O Ditador Honesto é o
quarto livro de Matheus Peleteiro, autor jovem, prolífico, cheio de gás,
apaixonado. Acabou de ser lançado com sucesso na Bienal de São Paulo e na
Livraria Cultura, em Salvador e nos mostra a imagem de um ditador honesto, um
advogado que pensa ter a solução para todo o Brasil, cheio de carisma, entusiasmo,
ingenuidade e bons ideais, e inteligência para agregar em sua figura todas as pautas
mais importantes das minorias e da maioria pobre, sendo exaltado tanto pela
esquerda dividida e arrasada, quanto por uma direita que se entrega ao
movimento de crescimento econômico que suas novas leis de impostos trazem a
todo Brasil, tornando seu líder, Gutenberg Faria, um ícone e mártir
internacional.
Quem
nos conta sua trajetória é um homem muito simples que sempre havia sido seu
secretário, desde os tempos das firmas de advocacia. Este narrador apenas
recebe as tarefas de seus superiores, intercede em poucos casos e, anos depois
dos fatos, num futuro quem sabe ainda mais sombrio, nos conta sua história de encanto
pelo chefe e líder da nação. Gutenberg é extremamente sedutor, tem lábia e fé
no resgate dos ideais de justiça dos grandes democratas românticos, vindos de
família pobre. Não deixa de ser uma figura egoísta em sua paixão cega, mas sua
ambição não parece tamanha como veremos.
Ele
não tem a força totalitária de um Grande
Inquisidor, personagem célebre do último romance de Dostoievski, que
aprisiona Cristo por julgar que este não poderá oferecer liberdade, igualdade e
fraternidade senão para uma pequena minoria de alguns milhares. Estabelece a
dialética do pão e da pedra. O grande inquisidor nos diz: se eles do povo se
organizarem por si mesmos, nas mãos deles o pão do trabalho se transformará em
pedra de guerra, enquanto que, organizados por nossa hierarquia, e por nossas
mãos, dos totalitários, as pedras se transformarão em pão em nome de seus
valores humanitários, pois o ser humano só é capaz de ser regido pela
autoridade, pelo mistério e pelo milagre. Já o Ditador Honesto, que dá nome ao
romance de Peleteiro, precisa mistificar a si mesmo, tanto como Cristo quanto
como Inquisidor. A população brasileira não dá conta do milagre quando Gutenberg
ascende ao poder e faz todas as conquistas impossíveis.
Ele é mais um anti-herói
trágico como o Gatsby de Fitzgerald e, como neste clássico americano sobre o
poder, é narrado por seu amigo e admirador que o vê como o próprio mistério. O
jovem nos narra uma trajetória política e familiar angustiada, de um líder tentando
entender seu próprio limite e que, após todas as conquistas, perde a sede de
mudança, chegando a desistir de uma reeleição. Nobre. Entretanto, o que nos
interessa em sua ascensão ao poder é o modo como o idealismo que chega ao poder
sutilmente coopera ou não com a corrupção.
A
história se passa num futuro próximo, não há alusões a inovações tecnológicas,
não há discussão com políticos administradores ou cabeças importantes do
mercado financeiro de capital mundial. O livro é focado no Brasil em tom de
fábula. Vemos quase que um rei das antigas, criando leis e revisando impostos,
como se isto só fosse possível num governo centralizado e forte como a
monarquia. Sua trajetória é a do diabo vaidoso e compassivo aos homens, como o
Dr. Fausto de Thomas Mann. Numa eleição milagrosa, cresce nas redes sociais e
num partido novo, fantasma como todos os outros. Ganha base parlamentar
suficiente para não ser incomodado por nenhum grupo radical. Nesta fábula, o
foco está em chamar a responsabilidade para o leitor-eleitor, ao invés de
apenas culpar os políticos e focar em suas artimanhas corruptas. A pergunta é
para nós: o quanto conseguiríamos suportar um sistema de igualdade e livre
circulação?
Matheus
Peleteiro tem aprendido com fabulistas modernos como Saramago, Camus e Hilda,
de leve. Os três trazem como foco a ambiguidade do homem em situação de poder, os
três trazem a sombra do mais humilde e do mais poderoso como lição. Ao redor do
ditador honesto é revelado um teatro de máscaras, como nos descreve Artaud em
seu texto O teatro e a peste, o qual
se casa com a narrativa fantástica La
peste, de Camus, onde uma sociedade acometida pela corrupção e doença,
deixa cair suas máscaras, e como membros de cada instituição importante que
rege a sociedade acaba invertendo seus valores para sobreviver à urgência do
caos.
Gutenberg
poderia ser definido como um ufanista egoísta, segundo o próprio Matheus, e quer
mudar a própria realidade. Neste sentido, a crítica caberia a muitos de nossos
atuais governantes, não só a um ou outro. Este livro iguala todos os rivais. Não
se resume a uma intriga policial de nível governamental como no romance Agosto, de Rubem Fonseca, mas numa
metáfora fabulesca da relação deste líder com seus assessores idealistas
imediatos e a população civil brasileira.
É um
acerto de contas para nossas consciências, vindo de um jovem escritor e
pesquisador das leis, egresso de uma faculdade de Direito, como grandes nomes
do nosso romantismo literário mais rebelde, um Álvares de Azevedo, um Castro
Alves, um Gonçalves Dias, e até um Fagundes Varella. No mundo de hoje, temos
que ter mais armas contra o cinismo, as quais Peleteiro não deixa de buscar num
Bukowski, sempre que necessário. Fico feliz que um rapaz tão jovem tenha
dedicado a escritura do seu quarto livro a trazer a questão mais urgente do
nosso país com ironia tão fina, tentativa só alcançada com o mesmo porte por Ricardo
Lísias, no livro sobre Eduardo Cunha.
Li O Ditador Honesto em apenas dois dias, embora
nos traga tantas questões. Tem a urgência dos nossos tempos, e imagino que
conquistará muitos leitores interessados em reconhecer as próprias ambiguidades
neste momento tão sombrio para política brasileira. Este livro se coloca na
mistura entre um romance histórico e uma ficção distópica, assumindo o extremo
da fábula de um passado que já nos condena a um futuro cada vez mais fechado.
Quem substituirá nosso ditador honesto?, nos resume.
Este
potente neófito das letras de Salvador, Matheus Peleteiro, joga a resposta para
todos nós, trabalhadores de um país ainda amador. E salve Jorge Amado, seu
conterrâneo mais célebre, que sempre foi direto em suas críticas políticas, com
a verdadeira vocação satirizante de um brasileiro terno e sábio que conhece sua
gente.
Alexandre Rabelo é
autor dos romances Nicotina Zero, Hoo
Editora, 2015, Itinerários para o fim do
mundo, Editora Patuá, 2018, e tem sua base em São Paulo.