilibrada por extrema delicadeza.

- O cheiro dos pessegueiros e das ameixeiras é delicioso – ela disse com um leve suspiro.
- É – eu disse.
- A natureza é surpreendente, não é? Quem diria que essas flores brancas se transformariam em belas ameixas vermelhas, enquanto que essas pequenas flores rosas, quase vermelhas, viram pêssegos dourados?
A trilha era sinuosa como a própria muralha. Algumas pessoas dizem que é um dragão que se estende pelos altos cumes. Senti-me um tanto embriagado. Se eu abrisse a boca, certamente iria dizer alguma asneira. Felizmente minha companheira não parava de falar.

- Você sabia que nas fundações da muralha estão enterrados alguns trabalhadores que se acidentaram durante a construção da muralha? – ela continuou.
- O guia disse alguma coisa a respeito, mas eu não prestei muita atenção.
- Existe uma bela história que conta que uma moça atravessou o país para se encontrar com seu amante que trabalhava na construção da muralha. Depois de meses de viagem ela finalmente chegou ao seu destino, ansiosa para reencontrar seu bem-amado. Alguém lhe disse que seu marido havia morrido já fazia vários meses. Ela ficou enlouquecida e emitiu um grito tão feroz que fez ruir todo o trecho já construído da muralha. As pedras caíram sobre ela, enterrando-a viva próxima ao túmulo de seu amado. Não é lindo?

Na verdade, naquele momento aquela história pareceu forte demais aos meus sentidos. Mesmo assim, eu concordei com ela. Por uma fresta aberta entre os galhos das árvores eu pude ver de relance um trecho da muralha. Uma das torres havia sido decorada com bandeiras brancas e uma torre seguinte com bandeiras vermelhas, ambas semelhantes àquelas que encontramos no início da trilha.

Por fim chegamos a uma pequena passagem, no interior de uma das torres que dá acesso ao alto da muralha. Fomos recebidos por duas adolescentes igualmente vestidas em seda branca. Fomos encaminhados para o centro da passarela de cem metros que interligava as duas torres decoradas. Várias pessoas já se encontravam ali quando chegamos. Eram dezenas de chineses vestidos humildemente. Eram camponeses de todas as idades. Pude avistar até mesmo uma mãe com seu bebê adormecido no colo. Todos estavam apoiados nos parapeitos da muralha e, como eu, portavam lanternas. Aparentemente nós dois éramos os únicos ocidentais ali presentes. A passarela, cuja largura entre um parapeito e outro era de aproximadamente cinco metros, estava vazia. Algumas moças percorriam-na servindo os convidados com uma bebida alcoólica forte e doce que não consegui identificar, mas que sorvi com gosto. Todos pareciam muito animados. Alguns riam, outros entoavam cânticos suaves. Esperamos talvez uma meia hora antes que qualquer coisa acontecesse. Vez por outra os bambus que sustentavam as bandeiras no alto das torres soavam seu canto melancólico. Ou teria sido o vento?

De repente, o som de um forte gongo, vindo da torre vermelha, ressoa por todo o espaço. Todos silenciam. Este som é logo seguido por um outro, vindo da torre branca. Duas notas fortes e agudas são emitidas por um conjunto de flautas de bambu. Os camponeses apagam suas lanternas. Faço o mesmo. Somos absorvidos, quase que totalmente, na mais absoluta escuridão, não fosse pela tênue luz da fina lua crescente e por algumas estrelas esparsas. Pelos portais das torres, à nossa esquerda e à nossa direita, saem duas comitivas enfileiradas simetricamente. Uma espécie de bumbo, de som oco e surdo, começa a compassar a caminhada lenta e pontual de uma comitiva em direção à outra. A comitiva da torre vermelha é composta exclusivamente de homens, enquanto que a branca compõe-se de homens e mulheres. Os brancos estão trajados com túnicas de seda dessa cor que lhes vêm até os pés. Cada um porta uma lanterna vermelha, presa num fino bambu, como grandes sóis acima de suas cabeças. À frente desta comitiva branca segue o velho desenhista queimado. Ele usa uma túnica mais pesada, preenchida com borboletas e libélulas esverdeadas, ricamente tecidas. Suas mãos estão suspensas no ar e seguram um pincel preto. A luz das lanternas tinge toda a cena. Do lado oposto, vêem-se homens com túnicas semelhantes, mas vermelhas. Estes portam lanternas brancas, o que realça ainda mais o brilho de suas roupas. Quem encabeça esta comitiva é um homem com uma terrível máscara de dragão. As ventas brancas de seu focinho parecem espumar. Sua túnica vermelha exibe um dragão sinuoso tecido em tons de verde que parece arder nas chamas do brilho vermelho da seda. Suas mãos estão atadas com uma fina corda branca.

Ao bumbo são acrescentados o gongo e as flautas, num ritmo lento. As comitivas param a uns vinte metros uma da outra. De cada lado estendem-se três filas quase intermináveis de pessoas. De repente, o velho e o dragão emitem um berro distinto e todos se ajoelham e abaixam suas cabeças ao mesmo tempo. Silêncio total. O bumbo retumba. Pequenos sinos marcam seus passos. Três crianças que assistem ao espetáculo começam a chorar. Minha companheira parece enfeitiçada. Pausadamente, o velho se aproxima do dragão. Uma moça ajoelha-se entre os dois e porta uma bandeja onde se pode divisar um pote quadrangular cheio de tinta vermelha, uma rosa branca e uma espécie de punhal. O velho embebe o pincel na tinta e num gesto brusco, ressaltado pela batida forte do gongo, traça um risco vermelho de um extremo a outro no pescoço do ator que representa o dragão. O velho se afasta. O dragão se inclina lentamente para frente até que a máscara caia de sua cabeça. O ator está suado e visivelmente alterado. Seus olhos vasculham uma outra realidade. Com cuidado, o velho pega a rosa branca e deixa pingar quatro gotas de tinta em seu interior. Em seguida, quebra o galho cheio de espinhos e o estende a meio do caminho entre ele e o dragão. De pés descalços, o velho avança apenas um passo e mantém-se firme em cima do galho espinhoso. Algumas gotas de sangue começam a escorrer pelos veios das pedras que pavimentam a passarela da muralha. Ainda em forma de botão, as pétalas são colocadas na boca do dragão. Este não mastiga nem engole a rosa. O velho saca o punhal e com um único gesto rompe a corda que atava as mãos do dragão. Subitamente, os olhos do homem que representa o dragão voltam de seu alheamento e recebem todo aquele instante presente com serenidade. Abaixa a cabeça e, cerimoniosamente, entrega a máscara de dragão ao velho, que a ergue no ar. Neste momento, todas as pessoas que assistiam em silêncio, e que possivelmente já conheciam o desfecho do espetáculo, começam a clamar em direção ao velho. Gritam, choram, agitam os braços. O velho é isolado da multidão que corre afoita em sua direção por alguns homens de branco e vermelho dispostos em círculo ao seu redor. Minha companheira e eu nos mantemos à distância. Só se vê uma máscara suspensa no meio de uma barreira humana. De repente, o velho abaixa a máscara. Seus guardiões se ajoelham mantendo a formação circular. A multidão vai-se acalmando e só restam um ou dois lamentos dispersos no ar. Quando tudo parece quieto o suficiente o velho exclama algo que mobiliza quatro homens, dois de vermelho e dois de branco. Eles parecem vir em nossa direção. Pergunto à minha companheira se ela entendeu o que o velho dissera. Sem desgrudar os olhos desses quatro homens, ela diz próximo ao meu ouvido:

- Ele disse: “Tragam o escolhido!”

Mal ela termina de falar, eu sou cercado pelos quatro homens que me agarram pelos braços e pelas pernas. Antes que eu pudesse me dar conta do que estava acontecendo, lanço um último olhar para minha companheira. Ela não parece surpresa. Olha-me com olhos de quem quer dizer que não tem nada a dizer e baixa o olhar. A multidão agita-se de novo. Eu grito, debato-me no ar, mas tudo que eu faço para me desvencilhar daquilo é em vão. Sou levado até o velho. Colocam-me de pé em frente a ele e mantêm-me imobilizado pelos braços. Eu fico um pouco mais calmo. Aquilo poderia não passar de uma encenação. O velho olha bem nos meus olhos e diz num inglês carregado:

- Os guerreiros de ninguém viram que o dragão mora sozinho com você. Sua ira é grande. Seu corpo arde nas chamas que saem de sua própria boca. Ele quer engolir o fogo, mas não consegue. Ele quer sair, dominar os ares, mas sua ira é cega. Os guerreiros de ninguém vão libertá-lo pela força do fogo e dos Grandes Ventos.

Enquanto diz isto ele mantém o olhar fixo em mim, sem a menor das oscilações. Olha sem nada pedir. Está calmo. Ele conhece o meu destino dali em diante. Eu me sinto totalmente indefeso, vítima de algum grande mal-entendido gerado pelo fanatismo religioso. Sem palavras, sem forças, e quase sem fôlego também, eu olho para o velho e vejo em seus olhos que ele guarda o segredo de minha morte. Mesmo assim consigo balbuciar algumas palavras:

- O que vocês vão fazer comigo?
Ele não responde de imediato. Molha o dedo na tinta vermelha e risca meus lábios de cima a baixo. E diz:
- Os guerreiros de ninguém são guerreiros do silêncio. Mas você pode falar, se quiser...
- Peça para eles me soltarem... – eu digo, mas ao invés de me responder, meu algoz emite alguma instrução em chinês.

Meus olhos são vendados com uma fina écharpe de seda branca... Pétalas são colocadas em minha boca. Eu as cuspo. Colocam de novo e me apertam com mais força. Engulo as pétalas. Engasgo. Servem-me água. Começo a gritar de novo, mas meus gritos são incompreensíveis para todos, salvo para minha compatriota que talvez ainda assista a cena. Seguram a minha cabeça e colocam a máscara do dragão em mim, como posso perceber pelas formas. Sou carregado ao som de flautas e pratos e bumbos. As pessoas gritam. Sinto que me levam para um ambiente interior. Subimos escadas. Estamos numa das torres. Após outro lance de escadas, sinto o vento com mais força do que antes. Eu fui encaminhado para um dos pontos mais altos daquela geografia sinuosa, no terraço de uma das torres da Grande Muralha.

Ninguém fala nada. Deitam-me no chão, no que parece ser uma espécie de tatame. Aos poucos sinto o cheiro de incenso vindo de ventos à minha esquerda. Fico nesta posição não sei por quanto tempo. Se eu tento me mexer, logo algumas mãos fortes impedem meus movimentos. Fico nesta situação até que, pouco a pouco, os ruídos da multidão vão se distanciando até que reine apenas o ruído frio e persistente do vento. Meu destino final, seja ele qual for, tarda a acontecer. Um vazio negro aniquila toda a visão de meu futuro e vejo-me diante do meu nada. Quero rezar, mas não consigo. Eu nunca havia precisado de deus até então. Ali, em cima das fronteiras de um império já extinto, eu tento imaginar deus, mas neste instante nada é tão desconhecido para mim quanto deus. Eu, que nunca acreditei no que quer que fosse, que sempre tratei com escárnio a mais leve superstição, de repente vejo-me refém de um dos mais incompreensíveis e negros enredos produzidos pela mente cega de alguns místicos. Será sobre o meu corpo que aquele velho insano irá vingar seu rosto deformado pelas chamas? Muitas possibilidades sucedem-se em minha cabeça e todas elas anunciam a minha morte. Começo a tremer inteiro. Sinto cada fibra de meu corpo. Nunca eu tive uma consciência tão grande de meu próprio organismo. Nunca meu pensamento esteve tão grudado à minha carne. Meu corpo parece ter vida própria, uma vida que quer esgotar suas últimas reservas de energia no único movimento que me é permitido: o de tremer. Paro de gritar. Se eu gritar, talvez eu desperdice meus últimos sopros. Alguns herdeiros de uma das civilizações mais antigas devolveram-me para a minha condição animal.

Não possível descrever tudo o que senti e pensei durante esses momentos. Os pensamentos me devolviam para a certeza da minha carne. Minha carne buscava alguma solução impossível nos meus pensamentos. De uma hora para outra, toda a minha vida pregressa pareceu um grande absurdo que me conduzira para o maior absurdo de todos: esta situação a que ora eu me via enredado, sem possibilidade de volta. Por que eu fora o escolhido? Fora escolhido para quê? O que aquele velho vira em meus olhos que eu nunca conseguira ver?

De repente, ouço uma leve batida no gongo. Algumas mãos se atiram sobre mim e começam a tirar minhas roupas. Eu tento resistir, mas apenas grito, rendendo-me ao inevitável. Minhas pernas são dobradas e abertas, como se eu fosse preparado para um parto. Mais uma vez ouço o som do gongo. Meu corpo já não oferece nenhuma resistência. Meus intestinos apenas expulsam seus dejetos sem qualquer força de minha vontade. Com um pano úmido, limpam-me meticulosamente. Uma espécie de óleo perfumado é derramado em fio sobre todo o meu corpo. Todo este zelo será apenas o prenúncio de uma profanação hedionda do meu corpo? Começo a chorar. Subitamente, recebo um estranho toque que reverbera por todo o meu corpo. Algo como uma mecha de cabelo, ou melhor, como as cerdas de um pincel, tocaram aquela região entre os órgãos sexuais e o ânus, aquele território ignorado que alguns chamam de “terra de ninguém”. Sem pressa, o pincel percorre delicadamente cada ponto deste território vazio, para onde até então a consciência nunca tinha enviado suas sentinelas.

Nunca me senti tão vulnerável. Este ponto indiscreto do meu corpo abria sem resistência uma porta para todo o meu ser. Cada vez que o pincel completa seu movimento circular sobre este portal aberto em meu corpo, é como se meu coração fosse esmagado por mãos gélidas. Eu quero alhear-me de meu destino, mas o movimento das cerdas é tão lento, preciso e sem significado que eu não consigo ignorá-lo. Além do mais, envolto neste silêncio absoluto, sem saber quantas pessoas há ao meu redor, nada resta além dessa pequena, mas profunda intervenção no meu corpo. Eu me esqueço até dos Grandes Ventos. Pouco a pouco meu choro cedi e, entre um soluço fraco e outro, eu me vejo completamente entregue a um torpor para além do entendimento humano. Com que delicadeza insidiosa se mascara esta tortura... O tempo, enovelado nas voltas incessantes do pincel, parece perder sua consistência. Eu caio no peso desta eternidade dolorosamente repetitiva.

Horas se passam sem que o movimento sequer se altere. O mundo parou e só o pincel do velho continua a agir. De repente, eu próprio estou reduzido a este único ponto até então invisível. Eu todo sou a terra de ninguém. Todo o resto do meu corpo parece existir unicamente para que este movimento aconteça. Até minha respiração acostuma-se às voltas do pincel, e é por ele cadenciada. Só então percebo que minha mente silenciara. Não há mais dor. É a morte, talvez. Então a morte é essa coisa quieta?

Mas o silêncio dura pouco. É a vida ainda, e o que era dor transformou-se insensivelmente num prazer sem nome. O que era frio parece quente. Pressinto que a lua me observa com atenção e paciência. Minha imaginação começa a emergir do breu para onde havia sido atirada pelo medo. Eu sei exatamente onde estou. Ao meu redor, cada detalhe da natureza passa a ocupar o seu justo lugar. Nunca a muralha esteve tão presente sobre os cumes sinuosos. O pincel parece agora desenhar o mapa do universo inteiro na terra de ninguém. É como se fios vermelhos saíssem dos pontos tocados pelo pincel e fossem atados às estrelas. Eu me sinto suspenso e, mesmo entorpecido, guardo a forte sensação de habitar pela primeira vez o espaço de meu próprio corpo. Minha alma se transformou no meu corpo.

Talvez por terem percebido que eu começo a esboçar um sorriso, o pincel pára e me traga de volta para a realidade dura do chão da muralha. Eu apenas aguardo. Sem qualquer aviso, sinto uma picada úmida na mesma região. Depois outra e mais outra. Não sinto dor, nem prazer. Será o início da minha mutilação? Eu apenas gemo como se quisesse anunciar em vão que sim, eu ainda quero viver. As picadas continuam tão cirúrgicas quanto as pinceladas. Minhas pernas, até então adormecidas, começam a formigar nos braços de meus algozes. Algum tempo depois as picadas cessam. Sinto um hálito nauseabundo de uma cabeça próxima à minha. Derramam sobre a minha boca uma espécie de chá amargo. Finalmente, soltam meus braços e minhas pernas, mas eu mal posso me mexer. Devo ter ficado assim por cerca de meia hora até que um sono pesado lança seu véu sobre mim...

Quando acordei, vi que estava dentro de meu carro, nas proximidades de Huairou. Já era de manhã, mas não havia ninguém nas ruas. As picadas ainda doíam, mas eu estava vivo. O fundo da minha calça estava manchado de sangue já escurecido. Meu primeiro impulso foi o de tirar a calça e verificar o que havia sido feito em mim. Foi quando vi pela primeira vez a estranha tatuagem... No meu território sem nome, os guerreiros de ninguém haviam tatuado um pequeno dragão vermelho, cheio de arabescos. De sua boca, saía uma língua serpenteante, e na ponta da língua estava pousada uma pequena borboleta. Ambas as criaturas pareciam um mesmo e único ser.

Voltei para o hotel ainda entorpecido. No caminho, observei que a realidade parecia incrivelmente mais rica de detalhes do que jamais fora. Vomitei algumas vezes, mas não consegui aliviar uma náusea que ainda hoje me consome quando tudo parece tão completo e sem sentido.

Não consegui mais realizar minhas obrigações profissionais. Aleguei alguma desculpa e, ainda que temeroso, voltei para Mutianyu para tentar encontrar alguém que pudesse me explicar o que me havia acontecido. O velho não desenhava no galpão, e os guardiões diurnos da muralha diziam nada saber sobre os guerreiros de ninguém. Só depois eu pensei que minha bela companheira havia contribuído para o meu dúbio destino.

Quando cheguei ao Brasil, e me reencontrei com minha esposa, tentei explicar-lhe o que me sucedera. Mas ela não me compreendeu. Ela me disse que hoje em dia a extração de tatuagens deixa poucas marcas. Neste momento, eu percebi que não a conhecia.

No trabalho, todos notaram que eu estava mais silencioso e queriam saber a razão. Mas que razão eu poderia lhes dar? A experiência a que eu fora submetido acontecera fora dos domínios da razão. Aos poucos, passei a recusar todos os prazeres provisórios aos quais eu estava até então acostumado e, por fim, passei a viver cada vez mais isolado.

Deixei minha esposa e meu emprego promissor e instalei-me numa casa simples nos arredores da cidade. Os ambientes cheios de detalhes causam-me fobia, fico com os sentidos superexcitados. Agora me ocupo apenas na criação de um jardim, cujas flores vendo em troca de meu sustento. Ao fim de cada dia, eu me sento em frente a um grande espelho instalado em meu quarto e observo meu estigma.

Tenho estudado tudo o que posso sobre a cultura chinesa, mas não sei se terei tempo para descobrir, finalmente, se o que recebi dos guerreiros de ninguém foi uma benção ou uma maldição. Sei apenas que os dragões vivem pela eternidade afora, enquanto que as borboletas, uma vez libertas de seu casulo, vivem a tolice de seu destino por apenas dois dias.

Novembro de 2004


LILIANA CHORANDO - Julio Cortázar em tradução minha

Menos mal que é o Ramos e não outro médico, com ele sempre houve um pacto, eu sabia que chegado o momento ele me diria, ou pelo menos me deixaria compreender sem dizê-lo por inteiro. Isto custou ao pobre quinze anos de amizade e noites de pôquer e finais de semana no campo, o problema de sempre; mas é assim, na hora da verdade e entre homens isto vale mais que as mentiras de consultório coloridas como as pílulas ou o líquido rosa que gota a gota me entra nas veias.

Três ou quatro dias, sem que ele me diga eu sei que ele se ocupará para que não haja isso que chamam agonia, deixar morrer como um cão, para quê; posso confiar nele, as últimas pílulas serão sempre verdes ou vermelhas mas dentro haverá outra coisa, o grande sonho que desde já o agradeço ainda que Ramos fique olhando para os pés da cama, um pouco perdido porque a verdade lhe vacilou, pobre velho. Não diga nada a Liliana, por que a faremos chorar antes do necessário, não te parece? Para Alfredo sim, para Alfredo pode dizer para que vá fazendo um pouco de trabalho e se ocupe de Liliana e de mamãe. Che, e diga a enfermeira que não me tire aquele remédio, é o único que me faz esquecer o cheiro além de tua eminente farmacopéia, claro. Ah, e que me tragam um café quando eu pedir, esta clínica leva coisas tão a sério.

É certo que escrever me acalma um tempão, talvez seja por isso que tem tanta correspondência de condenados à morte, vai saber. Inclusive me diverte imaginar por escrito coisas que só foram pensadas nessas que se atolam na garganta, sem falar das lágrimas; vejo-me nas palavras como se fosse outro, posso pensar qualquer coisa desde que em seguida a escreva, deformação profissional ou algo que se empenhe em abrandar as meninges. Somente me interrompo quando chega Liliana, com os demais sou menos amável, como não querem que eu fale muito eu deixo para eles contarem se faz frio ou se Nixon vai vencer McGovern, com o lápis na mão os deixo falar e até Alfredo se dá conta e me diz para continuar, agir como se ele não estivesse, pegar o diário e ficar quieto um tempo. Mas minha mulher não merece isso, ela eu escuto, para ela sorrio, e me dói menos, aceito-lhe esse beijo um pouquinho úmido que volta uma vez ou outra ainda que a cada dia eu me canse mais que se aproximem de mim e devo lastimar-lhe a boca, pobre querida. Há que dizer que a coragem de Liliana é meu melhor consolo, ver-me já morto em seus olhos me tiraria o resto da força com a qual posso falar e devolver algum de seus beijos, com a qual sigo escrevendo apenas se ela já foi e apesar da rotina das injeções e das palavras simpáticas. Nada se atreve a meter-se com meu caderno, sei que posso guardá-lo debaixo da almofada, ou na mesa à noite, é o meu capricho, tenho que deixá-lo já que o doutor Ramos, claro que tenho que deixar, assim se distraí.

Ou será segunda ou terça, e o lugarzinho entre de quarta ou quinta. Em pleno verão a Chararita estará um forno e os rapazes vão passar mal, vejo Pincho com essas calças cruzadas e com as ombreiras que tanto divertem o Acosta, que por sua vez terá que vestir terno ainda que lhe custe e o rei do campo pondo-se gravata e paletó para acompanhar-me, isso será grande. E Fernandito, o trio completo, e também Ramos, claro, até o final, e Alfredo levando pelo braço Liliana e mamãe, chorando com elas. E será mesmo, sei como me amam, como lhes vou faltar; não irão como fomos ao enterro do gordo Tresa, a obrigação partidária e algumas férias compartilhadas, cumprir rápido com a família e mudar-se de volta para a vida e o esquecimento. Claro que terão uma fome bárbara, sobretudo o Acosta, que para guloso não lhe falta nada; ainda que lhe doa e maldigam o absurdo de morrer-se jovem e em plena carreira há a reação que todos conhecemos, o gosto de voltar a entrar no metrô ou no carro, de tomar uma ducha e comer com fome e vergonha ao mesmo tempo, como negar a fome que segue pelas noites, o cheiro das flores do velório e os intermináveis cigarros e passeios pela vereda, uma espécie de desquite que sempre se sente nesses momentos e que nunca me neguei porque teria sido hipócrita. Gosto de pensar que Fernandito, o Pincho e Acosta vão juntos a um bar, é seguro que irão juntos porque também o fizemos quando o gordo Tresa, os amigos têm que seguir um tempo, beber um litro de vinho e acabar com umas besteiras; caralho, é como se eu os estivesse vendo, Fernandito será o primeiro a fazer uma piada e tragar um peixe com meio filé, arrependido porém tarde demais, e Acosta o olhará de relance, mas o Pincho já terá soltado o riso, é uma coisa que não sabe agüentar, e então Acosta que é um cordeiro de deus se dirá que não tem porque se passar por um exemplo diante dos rapazes e se rirá também antes de prender um cigarro. E falarão muito de mim, cada um se lembrará de tantas coisas, a vida que nos foi juntando os quatro apesar de sempre cheia de buracos, de momentos que não compartilhamos e que assomaram na memória de Acosta ou do Pincho, tantos anos e broncas e amurros pesados. Custará a eles se separarem depois do almoço porque é nesse momento que o outro voltará, é hora de ir para suas casas, o último, definitivo enterro. Para Alfredo será distinto e não porque não seja duro, ao contrário, porém Alfredo vai se ocupar de Liliana e de mamãe e isto nem Acosta nem os demais podem fazê-lo, a vida vai criando contatos especiais entre os amigos, todos tem vindo sempre em casa mas Alfredo é outra coisa, essa cercania que sempre me fez bem, seu prazer de ficar conversando com mamãe sobre plantas e remédios, seu gosto de levar o Pocho ao zoológico ou ao circo, o solteirão disponível, pacote de masitas e sete e meio quando mamãe não estava bem, sua confiança tímida e clara com Liliana, o amigo dos amigos que agora terá que passar por esses dois dias engolindo as lágrimas, no melhor caso levando Pocho para seu quintal e voltando em seguida para estar com mamãe e Liliana até o último. Ao fim e ao cabo ele vai tocar, ser o homem da casa e agüentar todas as complicações começando pela funerária, isto tinha que passar justo quando o velho anda pelo México ou Panamá, vai saber se chega a tempo para agüentar o sol das onze na Chacarita, pobre velho, de maneira que será Alfredo quem levará Liliana porque não creio que a deixem ir com mãe, a Liliana do braço, sentindo-a tremer contra seu próprio tremor, murmurando tudo que murmurei para a mulher do gordo, a inútil necessária retórica que não é consolo nem mentira nem sequer frases coerentes, um simples estar aí, que é tanto.

Também para eles o pior será a volta, antes há a cerimônia e as flores, há todavia o contato com esta coisa inconcebível cheia de alças e dourados, da frente alta à cava, a operação limpidamente executada pelos do ofício, porém depois é o carro de volta e sobretudo a casa, voltar a entrar em casa sabendo que o dia vai estancar-se sem telefone nem clínica, sem a voz de Ramos alargando a esperança para Liliana, Alfredo fará café e dirá que o Pocho está feliz no quintal, que ele gosta dos filhotes e joga com os peõezinhos, terá que ocupar-se de mamãe e de Liliana porém Alfredo conhece cada rincão da casa e é seguro que ficará velando no sofá de meu escritório, ali mesmo onde uma vez estendemos Fernandito, vítima de um pôquer no qual não tirou nenhuma carta, sem falar dos cinco conhaques compensatórios. Faz tantas semanas que Liliana dorme só que talvez o cansaço possa mais que ela, Alfredo não se esquecerá de dar sedativos a Liliana e a mamãe, estará a tia Zulema repartindo os lençóis, Liliana se deixará ir pouco a pouco ao sonho nesse silêncio da casa que o Alfredo terá fechado conscientemente antes de ir atirar-se no sofá e prender outro dos cigarros pois não se atreve a fumar diante de mamãe pela fumaça que a faz tossir.

Enfim, há isso de bom, Liliana e mamãe não estarão tão sós ou estarão nessa solidão entretanto pior que a parentela orelhuda invadindo a casa; falará tia Zulema que sempre viveu no piso de cima, e Alfredo que também tem estado entre nós como se não estivesse, o amigo com chave própria; nas primeiras horas talvez não será menos duro sentir irrevogavelmente a ausência que suportar um tropel de abraços e de grinaldas verbais, Alfredo se ocupará de pôr distâncias, Ramos virá um tempo para ver mamãe e Liliana, as ajudará a dormir e deixará pílulas para tia Zuleima. Em algum momento será o silêncio da casa às escuras, apenas o relógio da igreja e a buzina distante porque o bairro é tranqüilo. É bom pensar que será assim, que abandonando-se pouco a pouco a um torpor sem imagens, Liliana vai estirar-se com seus lentos gestos de gata, uma mão perdida na almofada cheia de lágrimas e água de colônia, a outra junto à boca em uma recorrência pueril antes do sonho. Imaginá-la assim faz tanto bem, Liliana dormindo, Liliana no fim do túnel negro, sentido confusamente que hoje está cessando para voltar depois, que essa luz não será a mesma que golpeava em pleno peito, enquanto a tia Zulema abria o guarda-roupa de onde saía o negro em forma de roupa e de dobras mesclando-se sobre a cama como um rabo de pranto, um último, inútil protesto contra o que ainda teria que vir. Agora a luz da janela chegaria antes de nada, antes que as lembranças soltas no sonho e que só confusamente se abririam até a última masmorra. Sozinha, sabendo-se realmente sozinha nesta cama e neste cômodo, neste dia que começava em outra direção, Liliana poderia chorar abraçada à almofada sem que viessem acalmá-la deixando-a gotejar o pranto até o final, e só muito depois, com um semisonho de engano retendo-a no útero dos lençóis, o buraco do dia começaria a encher-se de café, de cortinas corridas, da tia Zulema, da voz do Pocho telefonando do quintal sobre os girassóis e os cavalos, um bagre pescado depois de rude luta, um espinho na mão mas não era grave, lhe haviam posto o remédio de don Contreras que era o melhor para essas coisas. Já Alfredo esperando na sala com o diário na mão dizendo-se que mamãe havia dormido bem e que Ramos viria à doze, propondo-lhe de ir à tarde ver o Pocho, com esse sol valia a pena correr até o jardim e numa dessas podiam até levar mamãe, faria-lhe bem o ar do campo, o melhor seria passar o final de semana no jardim, e por que não todos, com o Pocho que estaria tão contente tendo-os ali. Aceitar ou não dava na mesma, todos sabiam e esperavam as respostas que as coisas e o passo da manhã iam dando, entrar passivamente num almoço ou em um comentário sobre as verduras, pedir mais café e contestar o telefone que em algum momento tiveram que conectar, o telegrama do sogro no estrangeiro, um choque estrepitoso na esquina, gritos e apitos, a cidade aí fora, às duas e meia ir com mamãe e Alfredo ao quintal porque numa dessas um espinho na mão, nunca se sabe com os meninos, Alfredo tranqüilizando-as no volante, don Contreras era mais seguro que um médico para essas coisas, as ruas de Ramos Mejía e o sol como uma chapa fervendo até o refúgio nos grandes cômodos e corredores, o mate das cinco e o Pocho com seu bagre que começa a cheirar porém tão lindo, tão grande, que pelejou tirar-lhe do arroio, mamãe, quase me corta a cabeça, te juro, verá que dentes. Como estar folheando um álbum ou vendo um filme, as imagens e as palavras umas atrás das outras remexendo o vazio, agora verá que é o assado de tira de Carmem, senhora, levezinho e tão saboroso, uma salada de lentilhas e pronto, não falta mais nada, com o calor mais vale comer pouco, trarei o inseticida porque é a hora dos mosquitos. E Alfredo aí calado mas o Pocho, sua mão palmeando o Pocho, os vejo a sós o campeão de pesca, amanhã vamos juntos e numa dessas quem te disse, me contaram de um camponês que pescou um de dois quilos. Aqui embaixo o ar está bem, mamãe pode dormir um pouco no sofá se quiser, don Contreras tinha razão, e já não tem nada na mão, mostra-nos como sabe montar no filhote, olhará mamãe, olha-me quando galopo, por que não vem conosco pescar amanhã, eu te ensino, vai ver, um sol vermelho e os bagrezinhos, a correria entre o Pocho e o menino de don Contreras, o puchero ao meio-dia, e mamãe ajudando de qualquer jeito a pelar os frangos, aconselhando sobre a filha de Carmem que estava com essa tosse rebelde, a siesta nos cômodos desnudos que cheiravam verão, a obscuridade contra as persianas um pouco ásperas, o entardecer debaixo do guarda-sol e a bomba contra os mosquitos, a cercania nunca manifesta de Alfredo, essa maneira de estar aí e ocupar-se de Pocho, de que em tudo fora cômodo, até o silêncio que sua voz rompia sempre a tempo, sua mão oferecendo um jarro de refresco, um pãozinho, ligando o rádio para escutar o noticiário, as plantações e Nixon, era previsível, que país. O fim de semana e na mão de Pocho apenas uma marca de espinha, voltaram a Buenos Aires numa segunda muito temperada para evitar o calor, Alfredo os deixou na casa para ir receber o sogro, Ramos também estava em Ezeiza e Fernandito, que ajudou nessas horas do encontro porque era bom que tivesse outros amigos na casa, Acosta à nove com sua filha que podia jogar com o Pocho no andar da tia Zulema, tudo se ia dando mas amortigado, voltar atrás mas de outra maneira, com Liliana obrigando-se a pensar nos velhos mais que nela, controlando-se, e Alfredo entre eles com Acosta e Fernandito desviando os tiros diretos, cruzando-se para ajudar Liliana, para convencer ao velho de que descansasse depois de tamanha viagem, indo-se de um a um até que somente Alfredo e a tia Zulema, a casa calada, Liliana aceitando uma pílula, deixando-se ir à cama sem haver aflorado uma só vez, dormindo quase de golpe como depois de algo cumprido até o fim. Pela manhã eram as correrias de Pocho na sala, arrastar as sandálias do velho, a primeira chamada telefônica, quase sempre Clotilde ou Ramos, mamãe queixando-se do calor ou da umidade, falando do almoço com a tia Zulema, às seis Alfredo, às vezes Pincho com sua irmã ou Acosta para que o Pocho jogue com sua filha, os colegas do laboratório que reclamavam a Liliana, tinha que voltar a trabalhar e não ficar encerrada na casa, que o fizesse por eles, estavam com falta de químicos e Liliana era necessária, que viesse ao meio-dia em todo caso até que se sentisse com mais ânimo; Alfredo a levou pela primeira vez, Liliana não tinha vontade de dirigir, depois não quis ser incômoda e sacou o carro, às vezes saía com o Pocho à tarde, o levava ao zoológico ou ao cinema, no laboratório lhe agradeciam que lhes tivesse dado uma mão nas novas vacinas, um surto epidêmico no litoral, ficar até tarde trabalhando, tomando gosto, uma correria em equipe contra o relógio, vinte caixonas de ampolas para Rosário, conseguimos, tarefa, o Pocho no colégio e Alfredo protestando, ensinam a aritmética de outra maneira a esses meninos, me faz cada pergunta que me deixa tenso, e os velhos com o dominó, nos nossos tempos era diferentes, Alfredo, nos ensinavam caligrafia e olhe a letra que tem esse menino, aonde vamos parar. A recompensa silenciosa de olhar para Liliana perdida em um sofá, uma simples olhada por cima do diário e vê-la sorrir, cúmplice sem palavras, dando a razão aos velhos, sorrindo desde as orelhas. Mas pela primeira vez um sorriso de verdade, desde dentro como quando foram ao circo com o Pocho que havia melhorado no colégio e o levaram para tomar sorvete, para passear pelo porto. Começavam os grandes frios, Alfredo ia com menos freqüência à casa porque havia problemas sindicais e tinha que viajar às províncias, às vezes vinha Acosta com sua filha e aos domingos o Pincho ou Fernandito, já não importava, todo mundo tinha tanto a fazer e os dias eram curtos, Liliana voltava tarde do laboratório e dava uma mão ao Poncho perdido entre os decimais e a bacia do Amazonas, ao final e sempre Alfredo, as regalias para os velhos, essa tranqüilidade nunca dita de sentar-se com ele perto do fogo já tarde e falar em voz baixa dos problemas do país, da saúde de mamãe, a mão de Alfredo apoiando-se no braço de Liliana, te cansas demasiado, não está com a cara boa, o sorriso agradecido negando, um dia iremos ao jardim, este frio não pode durar toda a vida, nada podia durar toda a vida ainda que Liliana lentamente retirasse o braço e buscasse os cigarros na mesinha, as palavras quase sem sentido, os olhos encontrando-se de outra maneira até que de novo a mão escorregando pelo braço, as cabeças juntando-se e o largo silêncio, o beijo na testa.

Não havia nada a dizer, havia ocorrido assim e não havia nada a dizer. Inclinando-se para lhe acender o cigarro que lhe tremia entre os dedos, simplesmente esperando sem falar, acaso sabendo que não haveria palavras, que Liliana faria um esforço para tragar o fumo e o deixaria sair com um queixar, que começaria a chorar afogadamente, desde outro tempo, sem separar a cara da cara de Alfredo, sem negar-se e chorando calada, agora somente para ele, desde tudo o outro que lhe compreenderia. Inútil murmurar coisas tão sabidas, Liliana chorando era o término, o limite de onde ia começar uma outra maneira de viver. Se acalmá-la, se devolvê-la à tranqüilidade fosse tão simples como escrevê-lo com as palavras alinhando-se num caderno como segundos congelados, pequenos caroços do tempo para ajudar o passo interminável da tarde, se somente fosse isso mas a noite chega e também Ramos, incrivelmente a cara de Ramos observando os exames recém terminados, buscando-me o pulso, de uma hora para outra, incapaz de dissimular, arrancando-me os lençóis para olhar-me desnudo, apalpando-me o lado, com uma ordem incompreensível à enfermeira, um lento, incrédulo reconhecimento que assisto atento, quase divertido, sabendo que não pode ser, que Ramos se equivoca e que não é verdade, que só é verdade o outro, o prazo que não me havia ocultado, e irritação de Ramos, sua maneira de apalpar-me como se não pudesse admiti-lo, sua absurda esperança, isto não me fará crer nada, velho, e eu forçando-me a reconhecer que o melhor é assim, que numa dessas vai saber, olhando para Ramos que se endireita e volta a rir e solta ordens com uma voz que nunca lhe havia ouvido nesta penumbra e nesta masmorra, tendo que convencer-me pouco a pouco de que sim, de que então vou ter que pedi-lo, apenas se for até a enfermeira vou ter que pedir-lhe que espere um pouco, que espere pelo menos que seja de dia antes de dizer a Liliana, antes de arrancá-la deste sonho no qual pela primeira vez não está mais só, nesses braços que a apertam enquanto dorme.

Tradução: Alexandre Rabelo

quinta-feira, 26 de julho de 2007

CAIO CAI-SE

A queda de Ícaro - Henri Matisse -1943

O desespero não é o desespero. É a oportunidade do amor, do gesto novo.

Caio caiu. Quando viu os truques que moviam suas ilusões, já era tarde demais. Tarde demais para recuperar o passado. Um a um os truques que lhe davam prazer envelheceram, envileceram, perderam a cor. O brilho da beleza se escondeu em outro lugar, numa espécie de reservatório particular, a fonte da imaginação. O brilho da beleza revelou-se no pulso sem controle, na entrega impensada do simples corpo. O brilho da beleza também incendiou os vícios, tornando-os uma face ofuscante de deus. A carne, enfim, tornada revelação. O coração como mestre, o amor como guia, a alma como resultado. Mas isto foi depois da queda.

Enquanto caía, Caio emplumou-se orgulhoso de medo, respiração de ninguém, de coitado. Parou no ar e ninguém o acolheu. Suspirou alto para crer vantagens de si perante os outros. Quase desaprendeu de sorrir. Ocupou-se em construir a máscara perfeita para o que julgava ser sua dor. Tornou-se mais carinhoso do que de costume, rendendo-se a melancólicas saudades, espremendo as lembranças felizes, parando o olhar numa beleza incerta, esvanecente. Segurou o queixo numa queixa firme e assim ficou até o fundo da preguiça quando, enfim, no ato impensado de pensar, acreditou no óbvio das coisas, no silêncio puro do agora. Soube perdoar, soube aceitar-se, soube ver o peso do mundo nos objetos ao redor, caindo sólidos sobre suas ilusões, sobre sua ordem invertida. Passou a correr no sentido do tempo, conforme o desejo e a angústia, a fome e a sede, a preguiça e o sono, o sonho e a revelação de milênios ancorados na noite trevosa.

Mas tinha coisas a fazer. Enquanto caía, lembrava-se com pavor de obrigações, compromissos, dívidas que lhe sugavam do excesso de suas fantasias. E enquanto obrigava-se a viver, tal como o mais genérico dos homens, a vida o convencia de mansinho, sem maiores choques, noutro lugar, longe do emaranhado dos fatos, perto do sonho da verdade. Para seguir o seu sonho, Caio passou a obedecer a todos, treinou a humildade, seguiu os conselhos, praticou o silêncio. Estudou o que não podia, trabalhou o que não queria, comeu o pão que o diabo – mais preocupado com catástrofes maiores - esqueceu de amassar. Treinou sua rebeldia destilando-a suavemente pelos cantos, como um gato que passa. Seguia com seu olhar de horizonte de pedra, que só quebrava ao menor olhar curioso de alguém. Então sorria o mistério, cada vez mais discretamente, sem o desperdício da juventude.

Desse jeito conservava-se criança, brincando de errar, casando gestos, sem autoridade, vagando pelas ruas, pelos quartos, passeando pelo tempo, sem hora nem dever nem compromisso a não ser consumir-se no instante de cada coisa, abstrato, distanciado dos assuntos humanos, envelhecendo sem saber até ser tarde demais para sofrer com isto – ou cedo demais para chegar ao desespero final da morte de toda consciência, a queda final.

Caio caiu quando imaginou que o desespero fosse algo que ele não desejava imaginar. O que desejava então? Uma pergunta sincera, enfim. Ohou para o seu corpo após a queda e, parado na oportunidade do desejo, se levantou e, pelo gesto, atirou-se no abismo do amor.