quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Desejo e Ilusão


" 'Assim como o fogo é envolvido pela fumaça, um espelho pela poeira, e o feto no ventre materno pelos tegumentos que rodeiam o embrião, assim também a compreensão é envolvida pelo desejo. A inteligência superior (jñana) do homem - que intrinsicamente é dotado de perfeito discernimento (jñanin) - está cercada por este eterno inimigo, o desejo, que assume todas as formas possíveis e que é um fogo insaciável. As forças sensoriais (indriya), a mente (manas) e a faculdade de compreensão intuitiva (buddhi), são todas consideradas sua morada. Por meio delas o desejo atordoa e confunde o Possuidor do corpo, velando sua compreensão superior. Portanto, começa por sujeitar os órgãos dos sentidos e mata este maligno, o destruidor da sabedoria (jñana) e da realização (vijñana). As forças sensoriais são superiores [ao corpo físico]; a mente é superior aos sentidos; a compreensão intuitiva, por sua vez, é superior à mente; e, superior à compreensão intuitiva, aquieta firmemente o eu por meio do Eu [sa: o Possuidor do corpo, o Eu], e mata o inimigo que tem a forma do desejo [ou que assume qualquer forma que lhe agrade] e que é difícil vencer.'

'Ao contemplarmos os objetos dos sentidos interiormente, visualizando-os e ponderando-os, criamos apego a eles; do apego nasce o desejo; do desejo surgem a cólera e as paixões violentas; da paixão violenta, o atordoamento e a confusão; do atordoamento, a perda da memória e do autodomínio consciente; desta perturbação, ou ruína do auto-controle, advém o desaparecimento da compreensão intuitiva; e da ruína da compreensão intuitiva vem a ruína do próprio homem.'

A técnica de desapego ensinada pelo Bem-aventurado Krishna na Gita é um espécie de 'caminho do meio'. Por um lado o devoto deve evitar o extremo de se apegar à esfera da ação e a seus frutos (a busca egoísta de propósitos pessoais, com avidez de aquisição e posse), e pelo outro, deve-se evitar cair, com o mesmo cuidado, no extremo da vazia abstinência de toda espécie de ação. O primeiro erro é aquele proveniente do comportamento normal do ingênuo ser mundano, propenso à atividade e ansioso pelos resultados. Isto leva apenas a uma continuação do inferno da roda dos renascimentos: nossa costumeira e inútil participação no sofrimento inevitável que acompanha o fato de sermos um ego. Enquanto o erro oposto é o da abstenção neurótica; o erro dos ascetas absolutos - como os monges jainas e ajivika - que se entregam à vã esperança de que é possível livrar-se dos influxos cármicos simplesmente através da mortificação da carne, fazendo cessar todos os processos mentais e emocionais e matando de fome ao corpo. Contra essas coisas, a Bhagavad Gita apresenta uma concepção mais moderna, mais psicológica e espiritual: Age! porque, na verdade, agirás não importa o que faças, mas consegue desapegar-te dos frutos! Dissolve assim o amor-próprio de teu ego e com isto descobrirás o Eu! O Eu não se preocupa nem com a individualidade interior (jiva, purusa) nem com o mundo exterior (a-jiva, prakrti)."
Filosofias da Índia - Heinrich Zimmer

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

carta a jovens rebeldes

David e Golias - Caravaggio


Tenho conversado cada vez mais com jovens rebeldes, dos mais diversos tipos de inadequação. Quanto mais conheço suas necessidades, mais percebo que o que desejam é um ouvido paciente para exercitarem o galope selvagem de suas contradições, sem censura. Por outro lado, procuram corpos como se estes fossem apenas ouvidos.
Todos assumem ser a arte o interesse mais verdadeiro. E todos têm medo e buscam em minhas palavras, na boca que as emite, uma razão corajosa e louca para realizarem seus sonhos inconfessáveis de expressão, prazer, poder, paz. Sabem-me como alguém que lhes incentivará o desvario calculado, com o benefício da dúvida, da ambigüidade, do mistério, magia, todas as palavras grandes que os homens se inventam para se cercar de importâncias. Comigo querem falar sobre o amor, começo e meio e fim. Querem falar sobre loucura, responsabilidade, impulso, sexo, pessoas, bichos, poesia, tempestade, festas, filmes, dramas, mantras. Sobre terra, céu e mar. Revelam-se como eu, tímidos, inseguros, covardes, melancólicos, tristes, sombrios. Uns desdenham a palavra deus, outros a palavra amor. Armam-se de palavras para alcançar algum gozo, preenchido de idealidades outras, sonhos de carne inconfessáveis, nos mais diversos estilos musicais.
Pensei em escrever uma carta a todos estes jovens rebeldes, com a intenção de expressar possíveis relações sobre assuntos que vejo serem mais repetidamente evocados. Também falo com a intuição de que lhes fará algum bem sentir que suas questões mais presentes são reais para uma coletividade maior, embora eu me dirija a uns tantos rebeldes em específico, mas sem ferir suas individualidades, e sim tentando desvendar o que possa ser superior à nossa solidão, dita existencial.
Reparo que quanto mais tomamos parte em experiências extremas, segundo nossos próprios critérios, mais dizemos, sentidamente, a palavra solidão. Pois conhecer abismos nos individualiza. E sigo dizendo que é uma questão de tempo, paciência, delicadeza, segurando nos dentes as rédeas dos próprios impulsos, sabendo que todos queremos convencer ou confundir nossos pares, cheios demais de desejo para já trabalharmos na disciplina consciente do equilíbrio justo entre dor e prazer. Todos queremos confessar algum grande crime de amor, para nos sentirmos superiores a nossas próprias palavras.
Os mais ousados expressam-se através das artes. Plásticas, literárias, teatrais, cinematográficas, musicais. Primitivas e ancestrais, futuristas e cósmicas. Arrogam-se de conhecer a realidade dura da pedra, do dinheiro, do poder e do interesse. Afirmam sentimentos fugazes em nome das últimas verdades de que se armaram, em sua leitura convulsiva do mundo. Eu sigo dizendo: a arte mais básica é a da respiração, mas, sendo jovens, conscientizamo-nos disto apenas durante um beijo.
No fundo, o que eu poderia dizer de verdadeiro, com valor de lei, de acordo com minhas reais atitudes? Este parece ser nosso problema mais crucial ainda. A medida entre palavras e atos. Ora sou incerteza, ora homem, ora coisa. Não quero dizer que o consolo da razão garante a felicidade, mas saber escolher é sobreviver melhor.
E há que se ouvir os sonhos, onde estão as conexões mais antigas, mais próximas de nosso ser primordial, as conexões mais comuns, mesmo as que um sonho faz crer que sejam inéditas. Há que se navegar pelos sonhos, no medo, na idéia de que há luz e escuridão. Mas, acautelem-se na hora de brincar com fogo! Quem brinca com fogo realmente faz xixi na cama. E já acorda com medo, um pouco mais queimado, com a pele mais insensível e a vista mais ofuscada. O fogo é para ser reverenciado, mas não como um ídolo, e sim como o emblema mesmo do mistério superior à vida de um homem, este ser nascido no tempo. Cada elemento simples e eterno deve emanar constantemente seu poder sobre a fraqueza e força de um homem.
Devemos nos entregar ao simples jogo de crer que há um mistério para fora de nós mesmos, deve haver um mistério maior que este que enxergamos em outro homem ou mulher. Deve haver algo além das palavras amor e deus, um outro sopro sutil indefinido e quase inaudível. Senão, a matéria e suas leis, sempre tediosamente arbitrárias, mortais...
A revolta é a atitude de imaginar uma realidade superior à nossa, pela leitura intencional dos sinais que nossa realidade mais concreta parece apresentar. Pois se toda crença é vã, que possamos estar ao menos conscientes de que construímos nossas vidas como uma ficção, uma história para se contar, e ainda assim que possamos dar cada vez mais crédito a nós mesmos. Devemos ser honestos e assumir quem são os homens de quem roubamos nossos argumentos. Se não dermos forma à revolta, ela nos mata.
Meu partido é a capacidade de criar histórias, ficções, fantasias onde o cotidiano se revele sobrenatural, convidando-nos a mergulhar até o fundo da ilusão para perceber seu caráter de máscara, simulacro, pele morta. A magia dos fogos universais não pode ocultar senão um silêncio, que é de cada um e de todos. Para estarmos atentos a nossas relações com o mundo, para aventurarmo-nos com certa segurança, é preciso termos como porto este silêncio incognoscível, esta curiosidade franca e latente.
Toda história, em nossas vidas ou fora delas, sempre retorna ao silêncio que a originou. Não há verdade mais eterna que o silêncio. Há apenas testemunhos aos quais podemos nos agarrar com a justificativa da fé, sejam esses testemunhos obras de pastores ou poetas, criadores de sons e imagens, cientistas ou feiticeiros.
Se nossa revolta nos impele às vezes a desdizer os mestres antigos, sejam estes professores, amantes, poetas ou estrelas, sejam velhos amigos solitários, por que então gastamos nosso tempo e palavras em desdizê-los? Por que não dizemos, enfim, apenas o que desejamos? Eu sei... Porque não há nome que nos emule... Ainda queremos viver de segredos, mesmo quando sabemos ser mais saudável e divertido expor com coragem nossas contradições. Eu sei, temos de nos mostrar como soldados, fortes, preparados, inocentes da própria hipocrisia.
O fato é que estamos sempre fazendo jogo duplo, triplo, quádruplo, como acrobacia que nos permitisse atender a nós mesmos, de um lado, e aos nossos desejos, tão estranhos a nós mesmos. Somos livres, mas queremos possuir a liberdade do outro, se possível. Seria melhor assumirmo-nos frágeis, selvagens, flexíveis, úmidos. Melhor seria respirar e rir. Melhor seria criar ou calar.
Já no fim desta carta, tendo dado forma ao que a observação mostrou ser o mais urgente, sinto alguma rebeldia se lançar estômago acima, tentando caluniar inutilmente o que acabo de escrever. Mas uns outros lados meus, chiaroscuros, se contentam, sem auto-complacência, implacavelmente.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Stalker - Tarkovsky


“Quando o homem nasce, é fraco e flexível;
quando morre é impassível e duro.
Quando uma árvore nasce, é tenra e flexível;
quando se torna seca e dura, ela morre.
A dureza e a força são atributos da morte;
a flexibilidade e a fraqueza são a frescura do ser.
Por isso, quem endurece, nunca vencerá…”